"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/07/2022

Jurisprudência 2021 (237)


Temas da prova;
causa de pedir; factos complementares


1. O sumário de RP 23/11/2021 (8994/19.6T8VNG.P1) é o seguinte:

I - A indicação dos temas de prova não é um acto inócuo e desprovido de utilidade. No entanto, o novo CPC adoptou uma solução que passa, já não pela concretização de factos, mas por uma indicação genérica e eventualmente conclusiva da matéria controvertida sobre a qual há-de incidir a instrução da causa, que apenas deve ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas.

II - Sem prejuízo de casos em que solução diversa seja mais adequada, a obterem tratamento à luz do princípio de adequação processual, a indicação dos temas de prova deve prevenir qualquer tipo de excesso na vinculação temática do tribunal, facultando, pelo contrário, que a decisão sobre a vertente fáctica da causa, no termo da audiência de julgamento, expresse a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou, para assegurar a adequação da sentença à realidade.

III - Os limites da factualidade a considerar não derivam dos termos em que foram elencados os temas de prova, mas antes da causa de pedir invocada pelo autor e das excepções arguidas pelo réu.

IV - No que toca à definição da causa de pedir e das excepções, o tribunal está vinculado à alegação das partes. Estabelecida a causa de pedir em função da alegação suficiente dos factos essenciais, o juiz pode importar para a decisão outros que resultem da instrução da causa: se forem instrumentais, pode fazê-lo sem mais – art. 5º nº 2, al. a); se forem complemento ou concretização daqueles essenciais, o seu aproveitamento exige que sobre eles a parte tenha tido oportunidade de se pronunciar – art. 5º nº 2, al. b).

V – Deve entender-se que a parte teve oportunidade de se pronunciar sobre um facto se o mesmo foi alvo de discussão em audiência de julgamento, tendo sido sobre ele inquirida testemunha, sob instância dos mandatários de ambas as partes.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O processo foi saneado e, fixando o objecto do litígio e organizando os temas de prova, consta do correspondente despacho o seguinte excerto:

“Identificação do objecto do litígio

1 – Pedido formulado pelo autor

A decretação do divórcio entre o autor e a ré, com a consequente dissolução do casamento entre ambos celebrado.

2 – Causa de pedir

Complexa, composta pelos factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a rutura definitiva do casamento.

*

Temas de prova

Constituem os temas da prova a comprovação pela ré de comportamentos susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência e bem assim da litigância de má-fé do autor.” [...]

*

Fixada que está a matéria de facto a considerar e sendo certo que da alteração introduzida nenhum efeito advém para a motivação e para o sentido da decisão que julgou procedente a pretensão de divórcio do autor, importa passar a apreciar a questão suscitada pela apelante sobre a alegada falta de sintonia entre o fundamento jurídico da solução decretada, consistente no disposto nos arts. 1781º, al. a) e 1782º do Código Civil, e o conteúdo do despacho de fixação dos temas de prova que, ainda que menos claramente redigido, se traduzia na adopção, pela ré, de comportamentos susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência.

O problema não se coloca em função do enquadramento jurídico conferido aos factos apurados, pois, como se sabe, nessa matéria não está o tribunal vinculado por qualquer circunstância, maxime respeitante ao posicionamento das partes. É o que resulta do nº 3 do art. 5º do CPC. Daí, por exemplo, a irrelevância da afirmação de que o autor invocou a regra da al. d) do art. 1781º e não a da al. a), do C. Civil.

O problema põe-se, isso sim, em razão do aproveitamento, para a causa, de factos que, segundo os temas de prova fixados em acto processual próprio, não pareceriam estar sob discussão e julgamento, mas que foram dados por provados, tendo sido sobre eles que foi estruturada a decisão positiva sobre do pedido do autor.

A própria sentença enfrentou expressamente este problema, ao referir que o autor não deixara de invocar, como fundamento do seu pedido, a separação de facto, ao remeter para o art. 1782º do C. Civil.

Sendo isso verdade, pois que o autor alegou que ao tempo do início da acção se encontrava a sair de casa de morada da família, já tendo outro local para se instalar, bem como invocou a tutela da sua pretensão pelo disposto no art. 1782º do C. Civil (1- “Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer”), não pode esquecer-se também que, ao fixar os temas de prova, o tribunal mencionou os comportamentos da ré “… susceptíveis de violar os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência…”, sem prejuízo de, a título de causa de pedir, ter enunciado que era “Complexa, composta pelos factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a ruptura definitiva do casamento”.

A indicação dos temas de prova, no momento próprio do processo, mais exactamente na fase da condensação, não é um acto inócuo e desprovido de utilidade. Veja-se, por exemplo, que os depoimentos testemunhais devem versar, com precisão, sobre a matéria dos temas de prova, tal como dispõe o art. 516º do CPC.

No entanto, diferentemente de soluções processuais anteriores, (v.g. a que compreendia a especificação e questionário e a que previa a indicação dos factos assentes e a organização da base instrutória) o novo CPC adoptou uma solução que antes vinha sendo proposta e que passa, já não pela concretização de factos, mas por uma indicação genérica e eventual ou “aparentemente conclusiva da matéria controvertida sobre a qual há-de incidir a instrução da causa, que apenas deve ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas” (Ac. do TRL de 23/4/2015, proc. 185/14, citado por Lebre de Freitas, CPC Anotado, 3ª ed., Vol. 2º, pg. 670). Em qualquer caso, como se explica no CPC Anotado (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, vol. I, em anotação ao artigo 596º), dependendo da complexidade do processo em causa, a indicação dos temas de prova pode ter maior concentração, se isso for entendido como facilitador da instrução da causa. Porém, por regra, isso tenderá a ser evitado, por forma a prevenir qualquer tipo de excesso na vinculação temática do tribunal, facultando, pelo contrário, que a decisão sobre a vertente fáctica da causa, no termo da audiência de julgamento, “expresse o mais facilmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.” (ob. e loc. cit.)

Conclui-se, em suma, que os limites da factualidade a considerar não derivam dos termos em que foram elencados os temas de prova, mas antes da causa de pedir invocada pelo autor e das excepções arguidas pelo réu. Tais limites encontram a sua consagração legal no art. 5º do CPC, ao dispor sobre os poderes de cognição do tribunal.

Aí se dispõe que, no que toca à definição da causa de pedir e das excepções, o tribunal está vinculado à alegação das partes (nº1). Porém, estabelecida a causa de pedir em função da alegação suficiente dos factos essenciais, o juiz pode importar para a decisão outros que resultem da instrução da causa: se forem instrumentais, pode fazê-lo sem mais – nº 2, al. a); se forem complemento ou concretização daqueles essenciais, o seu aproveitamento exige que sobre eles a parte tenha tido oportunidade de se pronunciar – nº 2, al. b).

Aplicando o que vem de expor-se ao caso sub judice, sem prejuízo da redução dos temas de prova ao que fossem comportamentos da ré violadores dos referidos deveres conjugais, o tribunal não deixara de assinalar que a causa de pedir era complexa e composta, além da pela relação jurídica de conjugalidade estabelecida entre as partes, pelos “factos concretos que consubstanciam os fundamentos legais do divórcio e que, in casu, se reconduzem ao comprometimento da vida em comum, correspondendo a ruptura definitiva do casamento”.

A enunciação, nesses termos, da causa de pedir nesta acção, que bem poderiam ter sido os usados para designar os temas de prova, assinalou devidamente o que haveria de discutir-se na acção, referindo-o como uma generalidade de factos que, nos termos legais, pudessem ser aptos a traduzir o comprometimento da vida em comum e a ruptura definitiva do casamento. Ora, entre estes, o próprio autor havia assinalado, na p.i., a separação de facto, por referência ao art. 1782º do C. Civil.

Conclui-se, assim, que a decisão sobre a matéria relativa à separação de facto ocorrida a partir de 19 de Março de 2020, bem como sobre a sua irrevogabilidade, por ausência definitiva da intenção do autor em manter ou restabelecer a vida em comum, que o tribunal deu por provada sob os itens 7º e 8º do rol de factos provados, consubstancia a importação, para a decisão, de factos que não estavam claramente alegados na p.i., mas que são complemento e concretização daqueles que identificaram a causa de pedir reconhecida pelo tribunal. Reconduzem-se à mesma causa de pedir, não a modificando ou sequer ampliando; concretizam a separação de facto mencionada e complementam a cessação de observância de deveres conjugais entre as partes, que a decisão também menciona, embora sem daí extrair qualquer efeito.

Por conseguinte, enquanto factos subsumíveis à categoria referida na al. b) do nº 2 do art. 5º do CPC, os mesmos podem servir de base à decisão desde que as partes sobre eles tenham tido a oportunidade de se pronunciar.

Tal como resulta da fundamentação enunciada na decisão em crise, mas se constata pela audição do depoimento de E…, irmã da ré e conhecedora dos termos do relacionamento mantido entre as partes, bem como da sua progressiva degradação, depoimento esse também invocado pela apelante para a alteração da decisão sobre a matéria de facto, essa matéria foi debatida na audiência de julgamento, tendo essa testemunha esclarecido que foi precisamente a 19/3 de 2020 que o autor abandonou a casa de morada da família e que, tendo tratado de refazer a sua vida com outra pessoa, jamais mostrou interesse em estabelecer qualquer acordo com C…, sua mulher, assim se demonstrando o fim definitivo do seu casamento. Tal declaração, iniciada ao minuto 13’40’’, teve continuidade já sob a instância do Il. Mandatário da ré, sendo ao min. 15´15´´ que foi discutido esse carácter definitivo do abandono do lar, pelo autor.

Nestas circunstâncias, não podemos deixar de concluir que a matéria em questão não só foi passível de obter pronúncia por parte da ré, ora apelante, como efectiva e objectivamente foi incluída na discussão da causa, não podendo ter-se como surpresa a sua inclusão nos itens 7º e 8º dos factos provados, nos termos em que foi feita.

Cumpre, pois, concluir pela não verificação da nulidade de excesso de pronúncia na decisão recorrida, quer por ter considerado tais factos no segmento correspondente da decisão, quer por neles ter acabado por fundar a procedência da pretensão do autor."


[MTS]