"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/07/2022

Jurisprudência 2021 (233)


Litigância de má fé;
deveres de cuidado; violação


1. O sumário de RL 16/12/2021 (12367/19.2T8LSB.L2-2) é o seguinte:

I – É corrente distinguir má fé material e má fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo.
 
II – Preencherá o ilícito típico da al. a), do art. 542º, nº 2, a parte que tenha consciência da falta de fundamento da sua pretensão, ou aquela que, embora não a tendo, devê-la-ia ter se houvesse cumprido os deveres de cuidado que lhe eram impostos.

III – Mesmo que a parte alegue a sua boa fé, entendida esta em sentido objetivo, litigará de má fé se, não obstante conhecer a falta de fundamento da pretensão ou da defesa, lhe fosse exigível que a conhecesse.

IV – Para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa.

V – Também ao nível da responsabilidade processual, o grau de diligência exigível ao litigante deverá partir da diligência do bom pai de família, ou seja, da diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado previamente à propositura de uma ação judicial.

VI – O grau de culpabilidade do agente será tanto maior quanto mais intenso o dever de ter agido de outro modo, podendo, em consequência, a negligência com que atua ser considerada simples ou grave.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Vejamos o caso dos autos, isto é, se a conduta processual do apelante/autor é subsumível ao conceito de litigância de má-fé.

Está provado que “em 09.02.2018, o Autor e a 1.ª Ré celebraram o contrato que denominaram de “Acordo de Parceria”, mediante o qual Autor e 1.ª Ré acordaram dividir em partes iguais todos os montantes que a 1.ª Ré viesse a receber em virtude do contrato de intermediação celebrado no mesmo dia com o filho do Autor, DD”.

Mais se provou que “Em aditamento ao “Acordo de Parceria”, em 16 de novembro de 2018, nos termos da sua cláusula Quarta, o Autor cedeu a sua posição contratual a R…… – UNIPESSOAL, Lda”, sociedade esta por si constituída, cedência essa da posição contratual aceite pela 1ª Ré”.

Assim, pese embora o autor ter cedido a sua posição contratual no “acordo de parceria”, cedência essa que ocorreu em data anterior à da propositura da ação (em 2019-06-12), intentou, no entanto, a presente ação em nome próprio, quando já não seria detentor de eventuais créditos sobre a 1ª ré e, decorrentes de tal acordo, por os ter cedido a uma sociedade unipessoal.

Temos, pois, que qualquer crédito devido pela  ré com fundamento no “acordo de parceria” seria da titularidade não do autor, mas da sociedade unipessoal, R….. – Unipessoal, Lda.

Como entendeu o tribunal a quo“é notório que qualquer crédito devido pela 1ª ré com fundamento no referido acordo de parceria é da titularidade não do autor, mas da referida R……. – Unipessoal, Lda”.

E, ao ter intentado a ação em nome próprio, depois de ter cedido a sua posição contratual no “acordo de parceria”, o apelante /autor agiu com culpa, isto é, a sua conduta é processualmente reprovável, pois podia e devia ter agido de outro modo?

O tribunal a quo entendeu que sim, o que subscrevemos, “O Autor não podia desconhecer que havia cedido os créditos que vem reclamar nesta ação a uma sociedade unipessoal. Ainda que o Autor seja sócio único desta sociedade, não pode deixar de conhecer, ao menos minimamente, “o alcance e valor legal que este aditamento ao contrato detinha”, dado que qualquer cidadão médio, colocado na posição do Autor, não desconhece que os rendimentos auferidos pela sociedade não são rendimentos do Autor, e assim não o são declarados fiscalmente. Não se toma, portanto, como idónea ou credível a explicação dada de que “o Autor confundiu a sua personalidade jurídica com a da sociedade R…… – Unipessoal Lda.”.

Temos, pois, que o apelante/autor não atuou, previamente à propositura da ação judicial, com a diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado.

Um homem medianamente prudente e cuidadoso, sabendo que tinha cedido a sua posição contratual a uma sociedade unipessoal, não teria intentado a presente ação, pois sabia não ser detentor de nenhum crédito sobre esta, por já não ser parte no contrato.

Assim sendo, previamente à propositura desta ação, não empregou a diligência devida e que qualquer homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado, pois não é percetível que após ter cedido a sua posição contratual, o agente (no caso, o autor) venha reclamar créditos relativos a esse mesmo contrato e do qual já tinha cedido a sua posição.

Se cedeu a sua posição contratual no contato a uma sociedade unipessoal, ao vir reclamar créditos em nome próprio e relativo a esse contrato, só se pode entender que não empregou previamente à propositura da ação, a diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado.

Um homem medianamente prudente e cuidadoso não teria, pois, intentado a presente ação, pois sabia que ao ceder a sua posição contatual, não poderia nunca vir reclamar créditos de um contrato do qual já não era parte [---], [---]

Acresce ainda dizer que tendo sido o autor a ceder a sua posição contratual a uma sociedade da qual é sócio único, exigia-se ainda uma maior diligência previamente à propositura da ação, pois se tivesse usado dessa diligência, sabia que não poderia instaurar a presente ação, por já não ser parte no contrato e, consequentemente, detentor de eventuais créditos sobre a  ré.

A sua atuação configura-se assim, como grave, pois não obedeceu às mais elementares regras de prudência, omitindo o mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da falta de fundamento da sua pretensão, por não ser parte no contrato, por ter cedido a sua posição contratual e, por isso, detentor de eventuais créditos sobre a  ré.

O apelante/autor atuou com negligência grave, pois não obedeceu às mais elementares regras de prudência, omitindo o mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da falta de fundamento da sua pretensão por já ter cedido a sua posição contratual no “acordo de parceria” a uma sociedade unipessoal, pois tendo deixado de ser parte no contrato, já não seria detentor de eventuais créditos derivados deste [---],[---],[---],[---],[---],[---].

Ora, se tivesse usado do mínimo de diligência teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que era manifesta aos olhos de qualquer pessoa, pois tendo cedido a sua posição contratual, não poderia vir invocar créditos com fundamento no contrato em que ocorreu a cedência, pois dele já não era parte.

Por outro lado, conforme entendimento do tribunal a quo, o que subscrevemos, “não subsistem dúvidas de que a alegação constante da petição omite factos relevantes para a decisão da causa, ao não dar a conhecer o aditamento celebrado entre Autor e 1ª Ré em 16.11.2018”.

Ao omitir factos relevantes para a decisão da causa (no caso, o aditamento de 16.11.2018), o apelante/autor atuou com negligência grave, pois não usou do mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da sua não alegação, nomeadamente, por serem importantes para decisão [---],[---],[---].

Acresce dizer, que mesmo tendo o apelante/autor alegado a sua boa fé (cometeu, sem qualquer consciência ou intenção dolosa, um erro aquando da propositura da ação), entendida esta em sentido objetivo, continuará a litigar de má fé, se lhe fosse exigível, como era, que conhecesse da falta de fundamento da sua pretensão ao propor a ação, pois tendo cedido a sua posição contratual para uma sociedade unipessoal da qual era sócio único, não era detentor de nenhum crédito com origem em tal contrato, não intentando, nunca, a ação com tais fundamentos.

O apelante alegou ainda que “a legitimidade processual é um conceito jurídico, de cariz técnico, e não é expectável que o seu significado seja conhecido pelo cidadão comum”.
Se é certo que a legitimidade é um conceito de cariz jurídico, o que está em causa é o facto de o apelante ter deduzido pretensão cujo fundamento não devia ignorar por ter cedido a sua posição contratual por ter cedido a sua posição contratual.

A legitimidade será, pois, a consequência processual do facto de ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, e não que tal consequência seja conhecida pelo cidadão comum.

O apelante/autor só teria que ter usado da diligência devida para instaurar a ação, pois cedendo a sua posição contratual, sabia que não poderia reclamar quaisquer créditos resultantes do mesmo, razão pela qual, é assessorado por mandatário judicial.

Concluindo, tendo o apelante/autor deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar e omitido factos relevantes para decisão da causa, a sua conduta processual é subsumível ao conceito de litigância de má-fé (art. 542º, nº 2, als. a) e b), do CPCivil), devendo por isso, ser sancionado, como o foi, em multa e indemnização à parte contrária (art. 542º, nº 1, do CPCivil) [---],[---],[---],[---],[---],[---],[---],[---]."

MTS