"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/07/2022

Jurisprudência 2021 (239)


Procedimento de injunção;
âmbito de aplicação; cláusula penal*


1. O sumário de RP 15/12/2021 (17463/20.0YIPRT.P1) é o seguinte:

I - O processo de injunção é inadequado para o exercício de direitos decorrentes de responsabilidade civil contratual subsequente ao incumprimento de um contrato de crédito, pelo mutuário, designadamente os correspondentes ao recebimento dos valores de todas as prestações não pagas e declaradas vencidas, de juros e de cláusula penal.

II - Sendo esses pedidos de valor inferior a 15.000,00€, mesmo após distribuição do processo e sua tramitação como acção declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, é esta forma de processo especial inadequada para a apreciação do direito à obtenção daquelas prestações.


2. Na fundamentação do acórdão alegou-se o seguinte:

"Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.

No caso, as questões a decidir são as seguintes:

1 – Se os valores pedidos pelo B… constituem uma obrigação pecuniária, para efeitos do disposto no art. 1.º do DL 269/98 de 01 de Setembro;
2 –Se a circunstância de o processo ter sido distribuído e passado a tramitar como processo declarativo determina a superação da eventual desadequação da inicial forma de processo injuntivo.
3 - Se, na hipótese de a forma processual sob a qual tramitaram os autos ser inadequada para a apreciação de algum dos pedidos, poderia habilitar ao conhecimento dos demais.

*

A análise das questões que acabam de se enunciar exige que se tenham presentes a causa de pedir e os pedidos formulados pelo autor, no seu requerimento de injunção.

Uma tal causa de pedir foi descrita como um contrato de crédito pessoal nos termos do qual o B… entregou a C…, por empréstimo, a quantia de 8.558,25€, com a estipulação de que, pela utilização do capital mutuado, esta pagaria juros sobre o capital em dívida, de acordo com a taxa de juro fixada no contrato e que, em caso de mora, seria acrescida de uma sobretaxa de 3% a título de cláusula penal. Tal valor haveria de ser pago em prestações mensais e sucessivas nas demais condições constantes do contrato. Porém, a Mutuária não pagou ao Banco as prestações vencidas após 01.10.2018, o que determinou o vencimento de todas as restantes, por cujo pagamento é responsável também o requerido D…, em virtude de fiança que prestou.

Em razão desta causa de pedir, pretende o Banco o pagamento do valor do capital em dívida, num total de 6.972,71€, acrescida dos juros de mora, contados dia a dia, à taxa contratual em vigor de 9,88%, acrescida de uma sobretaxa de 3%, a título de cláusula penal, que se calculavam em 1.267,16€ à data da instauração do procedimento injuntivo.

A adequação do procedimento de injunção, ou do procedimento declarativo especial previstos no DL 269/98, de 1/9, para a cobrança de valores em dívida em resultado de determinado tipo de negócios jurídicos está definida no respectivo art. 1º, que dispõe: “É aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.

Nos termos desta norma, só é admissível a utilização de tais formas processuais quando a causa de pedir seja o incumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000,00€.

Diversa doutrina e jurisprudência têm sido produzidas sobre a matéria, não deixando já dúvidas sobre o conteúdo de tal conceito de “obrigações pecuniárias emergentes de contratos”.

Como refere Paulo Duarte Teixeira (“Os Pressupostos Objectivos e Subjectivos do Procedimento de Injunção», em “Themis”, VII, nº 13, pgs. 184-185), essas obrigações são “(…) apenas aquelas que se baseiam em relações contratuais cujo objecto da prestação seja directamente a referência numérica a uma determinada quantidade monetária (…) daqui resulta que só pode ser objecto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias directamente emergentes de contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objecto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro».”

Em sentido idêntico se pronuncia Salvador da Costa (Injunções e as Conexas Ação e Execução, 5ª ed. atual. e ampl., 2005, pág. 41), afirmando que “o regime processual em causa só é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, …”.

Adoptando este entendimento, podem ver-se, entre outros, os Acs. do TRP de 15/1/2019, proc. nº 141613/14.0YIPRT.P1; de 24/5/2021, proc. nº 2495/19.0T8VLG-A.P1, de 25/5/2021, proc. nº 113862/19.2YIPRT.L1-7.

No caso em apreço, o pedido corresponde, tal como apreciado nos acórdãos anteriormente citados, não ao cumprimento de uma obrigação pecuniária stricto sensu, mas ao exercício da responsabilidade civil contratual subsequente à resolução de um contrato por incumprimento, com todas as consequências: vencimento imediato de todas as prestações previstas, contabilização de juros de mora e aplicação de uma taxa a título de cláusula penal.

Por conseguinte, cumpre afirmar, em concordância com a decisão recorrida, que o procedimento de injunção é um expediente processual impróprio para obter satisfação dos pedidos do autor, já que estes não são subsumíveis ao conceito de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato.

*
Esta conclusão conduz-nos de imediato para a análise da seguinte: no caso em apreço, por não ter sido conseguida a notificação do requerido D…, o processo foi distribuído. E passou a seguir os termos de um processo declarativo. Por isso, afirma o apelante, deixaram de se verificar os obstáculos referidos à tramitação da pretensão do autor sob a forma de injunção. Deve esquecer-se essa fase, pois que a distribuição do processo como acção declarativa fez nascer toda uma nova tramitação processual, à qual não podem ser opostos os condicionamentos que impediam o recurso ao processo de injunção.

O apelante cita até jurisprudência, nas suas conclusões XXVIII a XXXIII, onde tal solução se enuncia, isto é, que “tendo-se migrado para contexto processual completamente distinto do inicial, são irrelevantes as limitações anteriores por nos encontrarmos perante um distinto contexto técnico e diversas finalidades (…). Assim, (…) há que patentear que as acções declarativas comuns não podem ser rejeitadas por falta de pressupostos ou contextos processuais relativos a processado já desaparecido, inexistente e inaplicável.”

Acontece, porém, que nesse caso (Ac. do TRL, de 11/2/19, no proc. n.º 69245/17.0YIPRT-A.L1-6), tal como no outro exemplo que cita, a distribuição do processo conduziu à respectiva tramitação sob a forma de processo comum, nos termos do nº 2 do art. 10º do DL 62/2013, de 10 de Maio (como acção sob a forma ordinária, no caso do processo mais antigo, a que se reporta o Ac. do STJ citado). Foi por cada um desses processos ter passado a tramitar como processo comum, onde se não verificam compressões dos direitos processuais da parte contrária, maxime quanto a prazos e à instrução probatória da causa, que ali se entendeu – como não devia deixar de ser, também a nosso ver – inexistir qualquer obstáculo para a apreciação de pedidos para os quais fora inadequado o processo de injunção.

No caso em apreço, é diferente a situação: é que, por o respectivo valor ser inferior a 15.000,00€, a distribuição deste processo, consequente à ausência do requerido D…, deu azo a que o mesmo tivesse passado a tramitar como acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do nº 4 do art. 1º e dos arts. 3º e 4º do regime anexo ao DL. 269/98, em cumprimento do disposto no art. 17º. E, para esta forma de processo, ali se estabelece um regime processual expedito, com prazos, actos e provas restringidos ao essencial, em homenagem a interesses de agilidade e celeridade.

Ora, esse regime processual, nos termos do art. 1º do D.L. 269/98, continua reservado à mesma espécie de obrigações que as injunções: obrigações pecuniárias decorrentes do incumprimento de contratos de valor inferior a 15.000,00€. E, como já vimos anteriormente, esse não é o caso das obrigações decorrentes do contrato de mútuo que integra a causa de pedir alegada pelo B….

Por consequência, diferentemente do que aconteceria no caso de a distribuição do processo de injunção se executar em cumprimento do art. do nº 2 do art. 10º do DL 62/2013, de 10 de Maio, por o pedido ser superior a 15.000,00€ (o que exigiria a verificação de outros pressupostos, que aqui não interessa discutir), originando a sua tramitação como processo comum, sem restrições especiais, na situação sub judice a distribuição do processo levou a que o mesmo observasse a tramitação célere e aligeirada especificamente prevista para um tipo de casos diferente daquele que os autos consubstanciam.

É, por isso, impossível afirmar que, com a transmutação do processo injuntivo em acção declarativa, desapareceram as razões e as consequências que justificavam a inadmissibilidade do processo injuntivo para a tutela da pretensão do requerente. Pelo contrário, essas razões, constituídas pelas especificidades da tramitação deste processo declarativo especial, mantêm-se, justificando que não se possa aplicar o respectivo regime a outro tipo de obrigações para além das previstas no art. 1º do D.L. 269/97, designadamente às decorrentes de responsabilidade civil contratual, como é o caso dos autos.

Improcedem, por isso, as razões do apelante também em relação à segunda questão.

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Por fim, alega o apelante que a discussão sobre a admissibilidade desta forma de processo para a tramitação e apreciação dos seus pedidos deve ser repartida em função da diferente natureza de cada um deles e, se ela for tida por inadmissível no tocante à aplicação da cláusula penal e cobrança do respectivo valor, a essa parte do pedido se deve limitar a decisão de absolvição da instância. E isso porquanto as demais obrigações cujo cumprimento vem exigir são emergentes do próprio contrato.

Não tem, porém, razão. Como se referiu antes, nenhum dos pedidos formulados pelo B… consubstancia uma obrigação pecuniária stricto sensu. Aliás, é o próprio requerente, ora apelante, que na sua conclusão XI esclarece que a sua pretensão decorre da resolução do contrato de crédito celebrado com a requerida C…, com o que pede não o pagamento de cada uma das prestações previstas, no seu próprio tempo, conforme contratualmente estabelecido, mas todo o seu valor, acrescido de quantias indemnizatórias por mora e a título de cláusula penal, por as considerar imediatamente vencidas na totalidade. Trata-se, como se referiu, do exercício de um direito fundado na responsabilidade civil contratual, relativamente a todo e cada um dos pedidos, e não do cumprimento da obrigação de entrega de uma quantia específica, correspondente à contraprestação de uma outra prestação satisfeita pelo banco.

Por isso, a nenhum dos pedidos formulados pelo Banco cabe o regime processual da injunção, nem tão-pouco o da acção declarativa especial em que o processo injuntivo se transmutou, pelo que em relação a nenhum deles poderia o tribunal a quo proferir decisão de mérito.

*
Ao detectar a inadmissibilidade do conhecimento de todos e de cada um dos pedidos do autor – o que se nos afigura sobressair com clareza da decisão recorrida, não se justificando as reservas a esse propósito enunciadas no presente recurso – o tribunal qualificou-a como excepção dilatória inominada, absolvendo os RR. da instância.

Certo é que o fez tardiamente, praticando antes uma quantidade de actos inúteis, que vão desde a realização do próprio julgamento até à elaboração da sentença pois que, apreciando a existência dessa anomalia antecipadamente, bem deixaria de apreciar a factualidade sob discussão, de enunciar os factos tidos por provados ou de motivar esse juízo. Em qualquer caso, apesar de ter afirmado, em sede de saneamento, que a instância se mostrava regular, isso não passou de um despacho tabelar, sem expressa pronúncia sobre qualquer matéria, não tendo constituído caso julgado formal sobre uma tal regularidade que, logo de seguida, veio rejeitar.

Por outro lado, nem o apelante suscita tal questão, nem tem utilidade discutir se, em vez de uma excepção dilatória inominada, a situação sub judice consubstancia uma nulidade processual, tal como previsto nos arts. 193º e 196º do CPC.

Com efeito, mesmo nesta última hipótese, tendo a utilização do expediente processual previsto nos arts. 1º, 3º e 4º do regime anexo ao D.L. 269/98 resultado ab initio na compressão de direitos de defesa dos RR., nenhum acto processual se poderia aproveitar, designadamente para se convolar este processo num típico processo comum e se aproveitar qualquer dos actos nele praticados. Por isso, sempre haveriam de ser os RR. absolvidos da instância como foram."


*3. [Comentário] Com o devido respeito, não se encontra justificação para recusar que o procedimento de injunção e a AECOP possam ser utilizados para exigir o cumprimento de uma cláusula penal. Recorde-se a noção de cláusula penal que consta do art. 810.º, n.º 1, CC: "As partes podem, porém, por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal".

MTS