"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/05/2024

Jurisprudência 2023 (182)


Princípio da cooperação;
âmbito


1. O sumário de RP 10/10/2023 (18576/22.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - O princípio da cooperação, mesmo em termos amplos como aqueles que estão pressupostos no art. 7º do CPC, reconduz-se às obrigações intraprocessuais, em ordem à realização dos fins do processo, fazendo com que este seja uma ferramenta para a realização do direito em tempo útil, mas não às questões inerentes à consolidação da posição substantiva de qualquer das partes.

II - A existência de licença de utilização de um imóvel é condição essencial para a identificação do direito à execução específica de um contrato-promessa, isto é, do direito a que, prescindindo da declaração contratual de uma das partes, o tribunal se substitua à parte faltosa e enuncie ele próprio a declaração em falta.

III - Inexiste disposição processual, designadamente em sede de direito probatório, que determine que o tribunal deva providenciar junto de uma Câmara Municipal em ordem a que uma parte possa vir a obter a licença de utilização de um imóvel, que declaradamente não foi emitida e que seria condição do seu direito à execução específica de um contrato-promessa para a aquisição de um prédio urbano.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.

Assim, importará decidir sobre se o tribunal a quo deveria ter providenciado junto da Câmara Municipal ..., segundo o pedido pelos autores, para que estes pudessem obter a licença de utilização do imóvel em causa; bem como se a situação sub judice apresentava os pressupostos necessários à execução específica do contrato-promessa invocado.

*
Em razão da declaração de confissão dos factos alegados pelos autores, subsequente à ausência de contestação da ré, acabou o tribunal recorrido por não elencar expressamente os factos em que alicerçou a sua decisão. [...]

Em qualquer caso, a primeira questão do recurso reporta-se à decisão no tribunal nos termos da qual indeferiu o requerimento dos autores para que oficiasse ao Município ..., para que lhes fosse permitido, em substituição da Ré, prosseguir com as diligências devidas de forma a obterem a licença de utilização, com disponibilidade para suportar todas as despesas relacionadas, pretendendo que o valor fosse descontado no preço final a pagar pelo imóvel.

Os autores fundam a impugnação desta decisão no incumprimento, pelo tribunal, de um dever de promover diligências necessárias à justa composição do litígio, bem como do dever de providenciar pela remoção do obstáculo constituído pela ausência de licença de utilização, invocando ainda o regime para a obtenção de documentos em poder de terceiro.

Aponta, assim, a ocorrência de uma nulidade, por omissão de um acto que deveria ter sido praticado e que redundou em prejuízo da decisão da causa, determinando a nulidade da própria sentença.

Constata-se, porém, ser dispersa, quase errática, a argumentação dos apelantes a este propósito, ora invocando a sujeição do tribunal a ditames de cooperação, ora qualificando implicitamente a licença de utilização do prédio como um pressuposto processual por cuja materialização o tribunal deveria providenciar, ora invocando o regime processual probatório, designadamente quanto ao tratamento das situações de necessidade de utilização de documentos em poder de terceiro.

É, porém, óbvia a ausência da sua razão.

Com efeito, como referiu o tribunal a quo, na questão em apreço, a existência de licença de utilização de um imóvel é condição essencial para o reconhecimento do direito à execução específica de um contrato-promessa, isto é, do direito a que, prescindindo da declaração contratual de uma das partes, o tribunal se substitua à parte faltosa e enuncie ele próprio a declaração em falta, isto é, como se da própria parte se tratasse e produzindo os mesmos efeitos.

Ora, para que uma tal solução possa ser decretada, a parte requerente tem de estar munida de todos os pressupostos (substantivos) do seu direito, o que, sendo reconhecido pelo tribunal, determina que se ultrapasse a ausência da declaração de vontade da parte contrária. É o que resulta do art. 830º, nº 1 do C.Civil.

No caso de o objecto a transmitir ser um imóvel destinado a habitação, impõe o art. 1º do D.L Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho1” Não podem ser realizados actos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.”

Significa isto que, para que se reconheça como digno de tutela um direito à execução específica de um contrato-promessa tendo por objecto um prédio urbano, esse prédio – que é o objecto mediato do contrato-promessa – tem de estar habilitado com uma licença de utilização, sob pena de não poder ser alvo de um acto translativo da respectiva propriedade, designadamente aquele que é pretendido do tribunal.

Numa vertente negativa, poderá afirmar-se que, desprovido de licença de utilização, não poderá um tal prédio urbano ser objecto de um acto translativo de propriedade, seja ele um acto de venda em que o vendedor declara uma tal vontade, seja ele um acto judiciário que, suprindo essa declaração, se lhe substitua.

É neste quadro legal que cumpre afirmar que não é ao abrigo de um princípio de cooperação, tal como o definido 7º, nº 1 do CPC, que poderá interpelar-se o tribunal para que, não apenas suprindo a declaração da parte faltosa, tal como previsto no art. 830º, nº 1 do C. Civil, intervenha na própria aquisição dos pressupostos necessários à aquisição do direito à execução específica, ou seja, muito a montante da superação de qualquer impedimento processual que possa estar a obstar ao exercício do próprio direito.

Com efeito, o princípio da cooperação, mesmo em termos amplos como aqueles que estão pressupostos no art. 7º do CPC, reconduz-se às obrigações intraprocessuais, em ordem à realização dos fins do processo, fazendo com que este seja uma ferramenta para a realização do direito em tempo útil, mas não às questões inerentes à consolidação da posição substantiva de qualquer das partes.

Assim, por exemplo, a dificuldade na obtenção de um documento ou informação que condicione o exercício de uma faculdade ou ónus processual, que o tribunal deve ajudar a superar, tal como previsto no nº 4 do art. 7º, não leva a que se transcenda a dinâmica do processo para se poder sediar na própria relação substantiva entre as partes. Em suma, por exemplo, o tribunal deve contribuir para a superação de uma dificuldade tendente à verificação de todos os pressupostos processuais (ex., em sede de legitimidade) ou à habilitação da parte com os meios instrutórios existentes (ex, fazendo produzir meios de prova que a parte não consegue alcançar); mas não haverá de actuar no sentido de dotar a parte dos pressupostos substantivos de um direito que a mesma se apresta a exercer.

Isso conduziria a uma intervenção em associação com a própria parte, inadmissível ao tribunal. Assim, por exemplo, num caso de incumprimento de um contrato em que seja pedida em juízo a sua resolução, mas em que a mora não tenha sido convertida em incumprimento definitivo, não poderá pretender-se que o tribunal, à luz de um dever de cooperação, providencie pela interpelação do devedor e pela conversão da mora em incumprimento definitivo, por isso ser essencial à realização do direito que o autor se apresente a exercer.

No caso sub judice, por exemplo e diferentemente do que os apelantes chegam a alegar, a obtenção de uma licença de utilização para o prédio que querem adquirir não consubstancia a aquisição de um meio de prova (documental) vocacionado para a demonstração da existência dessa licença. Se assim fosse, até poderia ter sentido a invocação a que recorrem, do art. 432º do CPC (documentos em poder de terceiro). Porém, o que está em causa não é a obtenção de um documento tendente a provar a prévia autorização de utilização do prédio: o que os apelantes pretendem é que o tribunal determine à Câmara Municipal que admita os apelantes a adoptarem a conduta necessária à produção do próprio acto administrativo que ainda não foi produzido: a emissão da licença de utilização.

Ora, como bem referiu o tribunal recorrido, o fim do presente processo não inclui uma tal actuação, reconduzindo-se tão só à verificação da presença dos pressupostos que poderiam habilitar a que, sem intervenção da promitente-vendedora, o tribunal proferisse declaração substitutiva, operando-se por consequência dela a transferência da propriedade sobre o imóvel em causa.

Assim, não estamos perante qualquer défice processual que o tribunal pudesse contribuir para colmatar. Não se trata nem da reunião de necessários pressupostos processuais, nem da intervenção em ordem à aquisição de quaisquer elementos probatórios do direito dos autores, pois eles próprios admitem que inexiste a necessária licença de utilização, não estando em falta tão só a sua demonstração.

Causa, assim, alguma perplexidade que, no recurso, se confundam as diferentes esferas consubstanciadas ora pela invocada titularidade do direito em exercício, ora pela mera demonstração, em sede processual, da reunião dos pressupostos desse direito.

Assim, ao caso são totalmente impertinentes as regras constantes dos arts. 411º, 417º, 429º, 436º do CPC.

Complementarmente, com idêntica frontalidade, se rejeita que, em favor do direito que os ora apelantes falham em demonstrar, possam invocar – de resto tão abstracta e gratuitamente como o fazem - o direito à habitação, tal como previsto no art. 65º da CRP, e como se uma tal tutela constitucional fosse pertinente na resolução do litígio ocorrido em sede de uma relação contratual entre as partes em presença.

Com efeito, a inviabilidade de transmissão da propriedade sobre um prédio urbano, por não estar dotado de licença de utilização, não viola o direito à habitação, tal como este se mostra constitucionalmente previsto, no art. 65º da CRP. Esse direito é um direito fundamental de natureza social, que não confere um direito subjectivo de ordem contratual como aquele que os AA. se apresentam a exercer nesta acção."

[MTS]


30/05/2024

Paper (511)


-- Peruzzi, Edoardo / Cevolani, Gustavo, The Gatekeeper’s Dilemma: Expert Testimony, Scientific Knowledge and Judicial Reasoning (SSRN 2024.03)


Jurisprudência 2023 (181)


Prazo peremptório;
contagem; "prazo de condescendência"


1. O sumário de STJ 17/10/2023 (270/10.6TYLSB-J.L1.S1-A) é o seguinte:

O n.º 5 do art. 139.º do CPC concede à parte um acréscimo temporal de tolerância permitindo que a mesma pratique o acto (com pagamento de multa) nos três dias úteis subsequentes ao termo do respectivo prazo, mas não constitui um “acréscimo” do prazo se a parte não praticar o acto.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I – AA, vem requerer que seja submetida à conferência a decisão singular da relatora, que não admitiu o recurso extraordinário de jurisprudência que interpôs do acórdão proferido nestes autos (de 15-02-2023), alegando contradição do mesmo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2016, proferido no Processo n.º 106/11.0TBCPV.P2- S1.

II – É do seguinte teor a decisão singular:

“1. AA, após o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos (de 15-02-2023), veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência, para o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 688.º e ss do Código de Processo Civil (CPC), alegando contradição daquele acórdão com o acórdão do STJ de 22-09-2016, proferido no Processo n.º 106/11.0TBCPV.P2- S1, imputando ao acórdão recorrido uma inadequada interpretação do artigo 621.º do CPC, ao introduzir uma distinção que a norma não comporta no que toca à verificação da condição, do prazo ou do facto ocorrer antes ou depois do encerramento da audiência em 1ª instância.

E, sem indicar, o sentido em que se deve fixar a jurisprudência, concluiu pedindo que seja “determinada a celebração de escritura pública a favor da Recorrente, a outorgar pelo Sr. Administrador de Insolvência ou ser proferida decisão judicial que determine e possibilite a transmissão da propriedade das fracções autónomas a favor daquela e o respectivo registo na conservatória do registo predial, num caso ou noutro sempre com cancelamento, por via de despacho judicial, de todos os ónus e encargos que, indevidamente, incidem sobre as ditas fracções, designadamente, a apreensão para a massa falida.”.

2. Tendo-se considerado que no caso se verificava a ausência da condição de admissibilidade do mesmo – (in)tempestividade – foram as partes notificadas para se pronunciarem nos termos do artigo 655.º, n.º1, do CPC (despacho de 24-04-202).

3. A Recorrente reafirma a tempestividade do recurso.

4. As Recorridas NOVO BANCO, SA e MASSA INSOLVENTE DE CORREIA E SANTOS defendem a extemporaneidade do recurso.

Apreciando

1. Sob a epígrafe “Prazo para interposição”, o artigo 689.º, n,º1, do CPC, dispõe que o “recurso para uniformização de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias, contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido.”
 
Na sequência do que se mostra realçado no despacho que antecede, o referido prazo de 30 dias tem natureza processual e constitui uma condição de admissibilidade do recurso.

 Na contagem do referido prazo há que atender ao disposto nos artigos 138.º, 139.º e 248.º e 249.º, do CPC, estando-se, por isso, na presença de um prazo contínuo (conta-se dia por dia) e se o seu termo ocorrer em dia em que os tribunais se encontrem encerrados “transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte”.

 A notificação por via postal, se for realizada sob registo e por transmissão electrónica tem-se por feita no 3.º dia posterior, respectivamente, ao registo e ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse (se aquele não o for).

 Esgotado o prazo, a parte poderá ainda praticar o acto nos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo respectivo (sublinhado nosso), sob pagamento imediato de uma multa progressiva, consoante seja o 1.º, 2.º ou o 3.º dias subsequentes (artigo 139.º, n.º5, do CPC), restando ainda a possibilidade de, posteriormente, o acto poder ser praticado se ocorrer justo impedimento (cfr. artigo 140.º, do CPC).

 2. No caso, verifica-se que a notificação do acórdão recorrido (de 15-02-2023) à Recorrente foi realizada em 16-02-2023 (quinta-feira), presumindo-se a efectivação da mesma a 20-02-2023 (segunda-feira, enquanto 1.º dia útil seguinte ao presumido 3.º dia).

Considerando que o prazo para reagir ao referido acórdão era de dez dias (por o mesmo, não ser susceptível de ser impugnável através de recurso ordinário, apenas podendo ser objecto de reclamação para a conferência), uma vez que o termo do mesmo ocorreu a 02-03-2023, há que concluiu que o acórdão recorrido transitou em julgado em 02-03-2023. Consequentemente, o termo do prazo de 30 dias para interpor recurso de uniformização de jurisprudência ocorreu a 11-04-2023.

Tendo a Recorrente interposto recurso de uniformização de jurisprudência em 20-04- 2023, mostra-se o mesmo extemporâneo, pois que o acto foi praticado para além do prazo que a lei estabelece para o efeito.

3. Contrapõe a Recorrente entendendo que o trânsito em julgado do acórdão não ocorreu a 02- 03-2023, mas a 07-03-2023, porquanto, no computo do mesmo, se impunha ter em atenção os 3 dias úteis em que o acto (de reclamação para a conferência) poderia ter sido praticado (ao abrigo do n.º5 do artigo 139.º do CPC). Concluiu, por isso, pela tempestividade do recurso, uma vez que o prazo de 30 dias para recorrer se iniciou em 08-03-2023, expirando a 20-04-2023 (data em que interpôs o recurso), por constituir o 3.º dia útil após o termo (verificado a 17-04-2023), tendo procedido ao pagamento da respectiva multa.

Não podemos concordar.

4. O entendimento que a Recorrente colhe do artigo 139.º n.º 5, do CPC, para o computo do prazo para o trânsito em julgado do acórdão recorrido descura a finalidade que a norma tem subjacente e que, a nosso ver, não oferece dúvidas de interpretação (que se retira do elemento literal de interpretação1) quanto a constituir um acréscimo temporal de tolerância, viabilizando que a parte pratique o acto (com pagamento de multa) nos três dias úteis subsequentes ao termo do mesmo. E, assim, só assume relevância como tal (enquanto direito de praticar o acto) se a parte, efectivamente, o exercer. Caso contrário, ou seja, quando a parte não o exerce, não poderá ser entendido como um “acréscimo” do prazo e mostra-se irrelevante para a contagem do mesmo2 .

Por conseguinte, tal como fizemos realçar no despacho que antecede, uma vez que o acórdão recorrido transitou em julgado em 02-03-2023, quando da interposição do recurso de uniformização de jurisprudência (em 20-04-2023), já havia sido ultrapassado o prazo (peremptório) de 30 dias previsto no n.º1do artigo 689.º do CPC (que ocorreu a 11-04-2023), mostrando-se, por isso, extemporâneo o recurso que a Recorrente veio interpor."

5. Verificando-se, assim, no caso, que o recurso foi interposto muito para além do prazo estabelecido no artigo 689.º, do CPC, não se admite o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.

Custas pela Recorrente.”.

III - Como salientado no despacho singular, mostra-se extemporâneo o recurso de uniformização de jurisprudência interposto pela Recorrente, por se encontrar ultrapassado o prazo de 30 dias que a lei estabelece no n.º1 do artigo 689.º do Código de Processo Civil.

A dissonância de posição por parte da Recorrente reporta-se ao início do referido prazo de interposição, que a lei fixa a partir do trânsito em julgado do acórdão recorrido. [...]

Como expressámos na decisão singular proferida, o entendimento da Recorrente não pode ser acolhido.

Na verdade, o n.º 5 do artigo 139.º do Código de Processo Civil, visa constituir um acréscimo temporal de tolerância permitindo que a parte pratique o acto (com pagamento de multa) nos três dias úteis subsequentes ao termo do mesmo. Nesse sentido, o prazo de três dias só assume relevância como tal (enquanto direito de praticar o acto) se a parte, efectivamente, o exercer praticando o acto. Nas situações em que a parte não o exerce não podem os três dias ser entendidos como um “acréscimo” de prazo e, como tal, mostra-se irrelevante para a contagem do trânsito em julgado.

Por conseguinte, transitado em julgado o acórdão recorrido a 02-03-2023, não pode deixar de se reafirmar a conclusão a que chegou a decisão singular ao considerar que, em 24-04-2023, quando da interposição do recurso de uniformização de jurisprudência, encontrava-se ultrapassado o prazo (peremptório) de 30 dias previsto no n.º1do artigo 689.º do CPC (que ocorreu a 11-04-2023), mostrando-se, por isso, extemporâneo o recurso que a Recorrente veio interpor."

[MTS]


29/05/2024

Jurisprudência 2023 (180)


Processo de insolvência;
legitimidade para recorrer; MP


1. O sumário de STJ 17/10/2023 (1892/19.5T8AVR-L.P1.S1) é o seguinte: 

I- O Ministério Público, ao abrigo do art. 4º, n.º 1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público, quer na qualidade de representante do credor Estado com créditos graduados no processo de insolvência, quer enquanto defensor do interesse público, nos termos do art.325º, n.º 3 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) tem legitimidade para recorrer contra a decisão que fixa a remuneração do administrador da insolvência.

II- No cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência, o valor de 5% referido no n.º 7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, não tem como objeto o montante total apurado para satisfação dos créditos (ou seja, o apurado depois de extraída a parcela correspondente à percentagem da remuneração variável prevista nos números 4 e 6 do art.23º). Essa percentagem de 5% incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Admissibilidade e objeto do recurso

1.1. Ao presente recurso, porque interposto em processo de insolvência, tem aplicação o regime previsto no art.14º do CIRE, o qual assenta na demonstração da existência de oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito.

Dispõe esta norma:

«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme

O recorrente alega que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.01.2023 (relator Rodrigues Pires), proferido no Proc. n.º 1910/17.1T8STS-F.P1, transitado em julgado (cuja certidão junta), que indica como acórdão fundamento.

Confrontando essas decisões, facilmente se constata que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento adotaram diferentes critérios quanto à interpretação do n.º 7 do art.º 23º do EAJ (na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11.01), no que respeita ao modo de cálculo da remuneração variável do administrador de insolvência. E sobre esta questão jurídica não existe acórdão de uniformização de jurisprudência.

Encontram-se, assim, preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista exigidos pelo artigo 14º do CIRE.

1.2. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (art.635º, n.4 do CPC), no caso concreto concluiu-se que a questão normativa em revista é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta interpretação e aplicação do regime previsto no n.º 7 do art.º 23º do EAJ.

Porém, o recorrido, nas suas contra-alegações, suscitou a questão de saber se o MP tinha legitimidade para interpor o presente recurso de revista. Tal problema assume, assim, a natureza de questão prévia, por ser suscetível de condicionar a análise da supra enunciada questão do mérito na aplicação do direito substantivo.

*

[...] 3. O direito aplicável:

3.1. Entende o Ministério Público, enquanto recorrente, que o acórdão recorrido fez errada aplicação do n.7 do art.23º do EAJ, em prejuízo da massa insolvente e dos credores, pelo que deve ser revogado.

O recorrido, por sua vez, entende que o Ministério Público não teria legitimidade para interpor o presente recurso de revista. E ainda que assim não se entendesse, o acórdão recorrido deveria manter-se, pois teria feito a correta aplicação da lei ao revogar a decisão da primeira instância que havia fixado a majoração da sua remuneração.

3.2. A questão da legitimidade do MP:

3.2.1. O Ministério Público interpôs o recurso de revista ao abrigo do art.4º, n.1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público e do art. 14º, n.1 do CIRE.

Estabelece o art.4º, n.1, alínea m) do EMP (Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março) que cabe, especialmente, ao MP:

«Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público».

Entende o recorrido que esta norma não confere ao MP legitimidade para recorrer quando o que está em causa é a divergência interpretativa acerca do n.7 do art.23.º do Estatuto do Administrador Judicial.

Em resposta a essa objeção o recorrente veio densificar os fundamentos da sua legitimidade, afirmando que:

«No âmbito do processo de insolvência, e para além do exercício da ação penal que possa justificar-se, o Ministério Público desenvolve várias outras competências, como a defesa de certos interesses, em representação de certas entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.ºs 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, do CIRE) e a defesa da legalidade no curso do processo, em conformidade com o citado art.º 219.º, n.º 1, da CRP, e art.ºs 2.º e 4.º, n.º1, do Estatuto do MP.

De facto, o CIRE contém normas que atribuem funções variadas ao Ministério Público, desde o seu poder de ação (legitimidade ativa) enquanto representante de entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.º 20.º, n.º 1, do CIRE), à faculdade de participar na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 6, do CIRE) e ao ónus de reclamação de créditos de entidades a que deve representação (art.º 128.º, n.º 1 CIRE), defendendo os interesses patrimoniais destas. Mas, noutros casos, o Ministério Público intervém no processo noutra qualidade que não a de representante de credores públicos, e para defesa de outros interesses, que não os de natureza patrimonial.

Como garante da legalidade democrática (art.º 219.º, n.1, CRP, e 2.º e 4.º, n.1, al. a) do Estatuto), o Ministério Público também é chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE), participa no incidente de qualificação da insolvência (art.º 188.º, n.º 3 do CIRE), é autorizado a estar presente na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 2, do CIRE) e é notificado da sentença declaratória da insolvência (art.º 37.º, n.º 2, do CIRE). Portanto, o Ministério Público não é uma entidade estranha ao processo de insolvência, mesmo quando atua em nome próprio, como defensor da legalidade democrática e na sua veste de representação do chamado “Estado-Coletividade”.

Ora, seria até incompreensível que o Ministério Público seja chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE, e depois não poder reagir – designadamente pela via do recurso – se o seu parecer não for acatado, ou for tomada decisão ilegal sobre contas apresentadas

3.2.2. No que respeita ao pressuposto da legitimidade para recorrer das decisões proferidas em processos de natureza insolvencial, o disposto no art.631º do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) deve ser interpretado tendo em conta as especificidades deste tipo de processos, que são processos de natureza e estrutura complexa, nos quais se polarizam interesses de vários sujeitos para além do insolvente e dos credores reclamantes de créditos, como são os interesses de terceiros que celebraram negócios com o insolvente ou os interesses do próprio administrador da insolvência.

Os processos de insolvência apresentam uma sui generis variabilidade de potenciais configurações processuais, dependendo do número de apensos ao processo principal e ainda das diferentes pretensões que podem ser formuladas (com relativa autonomia) no próprio processo principal (como o incidente de exoneração do passivo restante), que os afastam, em vários aspetos, da generalidade dos processos de natureza civil, exigindo ao interprete uma adequada compreensão das regras processuais e do património doutrinal que têm por referente quadros processuais tradicionalmente padronizados (e não as especificidades dos processos de insolvência) [---].

Nos presentes autos, nos quais está em causa uma pretensão remuneratória do administrador da insolvência, a pagar pela Massa Insolvente, não se pode afirmar que, em rigor, exista uma “contraparte” principal, nos termos em que o art.631º, n.1 do CPC concebe a parte principal, enquanto sinónimo de sujeito demandado e, consequentemente, vencido.

O interesse remuneratório do administrador da insolvência não tem como imediato “contra-polo” o interesse direto de um outro sujeito processual que possa assumir a posição de vencido ou de vencedor, ou seja, enquanto parte principal (com inerente poder para dispor da relação processual). Aliás, usando apenas esse critério de natureza formal, concluir-se-ia que dificilmente alguém poderia recorrer de uma decisão como aquela que é objeto do presente recurso.

Todavia, sendo a remuneração do administrador judicial paga pela Massa Insolvente, os credores cujos créditos foram reconhecidos e graduados poderão ser prejudicados pela consequente redução do montante disponível para satisfação dos seus créditos (nomeadamente quando, como frequentemente acontece, a massa não é suficiente para o pagamento de todos os créditos).

Nesta medida, o MP, ao assumir a tutela dos créditos do Estado, constitui-se como representante de um credor que poderá ser diretamente prejudicado pela insuficiência da Massa Insolvente. Acresce que, sendo a Massa responsável pelo pagamento de custas do processo (art.304º do CIRE), cabe ainda ao MP a tutela do interesse no respetivo pagamento.

Por outro lado, para além de representante dos créditos do Estado, cabe ao MP nos processos de insolvência uma multiplicidade de funções que lhe conferem uma posição processual sui generis, assumindo intervenções que se identificam com as de uma parte acessória (art.631º, n.2 do CPC) e, essencialmente, com a defesa do interesse público, no sentido em que o 325º, n.3 do CPC prevê essa intervenção.

Dispõe o art.325º, n.3 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) que:

«O Ministério Público é notificado para todos os atos e diligências, bem como de todas as decisões proferidas no processo, nos mesmos termos em que o devam ser as partes na causa, tendo legitimidade para recorrer quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida

A legitimidade do MP para interpor recursos em nome da defesa do interesse público assume particular expressão no art. 691º do CPC, que lhe confere legitimidade para interpor recurso de uniformização de jurisprudência, mesmo não sendo parte na causa, tendo em vista, precisamente, a tutela dos interesses de certeza e segurança na administração da justiça.

Estes interesses podem ver-se espelhados também, em certa medida, no regime previsto no art.14º do CIRE. Este regime especial pressupõe a existência de oposição de acórdãos como pressuposto da intervenção do STJ no processo de insolvência, tendo em vista a orientação da jurisprudência, dando expressão aos valores de certeza e segurança na administração da justiça. Em certa medida, no caso concreto, ao interpor o recurso previsto no art.14º do CIRE, o MP atua também na defesa desses valores e na inerente promoção do interesse público respeitante à previsibilidade das decisões judiciais.

Conclui-se, assim, que nos termos dos diversos fundamentos legais referidos, o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso de revista."

[MTS]


28/05/2024

Jurisprudência 2023 (179)


Petição inicial;
petição inepta; petição deficiente

1. O sumário de RG 19/10/2023 (112/23.2T8VRL.G1) é o seguinte: 

I - Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, e é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.

II - A petição inepta distingue-se da petição deficiente; neste caso, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta-se incompleta, ou com imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto.

III - Não se verificando a ineptidão, mas apresentando-se a petição deficiente deve ser proferido despacho pré-saneador convidando o autor a aperfeiçoar o seu articulado (cfr. artigo 590º n.º 2 e 4 do CPC).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Inconformados com o despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo, na parte em que julgou verificada a ineptidão da petição inicial, vieram os Recorrentes invocar em primeiro lugar que a dispensa da audiência prévia, sem mais, é suscetível de configurar uma omissão de formalidade legal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195º n.º 1 do CPC e violação do principio do contraditório e da cooperação.

Sustentam ainda que a petição inicial não é inepta, que o Tribunal a quo devia ter procedido ao aproveitamento do articulado dos Autores e proferido um despacho pré-saneador, convidando-os a aperfeiçoar o articulado apresentado, e que a decisão recorrida é nula nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

São estas, por isso, as questões que se colocam no presente recurso e que importa apreciar e decidir.

Para o efeito, as incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório e no despacho recorrido.

Relembramos o teor deste último, que transcrevemos na parte que aqui releva:

“(…) Sobre a exceção de ineptidão da p.i: art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil

Conforme referem os autores na sua réplica, os réus invocam a ineptidão da p.i com dois fundamentos distintos, a saber, uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, bem como uma alegada ininteligibilidade do pedido. No tocante à ininteligibilidade, os réus consideram que a p.i é inepta pela omissão de elementos essenciais que levam à falta de causa de pedir, sendo o pedido nela inserto suportado por conclusões; com efeito, alegam não perceber em que prédio rústico dos autores ou propriedades como dizem, estes alegam ter danos, pois apenas se referem aos mesmos na globalidade, sem identificar em cada facto, o prédio rústico que alegadamente foi usurpado e destruído; no tocante à contradição, alegam existir contradição na p.i entre os pontos 10, 11, 12, 19 e 20, na medida em que ora dizem que a faixa de terreno é propriedade dos réus, ora dizem que é parte integrante do prédio dos autores. Concluem assim que a petição é inepta nos termos indicados.

Em sede de réplica, os autores consideram que da conjugação dos seus citados artigos 10.º a 12.º, resulta claro que os autores, quando se reportam à parcela de terreno propriedade dos RR. se referem àquela que é, efetivamente, titulada por estes, situada junto dos aludidos prédios rústicos titulados pelos autores e não à parcela de terreno dos autores ocupada pelos réus, como pretendem estes fazer crer, induzindo em erro o douto tribunal; mais alegam que numa leitura atenta da p.i que a identificação dos prédios é realizada, discriminando-se os artigos matriciais dos terrenos propriedade dos AA., juntando-se, ainda, aos autos as respetivas certidões prediais: terminam peticionando a improcedência da exceção alegada.

Isto posto:

A ineptidão da petição inicial consiste numa exceção dilatória geradora da nulidade de todo o processo (art. 186º, n.º 1 e art. 577º, al.b), ambos do Cód de Proc Civil).

O Código de Processo Civil considera que é inepta a petição quando (a) falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; (b) o pedido estiver em contradição com a causa de pedir ou (c) se cumulem causas de pedir e pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186º, n.º 1, al.b) do Cód de Proc Civil). [...]

In casu, o Tribunal considera que se verificam os vícios apontados, a contradição entre o pedido e a causa de pedir e a ininteligibilidade da causa de pedir.

Em primeiro lugar, na sua douta p.i, os autores alegam ser proprietários de dois imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º; posteriormente, alegam que os réus são praticaram diversos atos de ocupação de parte de ambos imóveis (pontos 13 a 17) e terminam peticionando a condenação dos mesmos a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do imóvel descrito no artigo 1º da presente petição inicial e de que a parcela de terreno de que os réus se apoderaram, numa área aproximada de 300 m2 é parte integrante do prédio dos autores.

Ora, uma simples leitura da p.i revela que o ponto 1 da p.i não se refere a um mas a dois imóveis (inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º;), sendo que os autores peticionam a condenação dos réus no reconhecimento da propriedade de um, sem especificar qual; por outro lado, os autores ora alegam que os réus ocuparam parte de ambos os imóveis (cfr pontos 13 a 17, onde se referem sempre aos imóveis no plural), ora alegam que os réus ocuparam uma parte de um dos imóveis com a dimensão de 300m2 e pretendem a condenação dos réus na desocupação do mesmo e reposição no estado anterior à ocupação (mais uma vez sem especificar qual deles).

Conforme decorre do exposto no parágrafo anterior, os autores vão referindo-se alternadamente à ocupação de ambos os imóveis e à ocupação de um só imóvel, peticionando o reconhecimento do direito de propriedade sobre ele e a correspondente desocupação, sem nunca identificar o imóvel em concreto.

Daqui decorre que o pedido formulado pelos autores se encontra em contradição com a causa de pedir pois pede a desocupação de um dos prédios (sem especificar qual) e ao longo da sua exposição vai acusando os réus de terem ocupado dois prédios (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.b) do Cód de Proc Civil).

Em segundo lugar, entendemos que o pedido formulado pelos autores é ininteligível, pois peticiona o reconhecimento do direito de propriedade sobre um dos prédios, quando o artigo para que remete menciona dois (artigos 1255º e 1280º), o que gera o vício referido no art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil.

Note-se que em sede de réplica teve a oportunidade de especificar quais o imóvel em concreto que alegam ter sido ocupado, sem que o tenham feito, pelo que não se irá proceder a um novo convite ao aperfeiçoamento pois já tiverem a possibilidade de o fazer.

Termos em que consideramos nulo todo o processo, por inepetidão da p.i, com os fundamentos indicados (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) e b) do Cód de Proc Civil)”.

Vejamos então se assiste razão aos Recorrentes. [...]

***
3.2. Da ineptidão ou da prolação de despacho pré-saneador a convidar os Autores ao aperfeiçoamento da petição inicial

Sustentam por fim os Recorrentes que, apesar de se não verificar a ineptidão da petição inicial, a padecer a mesma de alguma desconformidade sempre poderia ser de alguma imprecisão, suscetível de sanação, pelo que deveria o Tribunal a quo ter procedido ao aproveitamento do articulado dos Autores, e, bem assim, proferido um despacho pré-saneador, convidando a aperfeiçoar o articulado apresentado.
Vejamos.

Dispõe o artigo 186º n.º 2 do CPC que:

“2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

Por outro lado, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (n.º 3 do mesmo preceito).

Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, correspondendo a ininteligibilidade à falta daqueles.

Como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Almedina, 1945, p. 359 e sgs.) uma petição é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.

No que toca à causa de pedir, impõe-se que os factos essenciais sejam apresentados com clareza e concisão. A causa de pedir traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (cfr. artigo 581º n.º 4 do CPC), consistindo a falta de causa de pedir na omissão dos factos essenciais que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.

Quanto ao pedido a lei processual “impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da ação (…)” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, p. 105).

A autor deve expressar a sua vontade de forma a que a mesma possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença; assim, será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstrato como quando o autor pretende proibir o réu de todo e qualquer ato ofensivo de interesses do autor, ou ainda quando pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação, ou o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores.

Da petição inepta deve, contudo, distinguir-se a petição deficiente; neste caso, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta-se incompleta, ou com imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto.

Assim, a petição inepta, nos termos referidos, não pode ser objeto de convite ao aperfeiçoamento; de facto, careceria de qualquer sentido determinar o aperfeiçoamento quando não existe de todo (falta) ou é ininteligível o pedido ou a causa de pedir.

Não se verificando a ineptidão, mas apresentando-se a petição deficiente, deve ser proferido despacho pré-saneador convidando o autor a aperfeiçoar o seu articulado (cfr. artigo 590º n.º 2 alínea b) do CPC).

“A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos  factos essenciais em que se estriba  a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/03/2015, Processo n.º 6500/07.4TBBRG.G2,S2, Relator Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt).

Analisemos então o caso concreto. [...]

Da análise dos articulados (petição inicial e réplica) apresentados pelos Autores resulta alegado que são donos e legítimos proprietários de dois prédios rústicos, sitos no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., destinados à cultura de oliveiras e vinha, registados na competente Conservatória do Registo Predial ..., respetivamente, sob o artigo n.º ...80 e ...55, pedindo em primeiro ligar a condenação dos Réus no reconhecimento dos Autores enquanto donos e legítimos proprietários dos supraditos prédios rústicos.

Alegam ainda que desde o dia .../.../2021, os Réus por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, têm vindo a cortar, arrancar e destruir árvores de fruto, nomeadamente 2 (dois) pessegueiros, 1 (uma) ameixoeira, 2 (duas) oliveiras, 2 (dois) marmeleiros, 1 (um) cipreste, 1 (uma) figueira e 16 (dezasseis) videiras, todas localizadas nos aludidos prédios rústicos; que entre os dias 26 e 28 de fevereiro de 2022, os Réus, por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, invadiram os aludidos prédios rústicos e destruíram 6 (seis) manilhas de 40 cm, propriedade dos Autores, usando, para tanto, uma máquina/trator com a matrícula ..-XP-.. e que em março de 2022, invadiram novamente os aludidos prédios rústicos, principalmente o prédio identificado no artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado no artigo n.º ...5, e iniciaram a remoção/deslocação de terras, recorrendo ao uso de maquinaria pesada e procederam à plantação de algumas oliveiras, atuando como se os aludidos prédios fossem sua propriedade e deslocaram e alteraram marcos divisórios, através da destruição e posterior reconstrução de muros e marcos divisórios das propriedades, usurpando vários m 2 de propriedade, mormente a área aproximada de 300 m.

E no artigo 55º do articulado de réplica reiteram que pretendem ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno que os Réus invadiram, principalmente no prédio identificado com o artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado com o artigo n.º ...5, mormente numa área aproximada de 300 m2.

Assim, e da leitura dos seus articulados conclui-se que os Autores, alegando serem proprietários de dois prédios, invocam a prática de atos pelos Réus violadores desse direito, designadamente a ocupação de uma parcela de terreno com cerca de 300 m2 que faz parte desses seus prédios. E pretendem a condenação dos Réus no reconhecimento desse seu direito de propriedade e na entrega da parcela aos Autores, repondo o estado em que esta se encontrava, retirando as plantações indevidamente cultivadas, abstendo-se de, no futuro, praticar atos que perturbem a posse e o direito de propriedade dos Autores.

É certo que no pedido de reconhecimento da parcela mencionam “referido prédio” em vez de “referidos prédios”, mas no contexto de toda a sua alegação facilmente se percebe, tal como os Recorrentes alegam, que tal se deve a um lapso de escrita, devendo ler-se no plural.

Da interpretação da petição inicial resulta, quanto a nós, que a alegação e a pretensão dos Autores são perfeitamente inteligíveis, não padecendo de contradição.

De referir que a apreciação de uma peça processual deve partir do pressuposto que a mesma terá que ser interpretada no sentido de apurar se a mesma permite a um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (cfr. artigos 236° e 295º do Código Civil) compreender o que está em causa na relação material em litígio.

À interpretação dos articulados devem aplicar-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar dos mesmos e tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma (neste sentido v. o Acórdão desta Relação de 31/10/2019, Processo n.º 4180/18.0T8BRG.G1,Relatora Margarida Almeida Fernandes, disponível em www.dgsi.pt).

De facto, o esforço interpretativo deve ser feito no sentido de procurar, dentro do possível, dirimir materialmente os conflitos que são colocados nos tribunais, tendo presente uma preocupação de prevalência do fundo sobre a forma de molde a procurar ir ao encontro do que é efetivamente pretendido pelas partes no processo, independentemente de eventuais incorreções formais.

Não subscrevemos, por isso, o entendimento do tribunal a quo da verificação de contradição entre o pedido e a causa de pedir e de ininteligibilidade da causa de pedir; como já referimos, a alegação e a pretensão dos Autores afiguram-se-nos perfeitamente inteligíveis, não podendo a menção a “referido prédio”, no contexto de toda a petição inicial, desencadear a invocada ineptidão da petição inicial.

Contudo, a petição inepta distingue-se da petição deficiente, aqui se abarcando os casos em que, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto.

In casu, embora a causa de pedir e o pedido sejam compreensíveis, concluímos que a petição inicial apresenta insuficiências na matéria de facto respeitante à identificação da referida parcela com cerca de 300 m2, pois, embora seja referido pelos Autores que a mesma se situa nos dois prédios rústicos por si identificados, principalmente no prédio identificado com o artigo n.º ...0 e em parte do prédio identificado com o artigo n.º ...5, não concretizam a área ocupada em cada um dos referidos prédios e nem indicam as respetivas delimitações e/ou outros elementos identificadores.

Tais insuficiências, entendemos nós, podem ser supridas mediante o convite de aperfeiçoamento da petição inicial nos termos previstos no artigo 590º n.º 2 alínea b) e 4 do CPC, pelo que tem, nesta parte, de proceder o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a notificação dos Autores para querendo procederem ao aperfeiçoamento da petição inicial, apresentando no prazo de 15 dias articulado em que completem o inicial nos moldes acima referidos."

[MTS]


27/05/2024

Jurisprudência 2023 (178)


Responsabilidade civil;
competência material; tribunais administrativos e fiscais


1. O sumário de RC 10/10/2023 (119/23.0T8GRD.C1) é o seguinte:

I - Sendo a Ré União de Freguesias de ..., ... e ... uma pessoa coletiva de direito público, e fundando-se a causa de pedir em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos.

II - O fundamento para o pedido indemnizatório formulário consiste na responsabilidade civil aquiliana de todos os Réus, porque todos eles com a sua atuação/omissão, negligente, terão ocasionado o incêndio causador de prejuízos ao Autor, pelo que respondem solidariamente perante o lesado, pelo que a regra de competência por extensão prevista no art.º 4º, n.º 2, do ETAF é aplicável.

III- Se este opta por demandar todos os responsáveis concausais na mesma ação, encontrando-se entre os demandados uma pessoa coletiva de direito público, a ação deve ser proposta num Tribunal Administrativo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os Autores intentaram a presente ação, pedindo que os Réus fossem condenados, solidariamente, a indemnizá-los pelos prejuízos que sofreram em consequência de um incêndio num prédio de que são proprietários, imputando aos Réus a responsabilidade pelos prejuízos que resultaram da eclosão do incêndio.

A competência em razão da matéria afere-se pelos termos do litígio tal como é apresentado pelos demandantes, aí relevando a natureza da relação jurídica controvertida que integra a causa de pedir.

Um dos Réus é a União de Freguesias de ..., ... e ....

Relativamente a esta Ré, os Autores fundamentam a sua responsabilidade, na seguinte alegação:

48 . A Ré União de Freguesias é responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos que lhe foram ocasionados por facto ilícito extracontratual cometido no exercício da função administrativa de gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída, inclusivamente pelo exercício anormal daquelas funções, já que atentas as circunstâncias e padrões médios de resultado lhe era razoavelmente exigível evitar os danos produzidos ao Autor (art.1º, nºs 1 a 3, e 2, art. 3º, e art. 7º, nº3 e 4, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas coletivas de direito público.

49. Caso assim não se entenda, a Ré União de Freguesias é objetivamente responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos que lhe foram ocasionados e decorrentes da concreta atividade administrativa especialmente perigosa, realizada na consecução da gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída (art.11º, nº1, da cit. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro).

50. Caso assim não se entenda, a Ré União de Freguesias é objetivamente responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos especiais e anormais que lhe foram ocasionados na consecução do interesse público da gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída (art.16º, nº1, conjugado com o art.2º, da cit. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro). [---]

Como consta do Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011 [---]o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns.

No mesmo sentido, se pronunciou o Acórdão do STJ, de 1 de Março de 2018 [---], ao dizer que com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

Ou ainda, mais recentemente, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 5 de Maio de 2021 [---], reafirmando que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, veio trazer para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal todas as acções de responsabilidade civil extra-contratual instauradas contra entidades públicas, incluindo a responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional, tornando-se desnecessário apurar se o ato indicado como fonte obrigação de indemnizar, como tal indicado pelo autor, deve ser considerado um ato de gestão pública ou de gestão privada.

Assim, sendo a Ré União de Freguesias de ..., ... e ... uma pessoa coletiva de direito público, e fundando-se a causa de pedir em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos, improcedendo este fundamento do recurso.

Já os restantes Réus, solidariamente demandados, são pessoas coletivas e singulares de direito privado.

Apesar do apuramento da responsabilidade civil extracontratual dos particulares competir, em regra, aos tribunais comuns, atenta a competência residual destes tribunais - art.º 64º do C. P. Civil -, uma vez que eles foram demandados solidariamente com uma pessoa coletiva de direito público na mesma ação, há que ponderar a aplicação do disposto no art.º 4º, n.º 2, do ETAF - pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

Note-se que não basta, que tenha sido pedido que o tribunal condene solidariamente pessoas coletivas de direito público e particulares, para que a competência para a apreciação dos pedidos deduzidos contra os particulares também seja atribuída aos Tribunais administrativos, sendo necessário que tenham sido alegados os factos de onde derive que as diferentes obrigações de indemnizar tenham entre si uma relação de solidariedade, a qual, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária dos demandados [---]

Com a presente ação os Autores pretendem que os Réus sejam condenados a indemnizá-los pelos prejuízos que sofreram com a destruição duma plantação de cedros provocada por um incêndio.

Para tanto alegam que no dia 30.05.2019, pelas 15.30 horas, deflagrou um incêndio numa área florestal, sita no lugar ..., perto da localidade de ..., sito na União de Freguesias de ..., ... e ..., concelho ..., o qual foi provocado em consequência direta e necessário da utilização de uma capinadeira de corta-mato, acoplada ao trator agrícola de matrícula ..-NB- .., tripulado por CC, pertencente à Ré sociedade A..., Unipessoal, Lda. [...]

Da exposição factual dos Autores resulta que o fundamento para o pedido indemnizatório formulário consiste na responsabilidade civil aquiliana de todos os Réus, porque todos eles com a sua atuação/omissão, negligente, terão ocasionado o incêndio causador de prejuízos ao Autor.

O art.º 497º, n.º 1, do C.  Civil, inserido no capítulo dedicado à responsabilidade civil extracontratual, dispõe que se forem várias pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade, pelo que, atenta a causa de pedir configurada pelos Autores, verifica-se uma relação de solidariedade entre os Réus, pelo que a regra de competência por extensão prevista no art.º 4º, n.º 2, do ETAF é aplicável.

Os Autores argumentam que o referido preceito apenas se aplica às situações de litisconsórcio necessário e não nas situações de litisconsórcio voluntário, como a que ocorre neste processo.

A tese de que a competência por extensão só se aplica nos casos de litisconsórcio necessário tem apoio nalguma jurisprudência [---], que vê na referência aos litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares, uma referência restritiva aos casos de litisconsórcio necessário.

No entanto, o termo devam, não tem aqui o significado duma obrigatoriedade de demanda plural, apenas se reportando a uma opção do demandante.

Se este opta por demandar todos os responsáveis concausais na mesma ação, encontrando-se entre os demandados uma pessoa coletiva de direito público, a ação deve ser proposta num Tribunal Administrativo.

Como se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2018, aquela interpretação restritiva do art.º 4º, n.º 2, do E.T.A.F., além de reduzir drasticamente o efeito útil da norma, é contrariada pelos termos do preceito, na medida em que a respetiva previsão, ao apontar expressamente situações de solidariedade, indica situações que constituem casos clássicos de litisconsórcio voluntário. O imperativo contido no verbo dever bem pode residir, em certos casos, nomeadamente de litisconsórcio voluntário, na vontade do lesado demandante. Temos, pois, que a exclusividade da competência dos tribunais administrativos para julgar ações que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público arrasta, por força do n.º 2 do art.º 4º do ETAF, para os tribunais administrativos a competência para julgar a concorrente responsabilidade civil de particulares.

Aliás, só assim se compreende que o Tribunal de Conflitos quando aprecia aplicabilidade do art.º 4º, n.º 2, do ETAF, apenas se preocupa que a responsabilidade entre os diversos demandados seja solidária, nunca tendo exigido que se estivesse perante uma situação de litisconsórcio necessário.

Assim sendo, revela-se correta a decisão recorrida que julgou o tribunal recorrido incompetente em razão da matéria."

[MTS]

24/05/2024

Jurisprudência 2023 (177)


Penhorabilidade parcial
subsídios de férias e de Natal*


I. O sumário de RL 26/10/2023 (1046/12.1T2SNT-B.L1-2) é o seguinte:

1- Sempre que o executado pretenda suscitar a questão da redução/isenção da penhora, não porque foram violados os limites objectivos de penhorabilidade relativamente aos valores sobre que incidiu, mas em razão das suas concretas condições de vida, não está sujeito ao prazo peremptório a que respeita o nº 1 do art.º 785º do Código de Processo Civil.

2- A garantia de um salário mínimo e de uma existência minimamente condigna, que está na génese da impenhorabilidade que resulta dos nº 1 e 3 do art.º 738º do Código de Processo Civil, não diz respeito apenas a doze prestações mensais por ano, mas abrange igualmente os subsídios de Natal e de férias (quer respeitem a trabalhadores no activo, quer a pensionistas), num total de catorze prestações por ano.

3- Assim, os subsídios de Natal e de férias (de trabalhadores no activo ou de pensionistas) que sejam inferiores ao montante legalmente fixado para o salário mínimo nacional serão, em qualquer caso, impenhoráveis.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No despacho recorrido ficou assim sustentada a impenhorabilidade dos subsídios de férias e de Natal pagos ao executado AA J.:

De acordo com o art. 738.º, n.º 1, al. a), são impenhoráveis “dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.”, acrescentando o seu n.º 3 que “A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.”.

A impenhorabilidade parcial aqui prevista baseia-se em razões económico‑sociais, que se prendem com a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de Portugal como República soberana, nos termos do art. 1.º da Constituição da República Portuguesa.

Em caso de colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu direito, apoiado no n.º 1 do art. 62.º da Constituição da República Portuguesa, como direito de acesso à propriedade, e o direito fundamental dos trabalhadores em perceberem um rendimento que lhes garanta uma sobrevivência condigna, optou o legislador pelo sacrifício do direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for necessário, mesmo totalmente, neste caso para evitar que o devedor se torne num indigente a cargo da sociedade (cfr. Fernando Amâncio Ferreira, in «Curso de Processo de Execução», Almedina, 6.ª Ed., pág. 178).

Em causa está, pois, o princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de Direito resultante das disposições conjugadas dos arts. 1.º, 59.º, n.º 2, al. a) e 63.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

Subjacentes às impenhorabilidades contidas no citado art. 738.º estão valores morais, sociais e humanitários, até porque tais impenhorabilidades não podem ser alteradas por convenção das partes nem o devedor pode renunciar à protecção que a lei por esse meio lhe concede, devendo, inclusivamente, ser considerados nulos todos os negócios jurídicos que se estabeleçam em contrário (art. 294.º do Código Civil).

O valor que o legislador considerou como o mínimo indicativo essencial para assegurar o sustento minimamente digno da pessoa humana é o de um salário mínimo nacional, “remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2002, de 23 de Abril).

Actualmente o salário mínimo nacional está fixado em € 760,00 (Decreto Lei n.º 85-A/2022 de 22 de Dezembro).

Para alguns, como é o caso do Conselheiro Cura Mariano (cfr. voto de vencido no Acórdão do Ac. TC n.º 770/2014), “no caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular. Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência”.

Segundo o referido Conselheiro, “quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador. E se os rendimentos de prestações periódicas deixam de ter justificação para estar a salvo, quando o executado dispõe de outros rendimentos ou de bens que lhe permitam assegurar a sua subsistência, os subsídios de férias e de Natal não podem ser considerados outros rendimentos para esse efeito, uma vez que eles integram o referido mínimo dos mínimos. Os subsídios de férias e de Natal não são outros rendimentos diferentes da pensão paga mensalmente, mas o mesmo rendimento periódico, cujo momento de pagamento coincide com o das prestações mensais.”

Na doutrina, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro entendem também que se o valor do subsídio for igual ou inferior ao salário mínimo nacional, o subsídio é impenhorável, ainda que seja pago numa única prestação e que a soma desse mesmo subsídio com o vencimento corresponda a um valor superior ao salário mínimo nacional (in «Primeiras Notas ao Código de Processo Civil», II, pág. 260).

Neste mesmo sentido vai também o Acórdão da Relação do Porto, de 28.06.2017, onde se escreveu que “os subsídios de Natal e de férias, que são direitos do trabalhador nos termos gerais (e não complementos facultativos), também estão garantidos pela legislação que garante o salário mínimo (ver artigos 263.º, 264.º e 273.º do Código do Trabalho). Também eles se incluem na garantia de uma subsistência tida por minimamente condigna. Ou seja, essa garantia de um salário mínimo e de uma existência minimamente condigna não diz respeito apenas a doze prestações mensais por ano, mas a catorze. Assim, os subsídios de Natal e de férias (de trabalhadores no activo ou de pensionistas) que sejam inferiores ao montante legalmente fixado para o salário mínimo nacional serão, em qualquer caso, impenhoráveis, nos termos do artigo 738.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil”.

Mas, como no citado acórdão da Relação do Porto se refere, mesmo para quem entende que o montante garantido pela legislação do salário mínimo (com a consequente impenhorabilidade) corresponde apenas a doze prestações mensais, como parece ser a posição da maioria da jurisprudência das Relações, deve ter-se presente que: “se o montante das pensões auferidas for inferior ao salário mínimo nacional e a essas pensões acrescem subsídios de Natal e de férias, há que considerar o montante global desses rendimentos e dividi-lo por doze; e se o montante apurado com tal divisão for inferior ao montante legalmente fixado para o salário mínimo os referidos subsídios também serão impenhoráveis. É o que, claramente, impõe a ratio da norma que, em nome da salvaguarda da dignidade humana, impõe a impenhorabilidade de pensões inferiores ao salário mínimo nacional. À luz dessa ratio, não teria sentido admitir a penhora de um subsídio pago num só mês (altura em que, ocasionalmente, a soma da pensão e do subsídio poderá ser superior ao montante legalmente fixado para o salário mínimo), quando tal não seria admissível se esse subsídio fosse pago em duodécimos (pois, neste caso, já a soma da pensão e de cada um desses duodécimos será inferior ao montante legalmente fixado para o salário mínimo). Há que considerar a situação global do executado, não uma prestação isolada”. Sufragando este entendimento, são ali apontados o Acórdãos da Relação do Porto, de 08.03.2016, e o da Relação de Guimarães, de 18.04.2013 (proc. n.º 537-A/2002.G1).

Neste último aresto, ao referir que “o que releva para aferir da impenhorabilidade das prestações periódicas pagas ao executado a título de pensões ou de regalia social é o seu valor global e não fraccionado”, explica-se o alcance prático do postulado firmado nos seguintes termos: “se o rendimento anual do devedor, repartido pelos 12 meses do ano, não for inferior ao valor do salário mínimo nacional, nada obsta a que se proceda à penhora do 13º e 14º mês, na parte em que exceda aquele valor”, o que, obviamente, implica que se, pelo contrário, o for, não poderá o mesmo ser penhorado.

O referido acórdão defende esta posição invocando a fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2002, publicado no DR I Série – A, de 02.07.2002, que, de acordo com o próprio voto de vencido do Conselheiro Mota Pinto ali exarado, conduz à conclusão de que “…dentro da própria lógica do aresto…, o critério para a «proibição constitucional de penhora» há-de, com certeza, residir, não tanto na comparação do salário mínimo com o valor (fraccionado ou global) das prestações auferidas pelo devedor, como na comparação com o rendimento que lhe restaria depois da penhora - ou seja, com o seu rendimento remanescente.”.

Dado o espírito da norma que prescreve a impenhorabilidade e a natureza retributiva das prestações em causa que, usando as palavras de Bernardo Gama Lobo Xavier, entendemos constituírem “um salário diferido, que se vai amontoando mensalmente a favor do trabalhador” (cfr. Manual do Direito do Trabalho, pág. 591), também nós aderimos a esta posição.

Também no acórdão da Relação de Lisboa, de 21.05.2020, Proc. 41750/04.6YYLSB-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt, se decidiu que:

“I - Para efeitos do disposto no art. 738.º do CPC, o subsídio de Natal integra o conceito de vencimentos ou salários em sentido amplo ou, pelo menos, quando o executado aufira o salário mínimo nacional, o conceito de “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, sendo, em regra, impenhorável 2/3 da parte líquida do rendimento a que se refere esse artigo.

II - Ademais, atento o limite previsto no n.º 3 desse artigo, o rendimento mensal líquido ou disponível do executado, incluindo, quando seja caso disso, o valor duodecimal do subsídio de Natal, não pode nunca ficar abaixo do montante equivalente ao salário mínimo nacional ilíquido, à data da (pretendida) penhora; se isso acontecer, não pode ser efectuada a penhora (a menos que o executado tenha outra fonte de rendimento).”

E no acórdão da mesma Relação de Lisboa, de 03.02.2022, Proc. 910/04.6YYLSB-A.L1-6, também disponível in www.dgsi.pt, que:

“Auferindo a executada uma pensão de reforma que, somada aos duodécimos dos “montantes adicionais” (v.g. subsídios de férias e de Natal) a que tem direito nos termos do artº 41º do DL 187/2007, de 10/05, seja inferior ao salário mínimo nacional, os referidos “subsídios/montantes adicionais” e a pensão são impenhoráveis, nos termos do artigo 738º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.”.

No caso, mostra-se assente que o valor da pensão auferida pelo executado é de € 634,18 mensais.

Multiplicado este valor por catorze, concluímos que o valor anual da pensão do executado é de € 8.878,52; e, dividido este valor por doze, encontramos o montante de € 739,88, ainda inferior ao salário mínimo nacional que, como se referiu, é de € 760,00 mensais.

Conclui-se por isso que os subsídios de férias e de Natal do executado são impenhoráveis”.

Já a exequente entende que a decisão recorrida viola o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, entendido o mesmo como a afirmação de “um mínimo de certeza e segurança, nomeadamente, e no caso em concreto, no direito do credor e nas consequentes expectativas juridicamente criadas com vista ao ressarcimento necessário”.

Certamente não ignora a exequente que o seu direito à realização coactiva da prestação pecuniária que emerge da celebração do contrato de mútuo com hipoteca e fiança não se apresenta com carácter absoluto, antes estando limitado, para além do mais, pelo seu fim económico e social. O que significa, desde logo, que o princípio geral que emerge do art.º 601º do Código Civil, segundo o qual “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora”, não significa a possibilidade de a exequente executar todo e qualquer bem e/ou direito do executado AA J., antes estando limitado (e como bem se refere no despacho recorrido) pela necessidade de garantir a este uma sobrevivência condigna, e ainda que com sacrifício do direito do credor, já que só assim se respeita o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. O que conduz à determinação de limites de penhorabilidade do património do executado AA J. que se assumam como concretizadores da referida garantia constitucional.

Dito de outra forma, na colisão entre o direito da exequente e o direito do executado AA J. verifica-se a opção pela prevalência deste último, na medida do necessário a fazer cumprir o referido princípio fundamental.

E, nessa medida, ao tribunal recorrido cumpre observar e fazer observar tal opção constitucional, o que significa que, colocado perante uma concreta interpretação e aplicação do art.º 738º do Código de Processo Civil que se apresente como desconforme à referida opção, está obrigado a corrigir tal desconformidade, afirmando a interpretação e aplicação da norma legal que se reconduz à conformidade constitucional perdida.

Pelo que, por esta via, não se pode afirmar que a actuação do tribunal recorrido, declarando a impenhorabilidade dos subsídios de férias e de Natal que são entregues ao executado AA J., configura uma violação do referido princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança.

Todavia, entende igualmente a exequente que a interpretação que o tribunal recorrido fez dos limites de impenhorabilidade que decorrem dos nº 1 e 3 do art.º 738º do Código de Processo Civil não respeita a letra e o espírito da norma, que aponta para a consideração de uma “aferição mensal dos rendimentos e não anual”, sendo esse “o sentido em que todos os Agentes de Execução trabalham e notificam as Entidades Patronais dos Executados”. E, nessa medida, conclui que os subsídios de férias e de Natal pagos em conjunto com pensões não devem ser considerados pela sua natureza ou origem, mas antes pelo seu valor ou montante, sendo considerados acréscimos da pensão e não parte da pensão, para efeitos de se apurar da sua (im)penhorabilidade.

Não se negando a divergência jurisprudencial evidenciada no confronto entre a fundamentação constante do despacho recorrido e a alegação da exequente, é de acompanhar o entendimento do tribunal recorrido e a jurisprudência indicada pelo mesmo.

Com efeito, não se pode esquecer que o que está na génese da indexação dos limites de penhorabilidade de rendimentos do trabalho ou prestações sociais ao valor do salário mínimo nacional é a consideração de que este representa a medida da subsistência tida por minimamente condigna.

Assim, se “o nº 1 [do art.º 738º do Código de Processo Civil] estabelece a regra geral da impenhorabilidade da parte líquida de dois terços dos rendimentos periódicos do executado (pessoa singular), no pressuposto de que realizam uma função alimentar (“subsistência do executado”)” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 105), se resulta dos art.º 263º e 264º do Código do Trabalho que o trabalhador tem direito a subsídio de Natal e a subsídio de férias, por força do trabalho prestado e nos mesmos termos em que tem direito à retribuição mensal, assim se entendendo pacificamente que tais subsídios integram o conceito amplo de retribuição, e se resulta ainda do art.º 273º do Código do Trabalho a garantia de uma retribuição mensal mínima, então é de concluir que a impenhorabilidade dos referidos subsídios também se verifica quando os mesmos são em valor inferior ao salário mínimo, porque o princípio da subsistência minimamente condigna que está subjacente à necessidade de fixação do salário mínimo nacional é transversal a toda e qualquer retribuição auferida, assegurando a subsistência de quem a recebe, e ainda que tal retribuição seja paga anualmente em catorze prestações periódicas.

Dito de outra forma, se o que está na génese da impenhorabilidade de qualquer quantia mensal recebida a título de salário ou pensão, que seja igual ou inferior ao salário mínimo nacional, é a necessidade de garantir a subsistência mínima do executado, tendo presente a sua função alimentar, e se as quantias recebidas a título de subsídio de férias e de Natal preenchem igualmente essa função alimentar, devendo por isso ser de valor igual às primeiras e equiparando-se às mesmas, então devem igualmente beneficiar da mesma impenhorabilidade que beneficiam as quantias recebidas a título de salário ou pensão, na medida em que todas elas têm a mesma natureza e asseguram o mesmo fim, independentemente do momento em que são pagas.

Nessa medida não se pode afirmar, como pretende a exequente, que as prestações recebidas a título de subsídio de férias e de subsídio de Natal devam ser consideradas como mero complemento ou acréscimo das retribuições auferidas periodicamente pelo seu titular, para efeitos de não integrarem o mínimo necessário à existência condigna do mesmo e, nessa medida, não serem individualmente abrangidas pela impenhorabilidade a que respeitam os nº 1 e 3 do art.º 738º do Código de Processo Civil.

Pelo contrário, é de acompanhar o afirmado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 13/7/2023 (relatado por Ana Paula Olivença e disponível em www.dgsi.pt), e bem ainda o afirmado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 3/2/2022 (relatado por Adeodato Brotas, disponível em www.dgsi.pt e identificado no despacho recorrido), os quais acompanham e seguem de perto o afirmado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 21/5/2020 (relatado por Laurinda Gemas, subscrito pelo ora 2º adjunto também como 2º adjunto, disponível em www.dgsi.pt e igualmente identificado no despacho recorrido), bem como toda a jurisprudência e doutrina referida neste último, designadamente a declaração de voto constante do acórdão do Tribunal Constitucional nº 770/2014, de 12/11/2014 (na parte que já está reproduzida no despacho recorrido e que, por isso, torna inútil nova reprodução).

Assim, resulta claro do aí exposto que a interpretação da regra da impenhorabilidade não se deve ater à expressão “à data de cada apreensão” constante do nº 3 do art.º 738º do Código de Processo Civil, já que “não é o momento em que são pagas [as prestações periódicas a que se refere o nº 1 do art.º 738º] que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência”. Pelo contrário, o que releva (e relevou na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que esteve na génese do princípio da impenhorabilidade, tal como o mesmo foi positivado), é a consideração do valor do salário mínimo nacional como valor de referência para determinar o mínimo de subsistência, e não deixando de ter presente que o mesmo é pago catorze vezes ao ano.

O que é o mesmo que dizer que os subsídios de férias e de Natal constituem igualmente retribuições a partir das quais o seu titular visa adquirir meios de subsistência, devendo ser garantidos, como as demais doze prestações periódicas mensais entregues (seja a título de salário, seja a título de pensão), na parte em que são iguais ou inferiores ao salário mínimo nacional, e não havendo que os considerar como meros acréscimos ou complementos do valor mensal entregue através das referidas doze prestações periódicas, para efeitos de ficarem sujeitos a penhora, nos termos gerais.

Nessa medida, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, desde logo é de repudiar a afirmação da exequente, reveladora de um total desprezo pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, quando sustenta que se o executado AA J. consegue sobreviver durante dez meses com a quantia mensal de € 634,18 que lhe é entregue a título de pensão de velhice, então os montantes que recebe nos outros dois meses, a título de subsídios de férias e de Natal, não farão diferença relevante para a economia do mesmo, como se, no caso concreto, a garantia de uma existência minimamente condigna se bastasse com a consideração de doze valores mensais inferiores ao salário mínimo nacional, entendendo os restantes valores recebidos como um “luxo financeiro”, apenas porque se constata que o executado AA J. não “morre de fome” durante os meses em que recebe “só” € 634,18 de pensão de velhice.

Do mesmo modo, é de afastar a tentativa da exequente de encontrar qualquer equilíbrio ou concordância entre os direitos em conflito, fundando esse aparente equilíbrio no desrespeito do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana que está subjacente à garantia da existência minimamente condigna do executado AA J., e dando prevalência ao seu interesse puramente patrimonial, no sentido da satisfação do seu crédito em prejuízo daquele valor fundamental e estruturante do Estado de Direito, como bem se assinalou no despacho recorrido.

Assim, quer considerando individualmente o valor de cada um dos subsídios (de férias e de Natal), quer considerando a inclusão do valor dos mesmos no valor anual recebido, dividido por doze meses (como no despacho recorrido), sempre há que afirmar que o rendimento mensal disponível para o executado AA J., e destinado à sua subsistência (atenta a natureza do mesmo), nunca ultrapassa o valor do salário mínimo nacional. Pelo que, por uma via ou por outra sempre há que afirmar a impenhorabilidade de tais subsídios de férias e de Natal, nos termos conjugados dos nº 1 e 3 do art.º 738º do Código de Processo Civil.

O equivale a concluir pela improcedência das conclusões do recurso da exequente, também nesta parte, não havendo que fazer qualquer censura à decisão recorrida."


*3. [Comentário] Em função da redacção do art. 738.º, n.º 3, CPC a melhor interpretação parece ser a que considera a globalidade dos vencimentos, salários ou pensões auferidas pelo executado durante um ano e, depois, divide esse montante global por 12.

São dois os fundamentos que podem ser invocados:

-- O que vale para o limite mínimo tem também de valer para o limite máximo do montante penhorável; é razoável que, para este limite máximo, se contabilizem os 14 recebimentos de vencimentos, salários ou pensões, dado que a média de três salários mínimos por mês pode apenas ser atingida se forem contabilizadas as 14 prestações (e não somente as 12);

-- O regime tem de ser igual para quem recebe 12+2 prestações e para quem recebe 12 prestações mais elevadas, porque em cada uma delas estão diluídas as outras 2 prestações.


MTS