"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/07/2025

Bibliografia (1212)


-- Bove, M., Lineamenti di diritto processuale civile, 8.ª ed. (Giappichelli: Torino 2025)


Jurisprudência 2024 (211)


Processo de insolvência;
prova documental; contraditório


I. O sumário de RL 12/11/2024 (29268/23.2T8LSB-E.L1-1) é, na parte agora relevante, o seguinte:

1 – Não se verificam as nulidades previstas nas alíneas b) e c), do art.º 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil quando a decisão proferida especifica os fundamentos de facto e de direito, sendo igualmente clara e precisa nessa fundamentação.

2 – Não constitui facto de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, nos termos do art.º 412º, n.º 2, do CPC, a menção feita na sentença ao constante de uma lista atualizada das execuções, de acesso público, tendo anteriormente um “print” dessa lista já sido junto aos autos.

3 – Não existe violação do princípio do contraditório, relativamente à não audição pelo tribunal da requerida, relativamente a um documento que agora surge na sua versão atualizada, se o mesmo anteriormente já tinha sido junto aos autos e a requerida tem conhecimento dos seus termos.

4 – Não se verifica violação do disposto no art.º 496º, do CPC, quando se procede à audição, como testemunhas, de dois sócios de uma sociedade de advogados que não representam legalmente a mesma.

5 – Não constitui fundamento para alterar ou aditar a matéria de facto a discordância da parte com a mesma.

6 – Não constitui ainda fundamento para alterar a matéria de facto, as declarações de um depoente de parte não sustentadas em qualquer outra prova, e que contrariam a restante prova produzida nos autos, que foi considerada credível, rigorosa e objetiva.

7 – Igualmente não constitui fundamento para o efeito, as declarações de uma testemunha que revela no seu depoimento falta de rigor e conhecimento fundado na prática de factos por terceiro, sendo que este, ouvido anteriormente, depôs em sentido divergente com o referido pela testemunha. [...]


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Refere a recorrente que o tribunal violou o disposto no art.º 412º, n.º 2, do CPC, mencionando o citado normativo legal que: “Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra desses factos deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.” Invoca ainda a violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 3º, n.º 3, do mesmo diploma legal.

Vejamos o disposto no art.º 11º, do CIRE, na parte que ora nos interessa, com a epígrafe “Princípio do inquisitório”:

“No processo de insolvência (…) a decisão do juiz pode ser fundada em factos não alegados pelas partes.”

O que é que significa a permissão dada por este artigo?

Estão em causa poderes inquisitórios alargados por parte do juiz no processo de insolvência, que extravasam, em muito, os conferidos no processo declarativo comum no Código de Processo Civil, designadamente no que respeita à realização e recolha de provas, o que foi o caso dos autos.

Na espécie, um documento respeitante à consulta à referida lista pública [de execuções] já se encontrava junto aos autos como documento n.º 93.

A questão é a da consulta da mencionada lista atualizada.

Está em discussão um documento cujo acesso é livre, sendo públicos os dados nele contidos, de acordo com o art.º 7º, da Portaria n.º 313/2009, de 30 de março [Portaria que “Regula a criação de uma lista pública de execuções, disponibilizada na Internet, com dados sobre execuções frustradas por inexistência de bens penhoráveis - Artigo 12.º”]

Resulta ainda da mesma Portaria, do seu art.º 3º, n.º 1, que:

“Em simultâneo com a notificação ou citação, previstas nos n.os 1 e 3 do artigo 750.º do Código de Processo Civil, respetivamente, o executado é notificado pelo agente de execução de que, uma vez extinta a execução, dispõe do prazo de 10 dias para pagar a quantia em dívida ou para aderir a um plano de pagamento de dívida elaborado com o auxílio de uma entidade reconhecida pelo Ministério da Justiça, com a cominação de que a não observância de qualquer dos mencionados procedimentos implica a sua inclusão na lista pública de execuções.”

Ora assim sendo, não podemos considerar, em rigor, que o documento em causa foi acessível ao juiz por se encontrar no exercício das suas funções, uma vez que o mesmo é de acesso livre, qualquer pessoa pode aceder àquela lista, independentemente da sua profissão, não se verifica assim a invocada violação do disposto no art.º 412º, nº 2, do CPC., aplicável por via do art.º 17º, do CIRE.

Quanto à violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, também aplicável por via do art.º 17º, do CIRE, importa atentar no disposto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, que determina que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

Como refere Abrantes Geraldes: “A contraditoriedade ao longo de todo o processo é inerente ao adágio “da discussão nasce a luz”, pois só a audição de ambas as partes interessadas no pleito e a possibilidade que lhes é conferida de controlarem o modo de decisão dos tribunais permitirão que a verdade seja descoberta e que sejam acautelados os interesses dos litigantes.” [António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição, Almedina, pág. 75.]

Ora, no caso, está em apreciação um documento que estava anteriormente junto aos autos e sobre o qual a parte teve oportunidade de se pronunciar, um documento público e de que a executada nas ações, ora recorrente, terá conhecimento do seu integral conteúdo, por via do disposto no já citado art.º 3º, n.º 1 da Portaria mencionada. Assim sendo, não podemos dizer que o mencionado documento, neste contexto, constitui uma “surpresa” para a parte, sobre a qual a mesma foi confrontada em sede de sentença e, portanto, que não foi acautelado o interesse da parte.

Podemos assim entender que, face a este enquadramento, não estava vedado ao tribunal consultar nos termos em que o fez a atualização de um documento público, já junto aos autos e que era desnecessária, apenas neste contexto, salienta-se, a nova pronúncia da recorrente sobre o mesmo, sendo os dados constantes daquele, podemos concluir, do seu conhecimento.

Diferente seria se o tribunal sem mais, e sem que o documento estivesse junto aos autos, viesse a servir-se daquele para fundamentar a resposta à matéria de facto, sem consulta das partes. Ora não é claramente o caso, estando a parte prevenida quanto à existência do referido documento nos autos e quanto ao conteúdo do mesmo."

[MTS]


16/07/2025

Jurisprudência 2024 (210)


Valor da causa; fixação;
decisões proferidas em recurso; dever de acatamento


1. O sumário de RP 11/11/2024 (4024/22.9T8VFR-B.P1) é o seguinte:

I - A indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores.

II - A violação desse dever constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida.

III - Quando a parte se recuse a juntar aos autos documento, depois de devidamente notificada para o efeito, deverá o tribunal recorrido seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal, sendo que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido como seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como se referiu é apenas a questão que cumpre apreciar e decidir:

a)- saber se o despacho recorrido ao fixar o valor da ação cumpriu ou não o que foi determinado no acórdão proferido por esta Relação.

Como se evidencia do relatório a autora na petição inicial atribuiu à causa o valor de €50.000,01 euros, por desconhecer os termos do contrato de compra e venda de participações socias, nomeadamente o preço fixado, cuja anulação pede nesta ação.

O tribunal recorrido por despacho de 14/05/2023, não concordando com o valor atribuído pela autora e não impugnado pelos Réus, decidiu atribuir o valor de € 30.000.000,00.

No recurso do citado despacho interposto pela autora, o tribunal da Relação proferiu acórdão em que, revogando o citado despacho, ordenou que fosse fixado à causa o valor que resultasse do termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona.

Acórdão esse devidamente transitado em julgado.

Repare-se, porém, que, antecedentemente do citado dispositivo, se havia exarado o seguinte:

“Aqui chegados, importa concluir que o despacho recorrido não pode subsistir, pois, sendo o segundo pedido aquele que corresponde à utilidade económica da pretensão da apelante, o seu valor há de ser determinado nos termos do artigo 301.º, n.º 1, CPC.

Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

No caso vertente, não se mostra possível determinar qual o valor do ato jurídico por que a apelante declarou desconhecê-lo; o mesmo será apurado logo que o documento que o incorpora seja junto aos autos”[---].

Daqui resulta, sem margem para qualquer dúvida, que para a fixação do valor da ação necessário se tornava que fosse junto aos autos o documento que incorpora o ato jurídico que expressa a utilidade económica do pedido, ou seja, “o termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como HH, FF, BB e DD”.

Dando cumprimento ao decidido pelo tribunal da Relação, o tribunal a quo determinou que os Réus fossem notificados para, querendo, juntar aos autos o documento em causa, o que estes recusaram.

Ora, salvo o devido respeito, o tribunal recorrido só podia ter exarado o despacho nos termos em que o fez (a junção do documento ficava ao critério e livre arbítrio dos réus) se tivesse elementos nos autos (o que, manifestamente, não tinha face ao despacho objeto de recurso) que lhe permitissem fixar o valor à causa nos termos determinados pela Relação sem a junção do documento em causa, pois que, não sendo esse o caso, devia ter ordenado aos réus, tout court, a sua junção.
*

Acontece que, o tribunal recorrido, perante a recusa dos Réus em juntar o documento em questão, fez tábua do que havia sido decidido pelo tribunal da Relação e fixou à ação o valor de € 50.000,01 (cinquenta mil euros e um cêntimo), ou seja, o valor que a autora tinha atribuído na petição inicial esquecendo que, ele próprio, não havia concordado com esse valor por não cumprir os critérios da lei suscitando o respetivo incidente (cf. despacho exarado em 12/04/2023).
*
Diante do exposto, torna-se evidente que o despacho recorrido não pode subsistir, por valor fixado à ação não refletir os critérios elegidos pelo tribunal superior no acórdão que prolatou para tal desiderato, em clara violação, pois, do que foi decidido superiormente.
*

Importa, reter que se lê no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), que os “magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores”; e, de forma idêntica, no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que os “juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”.

Logo, a indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores.

O exposto é reafirmado, no particular campo do processo civil, no art.º 152.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que os “juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores”.

Compreende-se, por isso, que se leia no art.º 42.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que os “tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões”.
*
Aliás, a violação de um tal dever de acatamento de prévia decisão proferida por Tribunal superior, proferida em via de recurso e transitada em julgado, constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida, nomeadamente por o objeto de renovada pronúncia do Tribunal inferior constituir questão de que o mesmo não podia tomar conhecimento [art.ºs 613.º, nº 3 e 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, ambos do CPCivil]. [Cf. neste sentido: Ac. do STJ, de 28.10.1997, Fernando Fabião, Processo n.º 98A233; Ac. da RE, de 31.05.2012, José Lúcio, Processo n.º 855/11.3TBLLE-E1; Ac. da RP, de 11.07.2006, Mário Cruz, Processo n.º 0623350; ou Ac. da RL, de 08.10.2002, Manuel Rodrigues, Processo n.º 95274/18.9YIPRT.L2-6, todos consultáveis em www.dgsi.pt..]
*
Diante do exposto, deverá o tribunal recorrido ordenar que os Réus juntem aos autos o documento em causa [---], decidindo depois em conformidade o incidente do valor da ação nos moldes exarados no acórdão proferido pela Relação em 19/12/2023.
*
Na hipótese de os Réus recusarem a junção do referido documento, deverá o tribunal a quo seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal.

É que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido com seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão."

[MTS]

15/07/2025

Jurisprudência 2024 (209)


Pedido subsidiário;
conhecimento pela Relação


1. O sumário de STJ 14/11/2024 (3994/20.STSVCT.G1.S1) é o seguinte:

I. Na circunstância em que o Tribunal da Relação julga procedente o pedido subsidiário, impugnado pelos Réus na contestação e objecto de resposta em contra-alegações, não ocorre decisão surpresa que justifique novo exercício do contraditório ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº 3, do CPC.

II. A prova plena do documento particular a que alude o artigo 376.º, n.º 1, do CC, reporta ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo a parte fazer prova por testemunhas quanto à falta de coincidência da referida declaração com a realidade.

III. O contrato de intermediação financeira configura um "contrato-quadro", um "negócio de cobertura" ou, um contrato organizatório, que tem a função de previsão das diretrizes gerais do projeto a desenvolver no futuro e das relações negociais.

IV. A nulidade do contrato de intermediação financeira por violação do artigo 9º do RGCC, implica a nulidade dos contratos sucessivos ou de execução, como são os contratos de subscrição dos produtos financeiros.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.1. Nulidade - omissão de pronúncia

Sustentam os Recorrentes, em primeiro lugar, que o acórdão impugnado não se pronunciou quanto à responsabilidade da Interveniente AIG, para a qual haviam transferido a sua responsabilidade, e mais argumentam que deveria a Relação proceder à exigida notificação para o exercício do contraditório, no pressuposto da alteração do sentido decisório da sentença, que lhes veio a ser desfavorável.

Apreciemos.

As questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal – artigo 608º, n.º 2, do CPC – e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer – independentemente de alegações e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

A omissão traduz-se, assim, como resulta da tradução normativa da figura, na falta de tratamento e decisão (pronúncia) quando o tribunal deixa de conhecer de questões que deveria apreciar ou conheça de questões de que não poderia conhecer – art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC.

Sabido, também, que a omissão de pronúncia só se verifica quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que foram submetidas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença, e bem assim, não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou.

Nos autos.

Resulta do relatório que os Autores formularam diversos pedidos, uns a título principal, outros, a título subsidiário (ou secundário de acordo com a P.I.) para o caso de aqueles não procederem.

Em primeira nota, sublinhamos que o Tribunal de 1ª instância julgou improcedentes todos os pedidos formulados, sejam eles principais ou subsidiários, embora sem apreciar alguns dos fundamentos invocados alegados pelos Autores, tal como se retira do dispositivo da sentença - «julgo a acção (…) improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvo os Réus e a Interveniente principal dos pedidos formulados.»

Por seu turno, o Tribunal da Relação debruçou-se sobre cada um dos pedidos, com excepção, justamente, da pretensão alicerçada na responsabilidade civil, referente à indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 30.000,00, por ter sido excluída pelos Autores nas suas alegações [---].

Sobre todas as questões suscitadas no recurso pelos Autores foi dada aos Réus a oportunidade do exercício de resposta nas contra-alegações na linha da estratégia escolhida na defesa da sua posição na demanda.

Acompanhando o sistematizado iter decisório do acórdão em sindicância, evidencia-se que a Relação apreciou, ainda, todos os fundamentos e questões que não foram objeto de apreciação na sentença, em resultado da arguição pelos recorrentes de diversas nulidades e invocação de vários fundamentos.

Vindo o Tribunal da Relação a concluir pela exclusiva procedência do pedido subsidiário que concerne à aplicação do regime legal das cláusulas contratuais gerais (RCCG) aos contratos celebrados entre as partes, e cuja nulidade declarou com a consequente restituição do prestado, como efeito previsto no artigo 289º, nº 1, do CC.

Numa segunda nota, a génese do pedido que procedeu em nada intercepta o regime da responsabilidade civil e, o efeito da nulidade dos contratos em apreço - a obrigação de restituição do prestado - revela-se independente de função compensatória, estando circunscrita à esfera jurídica dos Réus; trata-se, portanto, de obrigação alheia à Interveniente Seguradora, à margem da relação contratual que assumiu perante os Réus através da cobertura de risco [Cfr. a propósito o Acórdão do STJ de 18.02.2020, no proc. nº8963/16, in www.dgsi.pt.].

Donde, não tendo sido julgado procedente qualquer pedido com fundamento em responsabilidade civil, ou resultado a condenação dos Réus a ressarcir danos dos Autores, não cabia ao tribunal a quo pronunciar-se sobre a posição da Interveniente AG.

Improcede a nulidade.

Também nesta parte, não assiste razão aos recorrentes.

2.2.O exercício do contraditório

Noutra vertente da arguição da nulidade do acórdão, alegam os Réus que o Tribunal da Relação, ao conjeturar a procedência do recurso das Autoras, deveria ter ordenado a prévia notificação das partes para o exercício do contraditório sobre as questões não decididas na primeira instância.

Apontam a violação do disposto no artigo 665º, nº 3, do CPC.

In casu, é manifesto que tal não se verifica.

É bom de ver, que a circunstância prevenida no citado normativo – evitar decisão surpresa – não tem qualquer respaldo na situação sub judice.

Sempre se dirá, de todo o modo, que, a sentença, embora afaste a aplicação do regime da nulidade dos contratos à luz do RGCC, como solução do litígio, apreciou este pedido, como espelha o seguinte ponto que se reproduz – « Entendemos que, num primeiro momento e no cruzamento do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro) com os deveres de informação que resultam do CVM, incumbe ao intermediário financeiro alegar e provar que procedeu a uma comunicação adequada e efectiva dos termos do negócio. O não cumprimento desse dever pode conduzir à nulidade do contrato – de todo ele – nos termos do artigo 9º, nº 2, do RJCCG. (…) Pelo que, por esta via (artigo 9º, nº 2, do RJCCG) e em face do exposto, consideramos inexistir a nulidade cuja declaração é peticionada.

Improcede, consequentemente, o pedido de declaração de nulidade dos contratos celebrados e das ordens de subscrição.»

Nesse pressuposto, a Relação não apreciou o pedido em primeira mão.

O acórdão recorrido apreciou e julgou procedente, sem inovação ou surpresa – este pedido formulado na alínea H do petitório/ampliação, que foi objecto do contraditório pelos Réus na contestação e nas contra-alegações da apelação, enfatizando que os Autores, como atrás dito, apenas excluíram da sua pretensão recursiva o pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

Os Réus, e ora recorrentes, dispuseram de ampla oportunidade de pronúncia acerca deste concreto pedido de declaração de nulidade dos contratos celebrados entre as partes em aplicação do RGCC, submetido à apreciação da Relação pelos Autores no seu recurso [Cfr. a propósito o Acórdão do STJ de 18.02.2020, no proc. nº8963/16, in www.dgsi.pt.].

Por outras palavras, a Relação usou dos poderes de cognição do pedido subsidiário em causa, como lhe competia, dentro do objecto do recurso e nos limites anteriormente discutidos pelas partes nos articulados e nas peças recursivas.

O acórdão recorrido conheceu do pedido subsidiário e das implicações do mesmo, tendo sido inteiramente cumprido o direito ao contraditório.

Conclui-se pela não verificação da apontada nulidade processual por violação do princípio do contraditório."

[MTS]


14/07/2025

Jurisprudência 2024 (208)


Litisconsórcio necessário;
contitularidade


1. O sumário de RE 7/11/2024 (6104/23.4T8STB.E1) é o seguinte:

Ocorre ilegitimidade dos AA por preterição do litisconsórcio necessário no caso em que a relação jurídica material controvertida impõe a intervenção de todos os herdeiros, tal como se verifica relativamente ao exercício do direito de aquisição de lote de terreno, direito esse reconhecido em comum aos herdeiros da titular do direito de superfície.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A pretensão formulada consiste na condenação do R a pagar aos AA a quantia de € 150.000,00 a título de indemnização no âmbito da responsabilidade civil por perda de chance / oportunidade de celebrar o negócio acordado entre os AA. e comprador, negócio esse que teria por objeto a venda, após aquisição à CMG, do lote de terreno onde estava implantada a construção erigida por (…). Segundo vem alegado na p.i. [---], a aquisição do lote de terreno à CMG constituía um direito reconhecido em comum a todos os herdeiros de (…), titular do direito de superfície que, com o seu decesso, passou a integrar a herança. [---]

Mais vem peticionado que, caso não alcance provimento o pedido acima mencionado, seja o R condenado a pagar aos AA a quantia de € 60.000,00, devida “a título compensação por não exercerem os seus direitos enquanto herdeiros de (…), acrescido de juros de mora.” [---] Ora, a menção “os seus direitos” que não foram exercidos senão pelo R reporta-se ao direito de aquisição, em comum por todos os herdeiros, do lote de terreno, sendo invocado que “enquanto herdeiros, adquiriram igualmente o direito de aquisição do terreno em que havia sido erigida aquela que fora a habitação da sua avó e de (…), ao abrigo do Regulamento Autónomo da Venda de Lotes de Terreno para Construção no (…)/(…)”, que “estabelece condições privilegiadas de aquisição de lotes na Herdade da (…) para quem cumpra determinados requisitos.” [---] É que, alegam os AA, o R não cumpriu o acordo com eles firmado no sentido de que pretendiam e aceitavam vender o imóvel ao R. na condição de este pagar o montante global de € 60.000,00 aos restantes herdeiros, proporcionalmente à parte de cada um na herança. [---]

Vem ainda imputada ao R a destruição do “imóvel cujo direito de superfície fazia parte da herança de (…).” [---]

Decorre do exposto que, independentemente de ser invocado que apenas os herdeiros AA encetaram conversações e acordo com o R tendente a concretizar a partilha do direito de superfície de que era titular a herança de (…), certo é que está em causa o exercício de direitos reconhecidos em comum a todos os herdeiros (cfr. artigo 7.º do invocado Regulamento), tal como desde logo decorre do disposto no artigo 2091.º/1, do CC: fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

Termos em que se conclui pela ilegitimidade dos AA por preterição do litisconsórcio necessário, já que a relação jurídica material controvertida impõe a intervenção de todos os herdeiros de (…)."

[MTS]

13/07/2025

Bibliografia (1211)


-- Hamann, T. P., Die Europäische Richtlinie 2020/1828 über Verbandsklagen und ihre Umsetzung in Deutschland und Spanien (Nomos: Baden-Baden 2025)


11/07/2025

Jurisprudência 2024 (207)


Procuração forense;
mandante; caducidade


1. O sumário de RG 7/11/2024 (791/20.2T8CHV-B.G1) é o seguinte:

Nas procurações forenses outorgadas, em 2013, pela então administradora e gerente em nome das duas sociedades que a esse título representava, os respetivos mandantes são estas sociedades. Por isso, não assumindo aquela administradora e gerente a qualidade de mandante, a sua morte em 2021 não fez caducar as procurações.

Nessa medida, na ausência de qualquer facto que, de algum modo, coloque em crise a vontade das sociedades expressa aquando da outorga das procurações, a sua validade mantém-se quando, em 2023, elas foram juntas a estes autos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

À luz do disposto no artigo 262.º do Código Civil, "a procuração é um negócio jurídico unilateral realizado por um sujeito que atribui por ele a outra pessoa poderes para a representar na prática de um ato ou na celebração de um negócio, o mais das vezes um contrato. Ela tanto pode ser realizada autonomamente como estar contida no contrato de que é instrumento." [Ana Prata et al., Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, pág. 318.] E "é um ato essencialmente distinto do mandato. Enquanto o mandato, integrado na categoria dos contratos (art. 1157.º) é um negócio jurídico bilateral, a procuração constitui um ato unilateral" [Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 244.]. Não obstante esta diferença, não deixa de ser verdade que a "procuração aproxima-se (…) muito do mandato (…). E de tal modo que as diferenças entre si são ténues. Adriano Vaz Serra explicou assim a fronteira entre elas: «Efetivamente, o mandato não se identifica com a procuração, como claramente se verifica confrontando os arts. 262º e segs. e 1157º e segs. do CC (…). A procuração é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa confere a outra poderes de representação, isto é, para, em nome dela, concluir um ou mais negócios jurídicos (art. 262º, nº 1; o mandato, diversamente, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra (art. 1157º)" [Ac. STJ de 13-5-2021 no Proc. 1021/16.7T8CSC.L2.S1, www.dgsi.pt.]

Para além disso, "a procuração (…) não se justifica por si própria ou em si própria. Ao invés, ela alicerça-se numa relação subjacente - tipicamente o mandato - que a motiva e lhe dá origem e fundamento" [José Alberto González, Código Civil Anotado, Vol. I, 2011, pág. 341.].

Por sua vez, o mandato forense é "o contrato pelo qual um advogado (ou um advogado estagiário, ou um solicitador) se obriga a fazer a gestão jurídica dos interesses cuja defesa lhe é confiada, através da prática, em nome e por conta do mandante, de atos jurídicos próprios da sua profissão" [João Lopes [dos] Reis, Representação Forense e Arbitragem, pág. 43.] E este mandato é, conforme dispõe o artigo 43.º, conferido através de procuração forense.

Voltando ao nosso caso, em nenhum dos dois despachos recorridos a Meritíssima Juiz explica por que razão, em virtude da morte de AA, "as procurações juntas aos autos (…) não satisfazem o determinado no (…) despacho, proferido em 13/11/2023". Parece ter por evidente a conclusão que extrai e dispensa-se de fundamentar de direito o efeito que considera que essa morte produziu na validade das procurações.

Ora, sabemos que em 2013 AA, na qualidade de administradora da executada EMP03... S.A. e de gerente da executada EMP02... L.da, outorgou as duas procurações em causa, através das quais, em nome das suas representadas, conferiu ao (mandatário) Dr. CC "poderes forenses gerais".

Estamos, assim, na presença de duas procurações forenses que têm como negócio base ou relação subjacente um mandato forense.

E nestas procurações o mandante não é AA; os mandantes são, sim, as duas sociedades, aqui executadas, que nessas datas (9-1-2013 e 10-6-2013) aquela representava.

Apesar de, como já se deu nota, não ser claro o raciocínio seguido pela Meritíssima Juiz, afigura-se como mais provável que tenha entendido que, por causa de tal morte, se deu a caducidade das procurações [---]

É certo que, em princípio [A "procuração caracterizada pela irrevogabilidade natural ou convencional" tem quanto a aspeto um enquadramento jurídico diferente, cfr. Ac. STJ de 14-7-2016 no Proc. 111/13.2TBVNC.G1.S1, www.dgsi.pt.], a morte do mandante origina a caducidade da procuração, pois o artigo 265.º do Código Civil "não esgota as causas extintivas da procuração. Do seu carácter intuitu personae resulta, entre outras causas, a extinção (por caducidade) pela morte do outorgante" [Ana Prata et al., Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, pág. 322. Neste sentido veja-se Ac. STJ de 14-7-2016 no Proc. 111/13.2TBVNC.G1.S1 e Ac. Rel. Porto de 7-12-2018 no Proc. 11099/17.0T8PRT.P1, ambos em www.dgsi.pt.].

Mas, uma vez que AA não tinha a qualidade de mandante, da sua morte em 2021 não pode resultar a caducidade das procurações.

Tendo as procurações sido outorgadas por quem nesse momento legitimamente representava as executadas EMP03... S.A. e EMP02... L.da, as mesmas não veem a sua validade afetada por a administradora e gerente à época ter falecido posteriormente. A cessação do exercício dessas funções, nomeadamente por morte, em nada se repercute na validade dos atos anteriormente praticados por AA com tais vestes.

Note-se que nos autos não há notícia de qualquer facto que, de algum modo, coloque em crise a vontade das executadas EMP03... S.A. e EMP02... L.da expressa aquando da outorga das procurações. E não esqueçamos que quem sucedeu a AA na representação destas duas sociedades tem a possibilidade de revogar as procurações em apreciação [Cfr. artigo 265.º n.º 2 do Código Civil.].

Portanto, não ocorrendo a caducidade das procurações não há, nesse plano, qualquer efeito nos dois substabelecimentos, com reserva, do Dr. CC em favor do Dr. BB.

Com estes substabelecimentos com reserva o mandatário primitivo (Dr. CC) partilhou com o mandatário subestabelecido (Dr. BB) os poderes que recebeu das mandantes EMP03... S.A. e EMP02... L.da, as quais, por esta via, passam a estar representadas em juízo por estes dois advogados.

Aqui chegados, conclui-se que se mantém a validade das procurações de 9-1-2013 e de 10-6-2013, pelo que, tanto o Dr. CC, como o Dr. BB, têm poderes para representar as executadas EMP02... L.da e EMP03... S.A.."

[MTS]

10/07/2025

Jurisprudência 2024 (206)


Locação financeira;
procedimento cautelar


I. O sumário de RC 12/11/2024 (173/23.4T8CLB.C1) é o seguinte:

1. Decorre do preâmbulo do DL n.º 30/2008, de 25.02, que o legislador, ao rever o regime jurídico da locação financeira, pretendeu evitar ações judiciais desnecessárias, permitindo ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar (requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.6); evita-se, assim, a existência de duas ações judiciais (uma providência cautelar e uma ação principal) que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.

2. A entrega judicial do bem locado tem lugar numa simples ação de tipo cautelar - a execução da entrega insere-se na própria providência, efetivando, tão depressa quanto possível, o desapossamento do bem, de modo a conferir ao locador a possibilidade de proceder à sua futura cedência ou alienação (art.º 7º do DL n.º 149/95, de 24.6).


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Preceitua o DL n.º 149/95, de 24.6 (diploma que alterou/reformou o Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira) [---]:

 - Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados (art.º 1º).

 - A locação financeira de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo fica sujeita a inscrição no serviço de registo competente (art.º 3º, n.º 5).

 - Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, nomeadamente vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro (art.º 7º).

São, nomeadamente, obrigações do locatário: a) Pagar as rendas; k) Restituir o bem locado, findo o contrato, em bom estado, salvo as deteriorações inerentes a uma utilização normal, quando não opte pela sua aquisição (art.º 10º, n.º 1).

O contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes de lei civil, relativas à locação (art.º 17º, n.º 1).

Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode esteapós o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efetuar por via eletrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente (art.º 21º, n.º 1, sob a epígrafe “Providência cautelar de entrega judicial”). Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, exceto a do pedido de cancelamento do registo (...) (n.º 2). O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (n.º 3). O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada (n.º 4). Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no art.º 7º (n.º 6). Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso (n.º 7). São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma (n.º 8).

3. Respiga-se do preâmbulo do DL n.º 30/2008, de 25.02, que o legislador, ao rever o regime jurídico da locação financeira, pretendeu concretizar uma das novas medidas de descongestionamento do sistema judicial (evitar ações judiciais desnecessárias):

- Por um lado, esclareceu, nomeadamente, que o cancelamento do registo da locação financeira é independente de qualquer tipo de ação judicial intentada para a recuperação da posse do bem locado, podendo ser efetuado pelas vias administrativas normais e eletrónicas.

- Por outro lado, permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.6. Evita-se assim a existência de duas ações judiciais - uma providência cautelar e uma ação principal - que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.

4. Na situação em análise resulta clara a afirmação dos requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar especificamente prevista no art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.7: cessação do contrato de locação financeira em razão do seu incumprimento pela requerida e subsequente resolução pela requerente/locadora, de harmonia com o acordado e o descrito quadro normativo; não entrega/restituição ao locador dos bens objeto da locação.

Em cumprimento do preceituado no art.º 21º, n.º 7, do DL n.º 149/95, de 24.6, foi proferida decisão antecipando o juízo final.

5. A requerente insurge-se contra o despacho, de 02.9.2024, que considerou “esgotado o poder jurisdicional com a prolação da sentença de 23.8.2024” e ordenou que a requerida fosse notificada da pretensão da requerente “quanto ao lugar do cumprimento da mencionada obrigação de entrega”, posição reiterada no despacho de 17.9.2024, no qual também se concluiu nada mais haver a decretarpor ora, quanto à entrega do bem móvel em causa”.

6. A posição da requerente/recorrente é correta.

A consagração legal da providência cautelar de entrega judicial de bem locado tem essencialmente em vista a proteção do interesse patrimonial do locador, tentando evitar que lhe advenham prejuízos de vária ordem no quadro da atividade que exerce, porquanto a não entrega da coisa importa, do ponto de vista do locador, a impossibilidade (temporária) de a alienar ou de a onerar. Por outro lado, pode provocar, na perspetiva do locatário, um desinteresse em relação à própria coisa, que se pode repercutir não só na sua manutenção e na sua conservação, mas também noutras vertentes, como por exemplo na possível utilização indevida do bem ou até numa eventual deterioração acentuada.

Daí, para o seu decretamento, o locador não necessita de alegar, nem de demonstrar, o justificado receio da sua lesão, o qual, segundo a doutrina e a jurisprudência dominantes, é presumido (´jure et de jure`) por lei, independentemente do tipo de bem (móvel ou imóvel) em causa. As razões que o fundamentam decorrem do uso continuado da coisa pelo locatário, o que determina pelo menos o seu desgaste/degradação, com o inerente prejuízo para o proprietário/locador.

Assim, o requerente está dispensado da alegação e prova do periculum, ao abrigo do art.º 21 do DL 149/95, de 24.6; o elemento de facto futuro da causa de pedir é presumido juris et de jure e, portanto, inilidível pela parte contrária. [Vide F. de Gravato MoraisManual da locação financeira, 2006, págs. 245 e seguintes e Rui Pinto, A questão de mérito na tutela Cautelar, Coimbra Editora, 2009, págs. 593 e seguintes.]

7. A entrega cautelar, imediata, do bem é que constitui, no rigor, o interesse de direito substantivo que o mecanismo adjetivo visa assegurar e salvaguardar.

Releva, pois, a tutela do locador como inequívoca opção legal de tutela.

A lei da locação financeira é inédita, sendo que a providência nela prevista assume particularidades que a distinguem das demais, desde logo, das providências cautelares não especificadas previstas nos art.ºs 362º e seguintes do CPC e dos procedimentos cautelares especificados previstos nos art.ºs 377º e seguintes do mesmo Código. [Cf. acórdão da RP de 14.01.2013-processo 1074/12.7TBPNF.P1 (em que foi 2º adjunto o aqui relator), publicado no “site” da dgsi.]

8. O DL n.º 30/2008, de 25.02,  estabeleceu a regra, na hipótese da entrega judicial, de que decretada essa providência o tribunal deva, após contraditório, logo antecipar o juízo sobre a causa principal; o que só não fará se for de supor que não hajam sido trazidos ao procedimento os elementos necessários à resolução definitiva do caso (art.º 21º, n.º 7, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira).

E aqui se vislumbra a diluição da ação principal no processo cautelar.

Assim, a entrega judicial do bem locado tem lugar numa simples ação de tipo cautelar; e a lei supõe até que nesta, em regra, se acham reunidas as condições para viabilizar um juízo concludente e final sobre o tema. [Idem. [...]].

9. No regime legal de entrega judicial de bem locado, teve o legislador o particular cuidado e preocupação em regulamentar a entrega judicial do bem, ciente das especificidades decorrentes deste procedimento cautelar - importa efetivar, tão depressa quanto possível, o desapossamento do bem, de modo a conferir ao locador a possibilidade de proceder à sua futura cedência ou à alienação ao anterior locatário ou a terceiro (art.º 7º).

A execução da entrega insere-se na própria providência.

10. Evidenciam os autos, por um lado, a dificuldade em concretizar a apreensão e, por outro lado, as sucessivas solicitações da requerente visando a apreensão e a entrega dos bens.

11. No apurado circunstancialismo, o Tribunal a quo devia considerar que o objetivo da providência não se havia concretizado/cumprido - a imediata apreensão e entrega dos bens em causa; a imediata localização e a célere restituição ao legítimo proprietário de bens utilizados indevidamente e/ou sujeitos a eventual deterioração/desvalorização acentuada (cf. II. 6., supra). [Cf., de entre vários, acórdãos da RL de 04.10.2011 [sumariando-se: «1 - Este tipo de providência cautelar (entrega judicial do bem locado) teve em vista enfrentar as situações de “periculum in mora” decorrentes do incumprimento dos contratos de locação financeira por parte dos locatários e que não são compatíveis com a natural morosidade da justiça. 2 - O Legislador, neste particular, foi mais longe, na redação dada pelo DL 30/2008, de 25-2, ao n.º 7, do art.º 21º, do DL 149/95, de 24-6, dando ao julgador a faculdade de decidir a causa no próprio procedimento cautelar, antecipando nesse processo a resolução definitiva do litígio. 3 - Sendo o escopo do Legislador evitar a ação principal, não se compreende que se traga à colação o prazo de caducidade a que se reporta o art.º 389º nº 1 a) do CPC (exceto quando dos autos não constem os elementos necessários à resolução definitiva do caso)4 - Até porque um dos objetivos que em regra só se consegue com a ação principal já foi alcançado na providência cautelar em apreço: O locador poder dispor da coisa (n.º 6 do citado art.º 21º do DL 149/95).»], 26.4.2016-processo 934/14.5TVLSB-A.L1-7 [com o sumário: «(...) III - Não faz sentido obrigar a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efetivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento, sendo certo que não ocorreu qualquer das causas de extinção por caducidade da providência cautelar consignadas no artigo 373º do Código de Processo Civil.»] e 26.10.2021-processo 22010/20.1T8LSB.L1-6 [tendo-se concluído: «I. A definição do desígnio legislativo no âmbito da providencia cautelar de entrega judicial de bem locado, parece visar a dispensa da ação definitiva no que se reporta ao âmbito de convergência dos dois procedimentos – a entrega do bem. II. Tal intenção legislativa teve em consideração que a apreensão e entrega seriam prévias a tal “convolação” do procedimento cautelar em “juízo antecipado sobre a causa principal”. III. Ao decidir-se pela necessidade de interposição de uma ação executiva, com a consequente extinção do procedimento, tal vai contrariar a intenção do legislador, que sob o primado da economia processual permitiu a antecipação do juízo definitivo no mesmo processo, pelo que não pode ser considerado que com base nessa antecipação não haverá que alcançar o objetivo da providência – a apreensão e entrega.»], publicados no “site” da dgsi.]

12. Há que efetivar o direito da requerente, ainda não assegurado (e o Tribunal a quo não esclareceu a forma ou meio de alcançar tal desiderato), prosseguindo, assim, no âmbito do presente procedimento, as diligências com vista à efetiva apreensão e entrega dos bens locados objeto dos autos. [Daí que se possa acolher a asserção contida no ponto 28 da fundamentação da alegação de recurso: «Afigura-se, por isso, incompreensível e ilógico que, por considerar que o seu poder jurisdicional terminou, obrigue a Recorrente a aguardar para que a Requerida (que ainda não cumpriu nenhuma decisão do Tribunal a quo nem reagiu ao presente processo) se digne a entregar voluntariamente os bens locados, com o inerente acréscimo de dispêndio de tempo.»]"

[MTS]

09/07/2025

Jurisprudência 2024 (205)


Acção de divisão de coisa comum;
benfeitorias; reconvenção*


1. O sumário de RL 7/11/2024 (2372/23.0T8SXL.L1-2) é o seguinte:

Numa acção de divisão de coisa comum deve ser admitida a reconvenção em que o réu invoque a existência de créditos seus contra a autora que tenham a ver com o prédio a dividir e que possam influenciar o valor daquilo que a autora tenha direito a receber no fim dessa acção, de modo a evitar que tenha que ser intentada nova acção para discutir esses créditos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Precisamente a propósito do ac. do TRL de 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8) que serviu de base ao despacho recorrido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa fez o seguinte comentário crítico publicado a 08/01/2021 no blog do IPPC, Jurisprudência 2020 (122):

“a) O problema decidido pela RL não tem uma solução linear, mas, salvo o devido respeito, propende-se para uma orientação diferente.

Ao contrário do entendimento da RL, não parece impossível aplicar, numa acção de divisão de coisa comum, o disposto, quanto ao pedido reconvencional relativo a benfeitorias, no art.º 266.º, n.º 2, al. b), CPC. No fundo, o que o autor dessa acção pretende é a entrega da parcela que tem na coisa indivisa, pelo que não é impossível entender que, se a parte demandada tiver direito a benfeitorias por obras que realizou na coisa indivisa, possa fazer valer esse direito na acção pendente. Portanto, o requisito da conexão objectiva entre os pedidos encontra-se preenchido.

Sendo assim, o que importa analisar é se permanecem outros obstáculos à admissibilidade do pedido reconvencional relativo a benfeitorias na acção de divisão de coisa comum.

A alternativa à inadmissibilidade da dedução do pedido reconvencional relativo a benfeitorias é, naturalmente, a necessidade de fazer valer esse direito numa acção autónoma. Por isso, o que, em termos de exercício dos poderes de gestão processual, tem de ser ponderado é se é justificado "complicar" a acção de divisão de coisa comum para permitir a resolução definitiva da situação das partes e evitar uma acção autónoma. É claro que a acção de divisão se "complica"; mas o que tem de ser ponderado é se essa "complicação" evita outras "complicações".

Atendendo especialmente ao disposto no art.º 929.º, n.º 2, CPC (aplicável no caso sub iudice pela circunstância de a coisa ser indivisível), era desejável que, no acerto de contas entre as partes, pudesse tomar-se em consideração o eventual direito a benfeitorias da parte demandada.

Pelo exposto, nada impediria que, através da aplicação dos poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), o pedido reconvencional relativo às benfeitorias fosse considerado admissível. Note-se que o exercício desses poderes pode ir para além do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 37.º CPC, para o qual remete o art.º 266.º, n.º 3, CPC.

b) Num outro plano, pode ainda perguntar-se se, na hipótese de o direito a benfeitorias pertencer à parte demandante, seria impensável admitir que esse direito pudesse ser feito valer na acção de divisão de coisa comum. Se não se descortinam razões para considerar inadmissível essa cumulação de pedidos pela parte demandante, então, por imposição do princípio da igualdade das partes, também a dedução de um idêntico pedido pela parte demandada não pode ser inadmissível.”

Esta posição corresponde àquela que se considera a melhor e maioritária jurisprudência sobre a matéria (daí que o réu possa ter arrolado 26 acórdãos do STJ e das Relações no mesmo sentido), sendo também a posição assumida pelo relator do actual no ac. do TRL de 12/09/2024, proc. 16759/21.9T8LSB-A.L1-2, de que se passam a transcrever apenas algumas partes [visto que muitas outras dizem respeito a questões que foram então levantadas pelas partes ou pelo respectivo despacho recorrido e não se levantam nestas] com apenas algumas adaptações:

Visto que a acção especial de divisão de coisa comum permite ao juiz vir a decidir, quando verificar que as questões não podem ser sumariamente decididas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum (art.º 926/3 do CPC), a jurisprudência está hoje praticamente estabilizada no sentido de o juiz dever autorizar (ao abrigo dos artigos 266/3, 37/2-3, 6 e 547, todos do CPC) a reconvenção – normalmente em situações que têm sido enquadradas nas hipóteses (b) e (c) do art.º 266/2 do CPC: quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, - pois que vê nisso interesse relevante ou considera mesmo que a apreciação conjunta das pretensões é indispensável para a justa composição do litígio, fazendo-se, se necessário, adaptação do processado. Isto porque, se se vai acabar com a compropriedade, se considera que todas as questões conexas devem ser resolvidas de uma vez por todas, sem dar origem a novos processos.

Para além de todos aqueles já invocados ao longo de todo o relatório deste acórdão, vejam-se, ainda, por exemplo, os acórdãos (alguns já referidos): do TRE de 27/06/2024, proc. 58/23.4TBLAG.E1; do TRP de 06/06/2024, proc. 408/23.3T8VCD.P1; do TRP de 20/02/2024, proc. 183/22.9T8PNI-B.C1; do TRP de 27/11/2023, proc. 654/22.7T8PVZ-A.P1; do TRL de 28/09/2023, proc. 2212/21.4T8PDL.L1-6; do TRL de 13/07/2023, proc. 1845/20.0T8AMD-A.L1-7; do TRL de 11/05/2023, proc. 2772/22.2T8OER-A.L1-2; do TRG de 04/05/2023, proc. 121/22.9T8MNC-A.G1; do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1; do TRP de 28/03/2023, proc. 8188/21.0T8VNG.P1; do TRP de 8/11/2022, proc. 5744/20.4T8MTS.P1; do TRG de 13/07/2022, proc. 1889/21.5T8VCT.G1; do TRP de 30/06/2022, proc. 179/22.0T8OVR.P1; do STJ de 25/05/2021, proc. 1761/19.9T8PBL.C1.S1; do STJ de 26/01/2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1; do TRP de 27/4/2021, proc. 5962/20.9T8VNG.P1; do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2; do TRE de 17/01/2019, proc. 764/18.5T8STB.E1; do TRG de 20/09/2018, proc. 242/17.0T8VPC-A.G1; do TRL de 15/03/2018, proc. 2886/15.5T8CSC.L1.L1-8; do TRL de 24/09/2015, proc. 2510/14.3T8OER-A.L1-2; do TRG de 25/09/2014, proc. 260/12.4TBMNC-A.G1.

No mesmo sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2021, página 536, referem dois destes acórdãos; Miguel Teixeira de Sousa, também tem aderido a alguns acórdãos com a mesma posição [16/11/2023, Jurisprudência 2023 (52), ac. do TRL 2/3/2023 (102/22.2T8VLS.L1-2); 24/02/2022, Jurisprudência 2021 (140), ac. do TRL 8/6/2021 (13686/20.0T8LSB.L1-7); 06/12/2021, Jurisprudência 2021 (91), ac. do TRP 27/4/2021(5962/20.9T8VNG.P1)] e num comentário publicado no blog do IPPC, em 21/07/2021, Jurisprudência 2021 (17), ao ac. do TRP de 26/01/2021 (1509/19.8T8GDM.P1), aventa a possibilidade de enquadrar algumas das despesas reconvindas na alínea (a) do art.º 266 do CPC. Num outro – publicado em 11/04/2023, Jurisprudência 2022 (160), quanto ao ac. do TRG de 13/7/2022 (1889/21.5T8VCT.G1) - chama “a atenção para que o que estava em causa nos citados STJ 01/10/2019 e STJ 26/07/2021 era a admissibilidade de um pedido reconvencional de compensação de um crédito por despesas suportadas para além da quota respectiva. Faltou, portanto, dizer que o que vale para a admissibilidade desse pedido reconvencional também vale para a cumulação inicial de um semelhante pedido na acção de divisão de coisa comum.” Num outro, de 08/01/2021, Jurisprudência 2020 (122), quanto ao ac. do TRL de 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8), desenvolve a defesa da admissibilidade da reconvenção no caso das benfeitorias, ao abrigo do art.º 266/2-b do CPC, com fundamentos que permitem a defesa ampla da admissibilidade da reconvenção para as situações que estão em causa em muitos outros daqueles acórdãos e ainda defende que não só a parte demandada pode reconvir, como o demandante pode cumular pedidos com o pedido da acção especial. Já no sentido defendido, mas em termos iniciais e menos desenvolvidos, veja-se ainda o comentário publicado em 24/04/2018, Jurisprudência 2018 (10), quanto ao ac. do TRL de 11/01/2018 (386-15.2T8MFR.L2-8).

Note-se que a solução é diferente para a situação inversa, isto é, quando se pretenda enxertar, num processo comum, um processo especial de divisão de um imóvel comum: acórdão do TRL de 13/09/2018, proc. 358/17.2T8SNT.L1-2 [do relator do actual], acórdão que não segue, assim, ao contrário do que por vezes se vê escrito, a posição de negar a admissibilidade da reconvenção neste processo especial, antes pelo contrário como se pode ver em obiter dictum dele constante (o acórdão foi publicado por Miguel Teixeira de Sousa, no que parece ser uma aceitação da posição seguida, a 20/12/2018, no blog do IPPC, 20/12/2018, Jurisprudência 2018 (140); veja-se também o já citado ac. do TRL de 17/06/2014, proc. 2548/12.TJLSB.L1-1 no mesmo sentido de na acção comum não poder ser enxertada uma acção especial de divisão).

Naturalmente, o que vale para empréstimos para pagamento do preço de aquisição, ou outros créditos conexos, como tem sido dito por aquela jurisprudência, com referência, por exemplo, a seguros, impostos, quotas de condomínio, etc., vale também para empréstimos, feitos por ambos, para pagamento de obras no prédio; a norma do art.º 266/2-c do CPC não faz qualquer restrição a créditos relativos à aquisição e as razões que têm sido dadas para a admissibilidade da reconvenção abrange uns e outros.

A jurisprudência que ia em sentido contrário tem sido revogada (por acórdãos do STJ em revistas excepcionais) e os argumentos dela, que no caso são defendidos pelo despacho recorrido, têm sido sistematicamente afastados:

Assim, um dos fundamentos do despacho recorrido foi o de que “face aos elementos constantes dos autos, é possível proferir de seguida decisão sumária, […] posto que não está colocada em causa nem a compropriedade nem a indivisibilidade do imóvel.” Mas, ao pôr assim as coisas, o despacho recorrido não está a considerar tudo o que está nos autos, ou seja, também a contestação com a reconvenção. E esta omissão é o reconhecimento de que o está nos autos não permite a decisão sumária de todas as questões que eles levantam. Pelo que o raciocínio certo é o contrário: se as questões levantadas pela contestação, com a reconvenção, não puderem ser decididas sumariamente, tal não deve ser visto como impeditivo da admissibilidade da reconvenção, mas apenas como razão para que o processo não seja decidido sumariamente, devendo-se passar a seguir os termos de uma acção comum, onde se decidam também as questões que a reconvenção levanta, o que tem por pressuposto que esta seja admitida. Sendo que as questões que a contestação pode levantar, como diz o ac. do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, são muito mais amplas do que a da fixação dos quinhões ou da divisibilidade: “a acção de divisão de coisa comum é o meio processual adequado a regular as relações jurídicas entre as partes, nomeadamente, os direitos de crédito relacionados com aquisição ou amortização de empréstimos bancários com vista à aquisição da coisa comum para além da respectiva quota. Tais questões não poderão deixar de ser enquadradas como ‘questões suscitadas pelo pedido de divisão’ já que é a cessação da indivisão do prédio que faz nascer o direito à repartição do valor do bem comum de acordo com as quotas dos comproprietários.”

Note-se que aquele argumento do despacho recorrido vem ainda do ac. do TRL de 04/03/2010, proc. 1392/08.9TCSNT.L1-6, sendo que este acórdão é expressamente referido nos acórdãos do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, de 26/01/2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, e de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, já citados acima, que o afastaram com os argumentos acima sintetizados.

Outro argumento que costuma ser avançado contra a posição que se entende melhor, vem de um ac. do TRP de 26/01/2021, proc. 1509/19.8T8GDM.P1, repetindo muitos outros e sendo repetido por muitos outros: “o pedido reconvencional fundamentado em despesas alegadamente efectuadas apenas pela ré na aquisição e manutenção do imóvel cuja divisão se peticiona, […], com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o autor a ser efectivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão, cf. art.º 266/2 do CPC.”

Mas a jurisprudência actual tem sistematicamente respondido que os créditos que os réus possam ter, contra os autores, por pagamentos relacionados com os bens a dividir, feitos a mais para além do que seria devido pela quota de cada um, têm conexão com os direitos que afinal virão a ser reconhecidos ao autor, pois que estes, independentemente da forma que vierem a assumir, virão a ser afectados (reduzidos) devido à existência daqueles créditos (assim, no voto de vencido junto ao ac. do TRE de 07/03/2024, proc. 5182/21.5T8STB-B-E1: quando a ré refere que pretende ver reconhecido o seu crédito com o crédito de tornas que possa ser adjudicado a um dos comproprietários (onde se inclui o autor) uma vez que a fracção autónoma é indivisível (logo obriga a adjudicação ou venda), está a invocar um requisito substancial de conexão entre o pedido reconvencional e o pedido do autor. Isto porque ao intentar uma acção de divisão de coisa comum o autor está a formular um pedido abrangente e complexo, formado por tantos pedidos quantos caibam na fase declarativa e executiva desta acção especial, nomeadamente a adjudicação a si do imóvel ou a entrega a si de 1/2 do preço que terceiro pagar, e é sobre esse crédito que assenta o contra crédito da ré. Se a ré quer obter o pagamento do seu "sacrifício patrimonial" com a "vantagem patrimonial" do autor no momento da divisão do produto da venda, sendo ambos credores de metade, embora essa pretensão a um encontro de contas não constitua uma compensação em sentido estrito, cabe ainda assim na previsão da alínea (c) do artigo 266/2, na parte em que prevê a possibilidade de reconvenção para o reconhecimento de um crédito para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.); e o ac. do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, ainda lembra: II. Não impede o funcionamento do mecanismo da compensação a circunstância de os créditos do autor e da ré em relação ao bem comum serem ilíquidos no momento da formulação do pedido, já que o valor económico do direito de cada um deles só fica definido na conferência de interessados.

Ainda outros argumentos contra a melhor jurisprudência:

Um deles é o de que “a tramitação da acção especial de divisão de coisa comum não se compatibiliza com a tramitação de acção declarativa.” Mas, pelo contrário, a jurisprudência actual estabilizada responde que já que as normas do processo especial prevêem que, em dados casos, ele siga, a partir de determinado momento, os termos da acção comum, esta não é incompatível com ele (ac. do TRE de 17/01/2019, proc. 764/18.5T8STB.E1, com anotação concordante de Miguel Teixeira de Sousa, em 13/05/2019, Jurisprudência 2019 (18); acórdão do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2).

Outro é o de que “os valores monetários em causa sempre implicariam a incompetência deste tribunal em razão do valor”. Mas não é assim, já que a variação de valor não tem, só por si, influência na competência do tribunal, desde que o processo especial continue a ser um processo especial, como no caso, em que se trata, apenas de um processo especial passar a seguir, a partir de determinado momento, os termos de um processo comum, sem se converter num processo comum (ac. do TRL de 16/02/2016, proc. 7415/14.5T8LSB-A.L1-1, e ac. do TRE de 09/07/2021, proc. 24/20.1T8RMZ.E1); num estudo de 18/01/2015 de MTS publicado no blog do IPPC, sobre o título conversão da forma do processo; perpetuatio fori, conclui-se no mesmo sentido: “Na área dos processos civis declarativos ou executivos, a única situação de translatio iudicii prevista na LOSJ é a que se encontra regulada no seu art.º 117.º, n.º 3: são remetidos à secção cível da instância central os processos pendentes nas secções da instância local em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Logo, há que concluir que, não havendo outra excepção à regra da perpetuatio fori no âmbito daqueles processos, a secção genérica da instância local não perde a sua competência pelo facto de o processo especial que nela foi proposto passar, a partir de certo momento, a seguir a forma comum.”


*3. [Comentário] Não pode deixar de se agradecer a atenção que foi dispensada à orientação que se tem defendido neste Blog sobre a admissibilidade da reconvenção na acção de divisão de coisa comum.

MTS