"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/10/2025

Bibliografia (1225)


-- Mazzamuto, S.Trattato di Diritto Privato, Vol. VIII: La tutela dei diritti / Tomo IV: L’esecuzione forzata diretta e indiretta, Giappichelli: Torino, 2025

-- Morotti, M., Contributo allo studio del potere generale di cautela tra giudici di merito e controllo delle corti supreme / Profili di diritto interno e comparato, Giappichelli: Torino, 2025

Jurisprudência 2024 (241)


Processo de inventário;
remessa para os meios comuns


1. O sumário de RC 11/12/2024 (132/20.9T8OHP-A.C1) é o seguinte:

I – Nas questões relativas à determinação dos bens/direitos que integram o património comum a partilhar a regra é a de que o juiz deve dirimir todas as questões suscitadas controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar os fins do processo.

II – Apenas se justifica a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada, por implicar uma efetiva diminuição das garantias que estão asseguradas às partes no processo comum.

III – Não deve ser remetida para os meios comuns a questão da averiguação da titularidade de saldos bancários ou aplicações financeiras se tal não envolver larga ou extensa averiguação fáctica e se a apreciação da mesma em sede de inventário não acarretar uma redução das normais garantias das partes.

IV – No inventário para a partilha de bens comuns subsequente a divórcio devem ser relacionados não apenas os bens existentes no património coletivo do casal à data da propositura da ação de divórcio (caso os seus efeitos patrimoniais não devam retrotrair a momento anterior), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deva conferir, por lho dever.

V – Assim, deve ser conferido ao património comum do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, dessa forma logrando um enriquecimento do seu património próprio à custa do património coletivo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante não se conforma com a decisão recorrida, sustentando que o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, decidir que devem ser relacionados dois dos produtos financeiros identificados no ponto 19º da sua reclamação contra a relação de bens - a aplicação de depósito no banco Banco 1... e a aplicação Banco 2... VIDA AFORRO – pelo que, na parte correspondente, não poderia ter sido decidida a remessa das partes para os meios comuns.

Questiona assim a bondade da decisão que remeteu as partes para os meios comuns somente no que se refere à questão da reclamada obrigação de relacionar o saldo bancário do Banco 1... e o valor das aplicações financeiras Banco 2... VIDA AFORRO, que identifica naquele ponto n.º 19 da sua reclamação contra a relação de bens.

Para o efeito, sustenta que, perante a factualidade que foi considerada como provada e não provada na anterior decisão de 23 de maio de 2023 e face às informações bancárias juntas ao processo na sequência de tal decisão, o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, determinar o cabeça de casal, aqui apelado, a relacionar o valor correspondente aos dois mencionados produtos financeiros.

Conhecidos os fundamentos da decisão apelada e, bem assim, os razões da oposição/crítica que à mesma dirige a recorrente, vejamos de seguida se assiste razão a esta.

Antes, porém, cumpre fazer uma breve referência às disposições legais em que se fundou a decisão proferida pelo despacho em crise.

O artigo 1093.º do Código de Processo Civil (com e epígrafe outras questões prejudiciais) dispõe:

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha».

Por seu turno, o art.º 1.105º do Código de Processo Civil (com a epígrafe tramitação subsequente) dispõe:

1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º

4 - A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil.

5 - Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens. (…)

Em anotação ao (novo) regime do processo de inventário, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres escrevem o seguinte [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 10/11.]

O novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1,b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes.

A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.

E, em anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil, os citados autores consignam [Obra citada, pags. 48 a 51.]

“As questões prejudiciais abrangidas pelo nº 1 são, fundamentalmente, aquelas que, não dizendo respeito à definição dos direitos sucessórios das partes do processo, se repercutam na determinação quer dos bens que integram o acervo hereditário, quer do passivo pelo qual é responsável o património a partilhar. O nº 1 abrange, por exemplo, os casos em que certo bem foi relacionado pelo cabeça-de-casal como pertencendo à herança ou como tendo determinado conteúdo ou objecto material, mas contra essa relacionação foi deduzida reclamação ou impugnação por qualquer interessado (artº 1104º, nº 1, al. d)) (…)

Sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo hereditário ou o passivo que onera este acervo, a regra é a de que o juiz – como decorrência do principio segundo qual o Tribunal competente para a ação é também competente para conhecer os incidentes que nela se levantam (art. 91º, nº 1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e convertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária.

No entanto, a apreciação incidental, no âmbito do processo de inventário, das questões atinentes à determinação dos bens que integram o património hereditário ou ao passivo deste património nem sempre será possível ou conveniente: a) O n.º 1 admite que o juiz se possa abster de decidir incidentalmente a questão litigiosa e remeter as partes para os meios comuns, quando a complexidade da matérias de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificadas e às limitações probatórias (que quase só não existem para a prova documental) que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto nos – arts. 1105º, n.º 3, e 1110º, n.º 1, al. a).

Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada. Para que isso suceda é necessário que a tramitação do processo implique uma efetiva diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum (n.º 1). A diminuição destas garantias reflete-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam larga indagação factual ou probatória”.

E, nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil [Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 547.]

“[q]ualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.

(…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns.

(…) Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”.

A “resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário. Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns”.

E mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.

A decisão incidental das reclamações em sede de inventário não pressupõe necessariamente que as questões suscitadas possam ser objeto, pela sua simplicidade, de uma indagação sumária, mediante apenas certos tipos de prova, maxime documental, seguida de decisão imediata: a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo no entanto, excecionalmente, em caso de particular complexidade da matéria de facto a apreciar – e para evitar redução das garantias das partes – usar da possibilidade prevista no estatuído no n.º 1 do art.º 1093º do Código de Processo Civil [Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2004, p. 268, em anotação ao art. 1350º do CPC de 1961.]

E faz sentido que assim seja, que seja destacada na lei a complexidade da matéria de facto a apreciar – e não a matéria jurídica – dado que é a prova da matéria de facto subjacente às questões suscitadas (que as partes têm o ónus de alegar e provar) que pode tornar-se mais difícil para as partes, com as necessárias limitações das provas a produzir no incidente do processo de inventário, questão também realçada no n.º 1 do art.º 1093º do CPC, de que a inconveniência da apreciação da matéria de facto implique a redução das garantias das partes [Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/02/2023, processo n.º 176/18.0T8VPC-D.G1 (relatora Maria Amália Santos), in www.dgsi.pt.]

Ora, no caso concreto, está em causa a reclamação contra a relação de bens, mais especificamente discutindo-se necessidade de relacionar o saldo bancário de uma conta do Banco 1... e os produtos financeiros Banco 2... VIDA AFORRO, cuja falta (de relacionação) foi acusada pela ora recorrente, na sua reclamação contra a relação de bens.

E o certo é que, na decisão de 25 de maio de 2023 (já transitada em julgado) que se pronunciou (parcialmente) sobre a decisão contra a relação de bens, provou-se que:

- No dia 23.03.2015 o cabeça de casal procedeu ao resgate de €3.498,65 da aplicação de prazo fixo – deposito especial Banco 1... 3 Anos, para a conta n.º ...01 e transferiu o montante de €3.518,09 para a conta de terceira pessoa, sem o conhecimento da interessada (facto n.º 4 da mesma decisão).

- A Conta ...33, no Banco 2..., SA, que em 30/09/2014 tinha um saldo de € 27.404,64 consignado em dois produtos designados por Banco 2... VIDA AFORRO com os números  ...17, no montante de €5.480,93 e  ...17, no montante de €21.923,71 (facto n.º 6 da dita decisão);

Por outro lado, na resposta à reclamação contra a relação de bens, o cabeça de casal, ora recorrido, não alegou quaisquer factos que permitissem concluir que o dinheiro depositado na mencionada conta Banco 1... e aplicado nos mencionados produtos financeiros Banco 2... estava excluído da comunhão conjugal, limitando-se a referir que “antes de ser decretado o divórcio existiram movimentos a débito em contas de depósitos bancários, para fazer face a despesas correntes que eram da responsabilidade de ambos os cônjuges, nomeadamente obras de reparação e conservação na casa sita em Portugal”, factualidade essa que, naquela mesma decisão, foi considerada como não provada.

Assim sendo, perante a matéria de facto alegada, restaria apenas apurar a natureza da aplicação financeira  dos produtos designados Banco 2... Vida Aforro (o que, como melhor se verá adiante, será essencial para determinar de bem comum ou antes de bem próprio subscritor/beneficiário dos mesmos) e determinar se o cabeça de casal se apropriou ilegitimamente das correspondentes quantias, o que, em nosso entender.

Salvo melhor opinião, tal tarefa poderá bastar-se com a análise de prova documental. Seja através dos documentos bancários que já se encontram juntos ao autos de inventário (e cuja veracidade não foi colocada em causa por qualquer das partes) -  mormente aqueles que permitirão aferir as datas dos levantamentos/resgates das quantias em causa e a titularidade das contas bancárias onde, posteriormente a isso, foram os correspondentes valores depositados –  seja por meio de outros elementos documentais que poderão ainda ser solicitados ao Banco 3... e à Seguradora A..., tais como os contratos – e respetivas cláusulas – que titulam os produtos financeiros associados à identificada conta Banco 2..., de forma a permitir a qualificação jurídica dos mesmos.

Por conseguinte, não subscrevemos o entendimento seguido pela Sra. Juíza a quo de que as questões a apreciar, na parte que concerne ao aludido depósito Banco 1... e aos produtos financeiros Banco 2..., envolvam uma extensa e complexa indagação fáctica.

E, salvo o devido respeito, também não subscrevemos o seu entendimento de que a decisão dessas concretas questões no inventário pendente reduziria as garantias das partes.

Por isso, concluímos que a apreciação da sobredita questão da relacionação, ou não, dos valores atinentes ao identificado depósito no Banco 1... e aos seguros de Vida Banco 2... AFORRO não poderia ter merecido a mesma solução que a decisão recorrida deu às demais questões relacionadas com a alegada falta de relacionação de outras contas bancárias e aplicações financeiras (de cuja bondade não cabe aqui apreciar, por estar excluída do objeto do recurso), sendo, por isso, de revogar a decisão que relegou as partes para os meios processuais comuns, na parte concernente às questões que a recorrente colocou à apreciação deste Tribunal."

[MTS]


06/10/2025

Bibliografia (1224)


-- Abrantes Geraldes, A. / Pimenta, P. / Pires de Sousa, L. F., Código de Processo Civil Anotado I, Almedina: Coimbra 2025

Jurisprudência 2025 (6)


Acção de anulação de deliberação social;
valor da causa*


1. O sumário de RL 14/1/2025 (2942/23.6T8VFX.1.L1-1) é o seguinte:

I - Mesmo em caso de concordância das partes sobre o valor indicado para a acção, o Tribunal deve fixá-lo pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito.

II - Embora deva ocorrer normalmente no despacho saneador, nada obsta a que a fixação do valor da acção ocorra anteriormente a tal despacho.

III - Na acção de anulação de deliberação social, onde se pretende anular uma deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de determinado ano, não é possível apurar os efeitos patrimoniais directos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios, situando-se assim a acção no âmbito dos interesses imateriais.

IV - Deste modo, o valor da acção deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (art.º 303º nº 1 do Código de Processo Civil), ou seja, será de fixar à acção o valor de 30.000,01 €.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Código de Processo Civil estabelece, nos seus artºs. 292º a 295º, as regras gerais a que deverão obedecer quaisquer incidentes inseridos na tramitação de uma causa (os designados incidentes da instância), quando não exista regulamentação especial para esse efeito.

Assim, estabelece-se no art.º 293º do Código de Processo Civil que, no requerimento em que se suscite o incidente e na respectiva oposição, “devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”, havendo um prazo de dez dias para dedução da referida oposição, cuja falta “determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere”.

De acordo com o art.º 294º do Código de Processo Civil, cada parte não pode produzir mais que cinco testemunhas e os depoimentos prestados antecipadamente ou por carta são gravados nos termos do art.º 422º do Código de Processo Civil.

Por último, estabelece o artigo 295º do Código de Processo Civil, a propósito da tramitação final dos incidentes da instância, que, finda a produção da prova, “pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 607º”. De referir ainda que, nos subsequentes artºs 296º e ss. do Código de Processo Civil, são especialmente regulados diversos incidentes da instância, designadamente o de verificação do valor da causa, a intervenção de terceiros, a habilitação e a liquidação.

Ora, a propósito do incidente de verificação do valor da causa, há que ter em atenção o art.º 296º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”.

Estipula, por sua vez, o art.º 305º nº 1 do Código de Processo Civil que “no articulado em que deduza a sua defesa, pode o réu impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição; nos articulados seguintes podem as partes acordar em qualquer valor”. Adianta o nº 2 do preceito que, “se o processo admitir unicamente dois articulados, tem o autor a faculdade de vir declarar que aceita o valor oferecido pelo réu”. Por seu turno, o nº 3 refere que “quando a petição inicial não contenha a indicação do valor e, apesar disso, haja sido recebida, deve o autor ser convidado, logo que a falta seja notada e sob cominação de a instância se extinguir, a declarar o valor; neste caso, dá-se conhecimento ao réu da declaração feita pelo autor e, se já tiverem findado os articulados, pode o réu impugnar o valor declarado pelo autor”. Por fim, o nº 4 do normativo dispõe que “a falta de impugnação por parte do réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor”.

Consagra ainda o art.º 306º do Código de Processo Civil que:

“1 – Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes”.
“2 – O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o nº 4 do artigo 299º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença”.
“3 – Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641º”.

Determina, também, o art.º 308º do Código de Processo Civil que, “quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar”.

Dos citados artigos resulta, desde logo, que a competência para fixação do valor da causa compete ao Juiz, pelo que, mesmo havendo acordo entre as partes relativamente a tal valor, não concordando o Juiz com o mesmo, deverá proceder à sua determinação em face dos elementos constantes do processo ou, sendo estes insuficientes, proceder à realização das diligências que considere indispensáveis, não só requeridas pelas partes, como decididas oficiosamente (art.º 308º do Código de Processo Civil).

Conforme referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, pg. 356):

“Certo é que, independentemente das posições assumidas pelas partes, o Juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas (artigo 306º, nº 1)”. [...]

*
g) Por fim, vejamos se é de alterar o valor da acção.

Entendeu o Tribunal “a quo” que o valor da acção seria o valor do balanço de 31/12/2022. Assim, decidiu atribuir à causa o valor de 6.271.263 €.

Fundamentou a sua decisão dizendo que “o valor da acção que tenha por escopo a anulação de deliberação social corresponde ao valor da deliberação que constitui o acto jurídico anulando – art.º 301º nº 1, do CPCivil”. “No caso, pede-se a anulação da deliberação social que aprovou o balanço de 2022, da deliberação social que aprovou a aplicação do resultado líquido de 2022 e da deliberação social de apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade”. Entendeu o Tribunal que apenas a primeira das três deliberações tem uma “utilidade imediata económica”, pelo que é o valor desta a determinar o valor da acção.

Estamos, “in casu”, perante uma acção de anulação de deliberações sociais, a qual se mostra prevista no art.º 59º do Código das Sociedades Comerciais.

*
h) Nos termos do disposto no art.º 296º do Código de Processo Civil, “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal (…)” (nº 1), sendo a este valor que se atenderá para “determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal” (nº 2).

O valor da causa há-de representar a utilidade económica imediata que pela acção se pretende obter (cf. art.º 296º nº 1, segunda parte, do Código de Processo Civil).

Assim, se na acção se pede uma quantia certa em dinheiro, a importância pedida marca o valor da acção, mas “se pela acção se pretende obter benefício diverso do pagamento de quantia certa, o valor da acção será a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício” (cf. art.º 297º nº 1 do Código de Processo Civil).

Porém, “estando em causa a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um negócio jurídico, “atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes” (cf. art.º 301º nº 1 do Código de Processo Civil).

Tratando-se de deliberação social, “tudo depende do conteúdo e alcance da deliberação cuja anulação se pretende. Há-de atender-se, pois, ao que a deliberação, em si, representa para a vida e funcionamento da sociedade” (cf. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pg. 622)

“Acções sobre interesses imateriais correspondem às acções cujo objecto não tem valor pecuniário (…). Visam à declaração ou efectivação de um direito extra-patrimonial” (cf. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pg. 625).

No caso em apreço, conforme já se referiu, pretendem as recorrentes que se anulem as seguintes deliberações:

“Primeiro – Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de 2022, incluindo a aprovação do Balanço, Relatório de Gestão e restantes documentos de prestação de contas do referido exercício;
Segundo – Deliberar sobre a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício de 2022;
Terceiro – Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade”.

Conforme bem se refere na decisão “sub judice”, à última deliberação não se pode atribuir uma utilidade imediata económica. A segunda deliberação, por sua vez, não apresenta autonomia face à primeira.

E será possível atribuir um valor económico à primeira?

Entendemos que não.

Com efeito, a deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de 2022 (incluindo a aprovação do Balanço, Relatório de Gestão e restantes documentos de prestação de contas do referido exercício), não diz respeito à atribuição ou distribuição de lucros, não sendo possível apurar os efeitos patrimoniais directos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios.

Assim sendo, a presente acção, ainda que respeitante a uma deliberação social, não tem, pelo seu alcance, um valor pecuniário, situando-se, sim, no âmbito dos interesses imateriais.

E, assim sendo, o valor da acção deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (cf. artºs. 303º nº 1 do Código de Processo Civil e 44º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei nº 62/2013, de 26/8), ou seja, será de fixar à acção o valor de 30.000,01 €."

*3. [Comentário] O decidido no acórdão talvez permita concluir que, quando os interesses patrimoniais são meramente reflexos de interesses não patrimoniais, a acção tem por objecto interesses imateriais.  Noutros termos: só pode ser atribuído um valor patrimonial à acção quando os efeitos patrimoniais sejam uma consequência directa do pedido do autor.

MTS

03/10/2025

Periculum in mora -- o que é (e o que não pode ser)


1. No sumário de um acórdão de uma das Relações pode ler-se o seguinte: 

-- "Na providência cautelar comum, o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação implica que [o] dano tenha uma gravidade assinalável de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil";

-- "Relativamente aos interesses meramente pecuniários, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial".

Com a devida consideração, não se pode aceitar nenhuma destas afirmações (que talvez não sejam da responsabilidade dos subscritores do acórdão).

2. Na fundamentação do acórdão encontra-se a seguinte afirmação:

"[...] não basta, para o deferimento da providência [cautelar], que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano."

Salvo o devido respeito, não é correcto dizer-se que as providências cautelares se destinam a prevenir um dano que o requerente pode vir a sofrer, ou seja, um dano futuro. As providências cautelares destinam-se a evitar o dano -- dano presente, talvez se possa dizer -- que ocorrerá para o requerente se a providência não for decretada. É, aliás, isso que resulta do disposto no art. 2.º, n.º 2, CPC, dado se estatui expressamente que as providências cautelares se destinam a "acautelar o efeito útil da ação" principal. Como se sabe, uma das formas de obviar a esta inutilidade é antecipar na tutela cautelar a tutela definitiva que vai ser obtida através da acção principal.

Assim, se, por exemplo, através de um procedimento cautelar comum, um interessado requer a reparação urgente de um muro que se encontra numa cota superior à da sua habitação e que ameaça desabar sobre esta, o que interessa considerar para aferir o periculum in mora é o dano que pode ocorrer se a providência não for decretada, não o dano que o requerente terá depois de o muro ter desabado sobre a sua habitação.

Procurando ser claro: o periculum in mora é apreciado pelo dano que o não decretamento da providência causa ao requerente, não pelo dano que a actuação ilícita do requerido inflige a esse requerente.

3. A afirmação da Relação sobre o dano a que se refere a providência cautelar e pela qual se afere o periculum in mora conduz a uma segunda afirmação, salvo melhor opinião, igualmente muito discutível:

"Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil."

Basta pensar num exemplo simples para se verificar que não pode ser assim. Imagine-se (para não repetir o exemplo anterior) que, num procedimento cautelar, alguém que é afectado pela poluição sonora provocada por uma oficina requer que esta tome as medidas necessárias para terminar essa poluição. Como é evidente, não teria sentido dizer que não há nenhum periculum in mora, porque os prejuízos sofridos pelo requerente com a referida poluição podem sempre vir a ser ressarcidos (eventualmente, apenas quando a oficina venha a ser condenada a fazê-lo no termo de um processo declarativo).

Repete-se: o periculum in mora é aferido pelo prejuízo que resulta para o requerente do não decretamento da providência cautelar. O que o tribunal tem de fazer é verificar qual o prejuízo que o requerente vai sofrer se a providência não for decretada, não fazer nenhuns prognósticos sobre a reparação dos prejuízos que o comportamento ilícito do requerido causa ao requerente. Suponha-se, por exemplo, que o requerente de uma providência cautelar pede a cessação de uma actividade de concorrência desleal; o que o tribunal tem de averiguar é qual o prejuízo que o requerente sofre se não ocorrer a cessação imediata da actividade concorrencial, não se a reparação d
o prejuízo decorrente da continuação dessa actividade pelo requerido é "inviável ou mesmo meramente difícil".

4. No caso concreto, a Relação limitou-se a decidir que "
os autos [devem] prosseguir os seus regulares termos com a produção de prova pertinente que ao caso couber, decidindo-se depois em conformidade e em função do quadro factual que da produção dessa prova venha a resultar", ou seja, acabou por não tomar posição sobre o preenchimento do requisito do periculum in mora

Efectivamente, a Relação termina concluindo o seguinte:

"Perante [...]a alegação factual [do requerente] torna-se evidente que, a provar-se, pode preencher o requisito do “periculum in mora”, na ponderação que se venha a fazer das condições económicas dos requeridos como acima se deu nota, razão pela qual o processo devia ter prosseguido os seus termos com a produção de prova e inerente fixação do quadro factual daí resultante."

Esta afirmação só pode partir do equívoco (infelizmente comum) de que, se os requeridos tiverem boa situação financeira, não se verifica nenhum periculum in mora. Como é claro, não é assim. Se o requerente pretende a reparação imediata dos ascensores do prédio, não tem nenhum sentido dizer que não há periculum in mora, porque o proprietário pode suportar todos os danos sofridos pelo requerente.

Repete-se o que acima se referiu: o periculum in mora é apreciado pelo dano que resulta para o requerente do não decretamento da providência, não pelo dano que a actuação ilícita do requerido causa ao requerente (e menos ainda por prognósticos sobre a ressarcibilidade deste dano). Nesta óptica, as providências cautelares comuns destinar-se-iam a prevenir a eventual dificuldade da reparação devida pela prática de actos ilícitos, o que, manifestamente, não corresponde à sua finalidade.

5. Em caso de interesse, remete-se para MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (2025/09), Art. 362.º, n.º 6 ss., onde a matéria respeitante ao periculum in mora é tratada com algum desenvolvimento.

MTS
 

Jurisprudência constitucional (244)


Requerimento probatório;
alteração

TC 9/6/2025 (485/2025) decidiu:

Não julgar inconstitucional o artigo 598.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual os vinte dias, em tal norma legal referidos, se reportam à primeira sessão da audiência e discussão de julgamento.

 

Jurisprudência 2025 (5)


Notificação judicial avulsa;
competência material


1. O sumário de RL 7/1/2025 (19376/24.8T8LSB.L1-7) é o seguinte:

A notificação avulsa é da competência dos tribunais administrativos, quando se destine a declarar a resolução do contrato de arrendamento, sempre que este tenha sido celebrado ao abrigo do “regime de renda acessível” (previsto no Regulamento Municipal do Direito à Habitação de Lisboa).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Competência material para a notificação avulsa, em geral

Começa a apelante a sua alegação sustentando que não cabe à jurisdição administrativa realizar notificações avulsas, por não encerrarem estas litígios, designadamente, sujeitos às normas de direito administrativo. Sem razão.

Para a decisão sobre a primeira questão suscitada, não importa imediatamente a qualificação da relação jurídica preexistente entre as partes no caso concreto (melhor, entre o município e a notificanda). Trata-se apenas de verificar se os tribunais administrativos são competentes para a tramitação de notificações avulsas, em geral, isto é, se este tipo de procedimento pode, em abstrato, correr os seus termos perante esta jurisdição.

Dispõe o n.º 1 do art.º 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), no que para o caso releva, que “[o]s tribunais da jurisdição administrativa (…) são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (…), nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Esta disposição reproduz, a um nível infraconstitucional, o teor do n.º 3 do art.º 212.º da CRPort.: “[c]ompete aos tribunais administrativos (…) o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (…)”.

Por seu turno, estabelece o art.º 4.º, n.º 1, als. e) e o), do ETAF que “[c]ompete aos tribunais da jurisdição administrativa (…) a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: // (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; // o) Relações jurídicas administrativas (…) que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.

Perante este quadro legal, a primeira questão que nos ocupa reconduz-se a determinar se uma notificação avulsa pode ser vista como a apreciação de um litígio. Numa nota intercalar, desde já adiantamos que assim tem sido entendido pelos Tribunais Administrativos – admitindo-se, no entanto, ser esta uma anecdotal evidence; cfr., por exemplo, o Ac. do TCAN de 12-04-2019 (00094/19.5BECBR).

A notificação avulsa inscreve-se sempre numa relação jurídica preexistente. Ou seja, conforme consta do n.º 1 do art.º 257.º do Cód. Proc. Civil, relaciona-se ela com a titularidade de um direito ou de uma faculdade do requerente (ou de quem este representa) – devendo esta posição jurídica, quando ulteriormente efetivada pela via contenciosa, ser exercida na ação própria. Sendo a notificação avulsa instrumental do exercício de um direito, não se vê razão para que não caiba aos tribunais administrativos a sua realização, quando tal direito emerge de uma relação jurídico-administrativa.

Na notificação avulsa, o recurso ao órgão de soberania tribunal para a realização de um ato jurídico é necessário ou tido por necessário pelo requerente. Afigura-se-nos que esta necessidade de recurso ao tribunal, no contexto do exercício de uma posição jurídica substantiva, ainda representa um pedido de tutela forense, a ser enquadrado num conceito lato de dirimição de um litígio.

E assim se deverão interpretar as normas do ETAF citadas: quando seja necessário recorrer ao tribunal para tutela de um direito emergente de uma relação jurídico-administrativa, deve a pretensão ser formulada perante os tribunais administrativos, independentemente da natureza e do fim da tutela pretendida – quer esta tutela seja realizada a título principal (por via de ação), quer tenha lugar por meio de um procedimento meramente instrumental (como por via de uma notificação avulsa). A não se entender assim, diversos outros procedimentos preparatórios que não se destinam a dirimir (definitivamente) o litígio poderiam ser excluídos da competência do tribunal administrativo, não obstante ser este competente para julgar a causa de que aqueles são meramente instrumentais – como a produção antecipada de prova e mesmo alguns procedimentos cautelares de âmbito meramente conservatório.

Em suma, o procedimento de notificação avulsa é da competência material dos tribunais administrativos, sempre que vise a comunicação de posições jurídicas destinadas a produzir efeitos no âmbito de uma relação jurídica administrativa − cfr. o Ac. do TCAN de 15-07-2015 (02216/15.6BEPRG). Conforme se sustenta neste acórdão, três razões justificam esta conclusão. São elas, em apertada síntese, as seguintes:

“Primeiro, porque se afigura ser essa a interpretação mais compatível com uma organização assente num modelo de dualidade de jurisdições e mais conforme com o critério constitucional de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa. (…)

“Segundo, porque o processo de notificação avulsa não é totalmente “neutro” ou indiferente à natureza da relação jurídica onde se pretende que venham a produzir-se os efeitos jurídicos decorrentes daquela notificação. (…)

“Terceiro, porque essa é a interpretação que mais se adequa ao regime processual que faz depender a notificação avulsa de despacho prévio (cfr. artigo 256.º/1 CPC). A exigência de despacho prévio, que se tem mantido nas sucessivas versões do Código de Processo Civil, implica que o juiz aprecie liminarmente o requerimento (…), nomeadamente, para saber se ‘o direito invocado existe abstratamente na lei’ (…)”.

Nada obsta, pois, que a notificação ora requerida possa ser da competência material dos tribunais administrativos − cfr., a propósito, o comentário sinótico de Miguel Teixeira de Sousa de 5 de dezembro de 2017, publicado no sitio blogippc.blogspot.pt, sob o título «Jurisprudência (742)». No entanto, tal competência só poderá ser afirmada, no caso, se os litígios respeitantes à relação jurídica em que se inscreve deverem ser dirimidos pela jurisdição administrativa.

Improcede, pois, a primeira ordem de conclusões apresentada pela apelante.

2. Competência material para a notificação avulsa requerida

Estabelece o art.º 64.º do Cód. Proc. Civil que “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Em ordem a determinar a competência do tribunal a quo temos, pois, de verificar se a competência para a eventual causa da qual a notificação avulsa é instrumental cabe a outra ordem jurisdicional – sendo certo que as regras de competência em razão da matéria não podem ser afastadas por vontade das partes (art.º 95.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

Como vimos, a competência material do tribunal a quo para efetuar a notificação avulsa requerida está dependente da qualificação da relação jurídica que intercede entre requerente (ou quem este representa) e notificando – no caso, entre o Município de Lisboa e a notificanda. Também sobre este ponto damos nota, em nova anecdotal evidence, de que os tribunais administrativos já aceitaram a sua competência para dirimir litígios em torno do programa de renda acessível do Município de Lisboa – cfr. o Ac. do TCAS de 03-10-2024 (3370/23.9BELSB-A). Vejamos se este entendimento é de acompanhar.

No que respeita às pessoas coletivas de direito público, o Direito Administrativo regula apenas necessariamente a sua atividade de gestão pública. A restante atividade destas entidades, ainda que enquadrada por normas de direito público, está sujeita às comuns regras de direito privado. Dito de outro modo, apenas as relações jurídico-administrativas (inscritas numa atividade de gestão pública) estão necessariamente sujeitas à normação própria do Direito Administrativo.

Na identificação e qualificação de uma atividade como sendo de gestão pública, é relevante conhecer o seu fim imediato. Sendo o fim prosseguido pelo ente público com a sua atuação, imediatamente, a satisfação de um interesse público específico, esta tende a inscrever-se na sua atividade de gestão pública.

Também essencial é verificar se a contratação foi obrigatoriamente submetida a procedimentos predispostos pelo Direito Administrativo, quer estejam previstos no Código dos Contratos Públicos (o que não é o caso dos autos: art.º 4.º, n.º 2, al. d), do Cód. Cont. Públicos), quer estejam contemplados em normação administrativa avulsa. Neste contexto, a normação regulamentar autárquica, sendo constituída por “normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, vis[a]m produzir efeitos jurídicos externos”, não deixa de integrar o quadro legal do Direito Administrativo – cfr. os arts. 135.º e 142.º, n.º 2, do CPA.

Não assume aqui especial relevância a circunstância de o tipo contratual adotado na conclusão desse procedimento negocial ter também uma ampla regulamentação pelo direito privado. Em qualquer caso, a matriz administrativa da relação entre as partes já se encontra estabelecida, sendo identitária desta relação.

No caso dos autos, o contrato de arrendamento que constitui a relação jurídica preexistente motivadora da notificação avulsa foi celebrado ao abrigo do Regulamento Municipal do Direito à Habitação de Lisboa (RMDH), tornado público pelo Aviso n.º 19251/2019, de 29 de novembro (Diário da República n.º 230/2019, Série II), no regime de “atribuição de habitação com renda acessível”. Note-se que, elucidativamente, o nome deste ato normativo revela que o mesmo visa tutelar o direito à habitação, não sendo um mero regulamento respeitante à gestão e frutificação do parque imobiliário da autarquia através do seu arrendamento.

Revela-nos a “nota justificativa” preambular RMDH que o regime do acesso à habitação com renda acessível tem por fim imediato a satisfação da atribuição do município lisbonense de promoção do direito constitucional à habitação – cfr. o art.º 23.º, n.º 2, al. i), do Anexo I à Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (que aprova o regime jurídico das autarquias locais). O fim dos contratos celebrados ao abrigo deste regulamento municipal é, pois, diretamente, satisfazer um interesse público – não sendo meramente instrumental da atividade quotidiana do município.

Neste contexto, a edilidade não arrenda o património autárquico com o fim de o rendibilizar (explorá-lo economicamente), mas sim como meio de proporcionar aos munícipes carenciados o acesso à habitação. O escopo do arrendamento sujeito ao regime do acesso à habitação com renda acessível não é, pois, substancialmente distinto do arrendamento sujeito ao “regime de arrendamento apoiado” ou da atribuição do “subsídio municipal ao arrendamento acessível” – sobre a competência para conhecer de litígios em torno de contratos celebrados ao abrigo de diferentes regimes respeitante ao arrendamento destinado a tutelar o direto à habitação, cfr. os Acs. do TConf. de 26-06-2014 (040/13), de 11-12-2013 (049/13), de 29-04-2014 (065/13), de 22-03-2023 (020/21) e de 15-11-2023 (09/23).

Neste regulamento municipal são, designadamente, definidas as regras de contratação a observar na celebração de contratos de arrendamento sujeitos ao regime do acesso à habitação com renda acessível (art.º 1.º, 5.º a 7.º e 26.º a 41.º do RMDH). Dispõe também esta normação autárquica sobre o valor da renda a pagar pelos arrendatários (art.º 26.º, n.º 3, do RMDH). Às questões não previstas no RMDH, aplicam-se subsidiariamente, prevalecentemente, as disposições da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro (que estabelece o regime do arrendamento apoiado para habitação e regula a atribuição de habitações neste regime), diploma este que estabelece que autarquias locais podem aprovar “regulamentação própria visando adaptar a presente lei às realidades física e social existentes” – cfr. os arts. 2.º, n.º 4, e 60.º, n.º 2, do RMDH.

Ora, a utilização obrigatória, como procedimento pré-contratual num arrendamento, de um concurso público (um “concurso por sorteio”) “implica o recurso a normas de direito público, já que no âmbito do direito privado não existe qualquer limitação de escolha dos outorgantes com quem se pretende celebrar estes contratos” – cfr. o Ac. do TConf. de 03-12-2015 (026/15); cfr., ainda, o Ac. do TRP de 28-10-2021 (84272/20.2YIPRT.P1). O mesmo se diga da fixação do valor da renda e dos requisitos da possibilidade de renovação do arrendamento: no âmbito do direito privado vale apenas a vontade das partes livre e validamente formada. Estas condicionantes da contratação são, de resto, referidas nos considerandos iniciais e no clausulado do contrato de arrendamento invocado pela requerente, conforme consta do ponto 3 – dos factos assentes (arts. 4.º, n.º 4, 5.º, n.º 1, e 12.º (proémio)).

Afigura-se-nos, pois, claro que a relação que se constitui entre o município e os candidatos à concessão de um arrendamento com “com renda acessível”, a partir do momento da apresentação das candidaturas, não é uma mera relação de direito privado. O mesmo é dizer que cabe aos tribunais administrativos conhecer dos litígios respeitantes à relação locatícia, sempre que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado pelo município ao abrigo do “regime de renda acessível” (previsto no Regulamento Municipal do Direito à Habitação de Lisboa)

Resta acrescentar que não vale aqui o argumento, invocado pela apelante, de acordo com o qual se encontra prevista a competência dos tribunais administrativos para “conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento apoiado” – cfr. o n.º 3 do art.º 17.º da já referida Lei n.º 81/2014 –, inexistindo idêntica disposição no ato normativo que estabelece o regime de “atribuição de habitação com renda acessível”. Como é evidente, o RMDH, sendo um mero regulamento municipal, nunca poderia dispor sobre as regras de competência dos tribunais – cfr. os arts. 110.º, 112.º e 165.º, n.º 1, al. p) da CRPort..

Em conclusão, cabendo à jurisdição administrativa, no caso, conhecer dos litígios respeitantes à relação locatícia preexistente, à mesma jurisdição também cabe a realização da notificação avulsa instrumental à tutela da posição jurídica do município, defendida pela apelante. Deve a decisão do tribunal a quo ser mantida."

[MTS]


02/10/2025

Jurisprudência 2025 (4)


Revelia operante;
efeito semi-pleno


1. O sumário de RP 13/1/2025 (1535/03.9TCLRS-E.P1) é o seguinte:

I - A consagração de um efeito cominatório semipleno na revelia operante não dispensa o juiz de elencar os factos alegados pelo autor que considera confessados (cf. artigo 607.º, nº 3 do CPCivil). II - Se o juiz não discriminou os factos provados por força da confissão tendo-se limitado a consignar: “consideram-se confessados os factos alegados pelo embargante”, a sentença é totalmente omissa quanto à fundamentação de facto e, consequentemente, é nula porque não especifica os fundamentos de facto que justificam a decisão [cf. artigo 615.º, nº 1 al. b) do CPCivil].

III - O uso da factie sepcies do citado nº 3 do artigo 567.º do CPCivil (fundamentação sumária) não pode ser automática, a causa há de revestir-se de manifesta simplicidade.

IV - Não cumpre a fundamentação, ainda que sumária, uma sentença (proferida nos termos do art.º 567.º, nº 3) que se limite a considerar confessados/provados os factos alegados pelo autor/requerente e que, de seguida, sem mais, passe à parte decisória.

V - A revelia operante, não afasta o réu da lide, o qual, nos termos do n.º 2, do artigo 567.º do CPCivil, pode apresentar alegações escritas.

VI - Se o tribunal recorrido omitiu, por completo, a observância da primeira parte do nº 2 do artigo já citado 567.º, não tendo facultado às partes o exame do processo pelo prazo de 10 dias para alegaram por escrito cometeu nulidade suscetível de influir objetivamente no exame e decisão da causa (art.º 195.º, n.º 1 do CPCivil).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como se evidencia da decisão recorrida a mesma foi prolatada ao abrigo do disposto no artigo 567.º, nº 2 do CPCivil por se ter considerado que as embargadas estavam numa situação de revelia operante.

Nos termos desta disposição adjetiva, não tendo o réu contestado–e tendo sido ou devendo considerar-se regularmente citado–consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença a julgar a causa conforme for de direito.

Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado (cf. nº 3 do mesmo inciso).

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, pág. 654.], “Nos termos gerais, e sem prejuízo das exceções referidas no art.º 568.º, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, restará apenas decidir a causa “conforme for de direito” (n.º 2, in fine). Com efeito, confessados que passam a ter-se os factos articulados na petição (não assim quanto aos que designadamente exijam prova documental), deixa de haver controvérsia nessa sede, limitando-se a questão à valoração jurídica desses mesmos factos. É de notar que o estado de revelia operante em que se encontra o réu, embora seja suscetível de potenciar tal desfecho, não conduz, sem mais, à procedência da ação[...].

Efetivamente, o processo declarativo é um processo cominatório semipleno, dado que a revelia operante nunca implica, por si mesma, a condenação do réu.

Com efeito, como salientam os referidos autores [Ob. cit., pág. 655.] apesar de os factos alegados pelo autor se considerarem confessados, sempre caberá ao juiz proceder ao respetivo enquadramento jurídico (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil), em termos de julgar a ação materialmente procedente, abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (com fundamento em questões processuais–artigo 608.º, n.º 1 do CPCivil), julgar a ação apenas parcialmente procedente, ou mesmo julgar a ação improcedente, sempre em função do resultado da aplicação das normas de direito material.

Acresce que, a revelia operante não afasta o Réu da lide, que nos termos do n.º 2, do artigo 567.º do CPCivil, pode apresentar alegações escritas, que se destinam a permitir que, face à circunstância de se registar assente a matéria de facto invocada pelo Autor, possa apresentar a sua argumentação de direito perante a referida factualidade, seja para concluir que os factos alegados e confessados não suficientes para suportar o efeito jurídico pretendido, ou apenas o suportam parcialmente.

Isto dito, importa, todavia, ter bem presente que a assumida tendência do legislador para a celeridade da solução, nas situações, como a dos autos, não pode confundir-se com aligeiramento ou maior facilitação relativamente ao cumprimento mínimo das devidas regras técnico-jurídicas.

Na verdade, a imediata cominação, para a revelia do Réu, traduz-se apenas e imediatamente ao nível da matéria de facto: consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.
Mas quais são esses factos?

Independentemente de nem toda a matéria de facto alegada na p.i. assumir, de forma categórica e incondicional, essa natureza–o que impõe naturalmente uma prévia seleção, com vista à subsequente implementação do raciocínio subsuntivo e solução jurídica, no mínimo em termos do clássico silogismo judiciário–não pode ignorar-se a disciplina decorrente do art.º 607.º, nº 3 do CPCivil, que manda discriminar os factos que o juiz considera provados.

Ora, só depois de elencados os factos que se consideram assentes, dentre os articulados e ante a confissão ficta do réu, é que pode julgar-se a causa conforme for de direito e, como é evidente, este julgamento impõe a respetiva fundamentação de facto.

Acrescem, além disso, as razões determinantes de que só dessa forma é possível sindicar tal decisão, em sede de recurso, ainda que a matéria de facto não tenha sido impugnada, além de que, não deve negligenciar-se que o réu revel, como bem lembra Abílio Neto [In C.P.T. Anotado, 5ª Edição, 2002, pág. 152.], continua a ser afinal o destinatário da decisão e deve saber quais os factos tidos por relevantes e que estiveram na base da sua condenação.

Como se evidencia da decisão recorrida, na sua parte propriamente dispositiva a M.ª juiz limitou-se a usar a facilidade consentida pelo n.º 3 do citado artigo 567.º do CPCivil.

E assim, depois de ter consignado a verificação da regularidade da notificação e a falta de contestação das embargadas, considerou confessados os factos articulados na petição inicial dos embargados deduzidos pelo embargante/executado e, sem mais, julgou os mesmos procedentes com a consequente extinção da execução.

Assim sendo, facilmente se conclui que o tribunal recorrido não discriminou os factos provados por força da confissão e impunha-se, que o fizesse, uma vez que, como já referimos, não existe qualquer fundamento legal que dispense o cumprimento do disposto no artigo 607.º, n.º 3, do CPCivil.

Destarte e sem margem para qualquer tergiversação que a decisão padece de nulidade por falta absoluta de fundamentação de facto estando, pois, preenchida a factie sepcies da al. b) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil. [E no caso tal fundamentação inexiste mesmo que se adira ao entendimento plasmado no Ac. do STJ de 19/10/2021 Processo nº 2189/20.3T8FNC-A.L1-A.S1 de que “A sentença a proferir nos termos do art.º 567.º, n.º 3, do CPC - em que o réu, regularmente citado na sua pessoa, não contestou - não tem que cumprir rigorosamente os n.º 3 e 4 do art.º 607.º do CPC e que segmentar/autonomizar a fundamentação de facto e a fundamentação de direito, podendo proceder às duas fundamentações em simultâneo, aludindo aos concretos factos (globalmente considerados como confessados, nos termos do art.º 567.º, n.º 1, do CPC) a propósito do seu enquadramento jurídico”, pois que, no caso concreto, a falta de fundamentação factual é absoluta.]

Trata-se de norma que se relaciona com o dever de fundamentar as decisões consagrado designadamente no art.º 205.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual “(A)s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. E também no art.º 154.º do CPCivil, que preceitua:

“1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
*
Da mesma forma e salvo o devido respeito, também a sentença é nula por falta absoluta de fundamentação de direito.

Como já noutro passo se referiu o tribunal a quo aderindo aos fundamentos de facto constantes da petição inicial julgou, sem mais, aos embargos procedentes.

Ora, o uso da factie sepcies do citado nº 3 do artigo 567.º do CPCivil não pode ser automática.

A causa há de revestir-se de manifesta simplicidade.

É que o disposto no citado nº 3 do art.º 567.º não dispensa a fundamentação da sentença, ele apenas possibilita, perante a referida simplicidade da causa, uma “fundamentação sumária”.
Dito doutro modo, não cumprirá a fundamentação, ainda que sumária, uma sentença (proferida nos termos do art.º 567.º, nº 3) que se limite a considerar confessados/provados os factos alegados pelo autor/requerente e que de seguida, sem mais passe à parte decisória.
E, no caso, esse pressuposto (manifesta simplicidade) não só não se invocou nem caracterizou, como, na nossa perspetiva, não se verifica.

Com efeito, bastará atentar, que embargante/executado deduziu oposição por embargos e oposição à penhora e, no que concerne à oposição por embargos, além de proceder à defesa por impugnação, procedeu à defesa por exceção, invocando a falta de título executivo, a falta de mandato forense, a ilegitimidade da exequente CC, a inexistência da obrigação e a prescrição, o que está, aliás, patente na extensão da peça respetiva peça composta de 150 artigos.
*
Para além disso, como decorre dos autos o tribunal recorrido omitiu, por completo, a observância da primeira parte do nº 2 do artigo já citado 567.º, não tendo facultado às partes o exame do processo pelo prazo de 10 dias para alegaram por escrito.

Como já supra se referiu a revelia operante não afasta o Réu da lide, que pode apresentar alegações escritas, que se destinam a permitir que, face à circunstância de se registar assente a matéria de facto invocada pelo Autor, possa apresentar a sua argumentação de direito perante a referida factualidade.

Omissão de ato que a lei prescreve que, sem margem para qualquer dúvida, configura uma nulidade, suscetível de influir objetivamente no exame e decisão da causa (art.º 195.º, n.º 1 do CPCivil).

Com efeito, a ablação desse direito da apelante, implica que esta não tenha tido a oportunidade de exibir a sua posição sobre a factualidade dada como provada, e que se destinaria a permitir uma decisão final (sentença) enformada com todas as posições jurídicas que as partes lhe transmitiriam.

Aceitar-se que essa fase processual não influiria no exame e decisão da causa seria reconhecer que a lei teria criado uma fase processual sem qualquer utilidade, o que ela própria não permite (art.º 130.º do CPCivil)."

[MTS]


01/10/2025

Competência para o processo de insolvência: um indesejável equívoco legislativo (2)

 
1. Na sequência do anterior post, apresenta-se uma sugestão para a redacção do art. 7.º CIRE. A sugestão é a seguinte:

1. Para a abertura de um processo principal de insolvência é competente o tribunal do lugar do centro dos interesses principais do devedor. Na determinação do centro dos interesses principais do devedor aplica-se o estabelecido no art. 3.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar fora no território português, é competente para a abertura de um processo territorial o lugar do estabelecimento do devedor. Os efeitos do processo territorial são limitados aos bens do devedor que se encontrem em Portugal.

2. Deixam-se as seguintes notas sobre o articulado sugerido:

-- Pretende-se construir um regime universal, ou seja, um regime que seja aplicável quando o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM (incluindo, naturalmente, Portugal) e quando isso não suceda;

-- Por uma questão de simplicidade, opta-se por regular num único preceito quer a competência internacional, quer a competência territorial; não se vislumbra nenhuma justificação para que o tribunal territorialmente competente não seja determinado em função do elemento de conexão que é relevante para a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses; para reforçar que também se está a regular a competência territorial, optou-se por apresentar uma proposta construída na perspectiva desta competência, sendo, no entanto, claro que a competência territorial "arrasta" a competência internacional;

-- Sobre o n.º 1:

-- O proposto é totalmente compatível com o disposto no art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848, dado que observa o princípio de que, quando o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM (incluindo, naturalmente, Portugal), a competência para a abertura de um processo principal de insolvência pertence aos tribunais desse EM; é naturalmente irrelevante se o devedor tem sede ou domicílio em Espanha ou na Bélgica ou em Angola ou Singapura; 

-- A referência ao Reg. 2015/848 pode ser eliminada, sem qualquer consequência para a aplicação do preceito, dado que, seja como for, a determinação do centro dos interesses principais do devedor em Portugal, é sempre realizada segundo o estabelecido naquele diploma europeu; no entanto, a referência parece ser útil para lembrar ao aplicador a necessária unidade entre o regime interno e o regime europeu; 

-- Sobre o n.º 2:

-- Parte-se do princípio de que se considera desejável regular a competência para o processo territorial de insolvência;

-- O proposto destina-se a regular a situação na qual o centro dos interesses principais do devedor se situa fora do território português e em que, portanto, não pode ser aberto em Portugal um processo principal de insolvência;

-- Regula-se a competência para o processo territorial, independentemente de o centro dos interesses principais do devedor se situar num EM ou num Estado terceiro; assim, em comparação com o disposto no art. 3.º, n.º 2, Reg. 2015/848, o âmbito de aplicação do regime proposto é mais vasto, dado que também se aplica a devedores que tenham o centro dos interesses principais num Estado terceiro; na verdade, não se encontra nenhum motivo para regular a competência para o processo territorial de forma diferente quando o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM ou num Estado terceiro; aliás, a identidade de regulação é mais favorável aos operadores forenses do que a construção de um regime diferenciado que não tem qualquer justificação evidente.

-- Optou-se por não propor nenhuma transposição para o direito interno do disposto no art. 3.º, n.º 4, Reg. 2015/848; o regime restritivo quanto à abertura de um processo territorial de insolvência que consta deste preceito faz sentido num espaço com legislação uniformizada e em que se pretende dar prioridade a um processo principal de insolvência que é aberto no centro dos interesses principais do devedor; pelo contrário, é discutível que esse regime de prioridade tenha justificação quando o processo principal de insolvência é aberto em qualquer outra geografia, eventualmente segundo critérios de competência completamente distintos daqueles que valem na UE; ainda assim, apesar de nenhuma regulação no plano interno, é evidente que o estabelecido no art. 3.º, n.º 4, Reg. 2015/848 deve ser aplicado pelos tribunais portugueses sempre que o processo de insolvência seja abrangido por aquele acto europeu;

-- Por uma questão de clareza, optou-se por utilizar a terminologia que é própria do Reg. 2015/848; não é conveniente utilizar no CIRE uma terminologia diferente daquela que é usada no Reg. 2015/848, dado que isso só ajuda a criar confusão no intérprete.

3. Como é claro, a alteração do disposto no art. 7.º CIRE não é tudo o que há a fazer para colocar o CIRE em consonância com o Reg. 2015/848.

4. A latere do que acima se disse, aproveita-se para esclarecer a razão pela qual o art. 3.º Reg. 2015/848, parecendo estar a regular a "competência internacional", está realmente a regular o âmbito de aplicação espacial daquele acto europeu. A razão é muito simples (e, no fundo, reconduzível à máxima de que a jurisdição determina a lei aplicável):

-- O art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848 atribui competência (exclusiva) ao tribunal do lugar do centro dos interesses principais do devedor para a abertura do processo principal de insolvência; 

-- Se o devedor não tiver o centro dos interesses principais num EM, não há nenhum tribunal de um EM que seja competente para a abertura do processo principal de insolvência;

-- Logo, se o devedor não tiver o centro dos interesses principais num EM, a abertura do processo principal de insolvência só pode ocorrer num Estado terceiro, que, naturalmente, não vai aplicar o Reg. 2015/848;

-- Portanto, a circunstância de o devedor ter o centro dos seus interesses principais num EM constitui uma condição da aplicação do Reg. 2015/848. 

MTS