"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/08/2025

Bibliografia (1220)


-- Revolidis, I. / Ciantar, M. / Ellul, J., Blockchain for Democratic Justice: Innovating the Service of Judicial Documents to Uphold the Rule of Law, Ledger 10 (2025), 77


04/08/2025

Bibliografia (1219)


-- Woo, M. Y. K. / van Rhee, C. H. (Eds.), Comparative Civil Procedure (Edward Elgar: Cheltenham / Northampton 2025)

31/07/2025

Informação (317)


Interrupção estival


À semelhança do que sucedeu em anos anteriores, o Blog interrompe as publicações regulares durante o mês de Agosto.

Espera-se retomar a normalidade no início do mês de Setembro.

MTS


Bibliografia (1218)


-- Barone, S., La tutela giurisdizionale delle chances illegittimamente perdute (Sapienza Università Editrice: Roma 2023)


30/07/2025

Jurisprudência europeia (TJ) (326)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.º 1215/2012 — Artigo 66.º — Âmbito de aplicação ratione temporis — Ação judicial intentada por um demandante — Emissão de uma injunção de pagamento — Oposição de um requerido a essa injunção que visa a reapreciação do processo em causa — Regulamento (CE) n.º 44/2001 — Artigo 5.º, ponto 3 — Competência em matéria extracontratual — Artigo 6.º, ponto 1 — Pluralidade de requeridos — Artigo 22.º, ponto 1 — Competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis — Ação que visa o pagamento de uma indemnização pela ocupação sem título contratual de um imóvel situado num Estado‑Membro — Requerido com domicílio noutro Estado‑Membro


TJ 10/7/2025 (C‑99/24 [Chmieka]) decidiu o seguinte:

1) O artigo 66.º, n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

para efeitos da determinação da aplicabilidade ratione temporis deste regulamento, se deve considerar que uma ação judicial foi intentada, na aceção desta disposição, na data em que o demandante intentou a sua ação, num processo que foi objeto de uma decisão numa data posterior, e não na data em que o demandado, numa data posterior, deduziu oposição dessa decisão pedindo a reapreciação desse processo.

2) O artigo 5.º, ponto 3, o artigo 6.º, ponto 1, e o artigo 22.º, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

devem ser interpretados no sentido de que:

– uma ação judicial que visa obter o pagamento de uma indemnização em razão da ocupação sem título contratual de um imóvel após a rescisão de um contrato de arrendamento relativo a esse imóvel, situado num Estado‑Membro diferente do domicílio do demandado em causa, não constitui uma ação «[e]m matéria de direitos reais sobre imóveis» e não está abrangida pelo conceito de «arrendamento de imóveis», na aceção deste artigo 22.º, ponto 1, primeiro parágrafo;
 
– um pedido de indemnização pela ocupação sem título contratual de um imóvel deve ser considerado abrangido pela «matéria extracontratual», na aceção deste artigo 5.º, ponto 3, e

– este artigo 6.º, ponto 1, só é aplicável se, à data da propositura de uma ação pela qual um demandante demandou vários requeridos perante um tribunal de um Estado‑Membro, existir a mesma situação de facto e de direito que torne necessário que todos os pedidos apresentados contra esses requeridos sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se esses pedidos fossem julgados separadamente em diferentes Estados‑Membros.
 

Jurisprudência europeia (TJ) (325)


Procedimiento prejudicial — Artículo 99 del Reglamento de Procedimiento del Tribunal de Justicia — Respuesta que puede deducirse claramente de la jurisprudencia — Cooperación judicial en materia civil — Competencia judicial, reconocimiento y ejecución de resoluciones judiciales en materia civil y mercantil — Reglamento (UE) n.º 1215/2012 — Competencias especiales — Artículo 7, punto 5 — Conceptos de “sucursal”, de “agencia” o de “cualquier otro establecimiento” — Acción de nulidad de contratos de aprovechamiento por turno de bienes inmuebles


TJ 12/6/2025 (15/24, Diamond Resorts Europe Ltd / M. D. et al.) decidiu o seguinte (versão portuguesa não disponível):

El artículo 7, punto 5, del Reglamento (UE) n.º 1215/2012 del Parlamento Europeo y del Consejo, de 12 de diciembre de 2012, relativo a la competencia judicial, el reconocimiento y la ejecución de resoluciones judiciales en materia civil y mercantil,

debe interpretarse en el sentido de que

un litigio que versa sobre una acción de nulidad de contratos de aprovechamiento por turno de bienes inmuebles y de restitución de cantidades indebidamente abonadas en virtud de dichos contratos no puede considerarse un «litigio relativo a la explotación de sucursales, agencias o cualquier otro establecimiento», en el sentido de esa disposición, cuando el consumidor afectado no ha suscrito ninguno de esos contratos con la sucursal de la sociedad cocontratante frente a la que se ejercita la acción, que se encuentra dentro del ámbito territorial del órgano jurisdiccional que conoce del litigio, y ningún otro elemento permite demostrar la implicación de dicha sucursal en las relaciones jurídicas existentes entre ese consumidor y la referida sociedad.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (324)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.º 1215/2012 — Competência em matéria de seguros — Artigo 11.º, n.º 1, alínea b) — Artigo 13.º, n.º 2 — Ação intentada pelo lesado diretamente contra o segurador — Conceito de “lesado” — Funcionário vítima de um acidente de viação — Manutenção da remuneração durante o período de incapacidade para o trabalho — Estado‑Membro que atua como entidade patronal sub‑rogada nos direitos de indemnização desse funcionário — Competência do tribunal do lugar em que o requerente tem o seu domicílio — Lugar da sede da entidade administrativa que emprega o referido funcionário


TJ 30/4/2025 (C‑536/23Bundesrepublik Deutschland/Mutua Madrileña Automovilista) decidiu o seguinte:

O artigo 13.o, n.o 2, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, lido em conjugação com o artigo 11.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento,

deve ser interpretado no sentido de que:

um Estado‑Membro que atua como entidade patronal sub‑rogada nos direitos de um funcionário que ficou ferido num acidente de viação, cuja remuneração manteve durante o período de incapacidade para o trabalho, pode, na qualidade de «lesado» na aceção deste artigo 13.o, n.o 2, demandar a companhia que cobre a responsabilidade civil resultante da circulação do veículo envolvido nesse acidente não no tribunal do lugar em que esse funcionário tem o seu domicílio, mas no tribunal do lugar da sede da entidade administrativa que emprega o referido funcionário, desde que uma ação direta seja possível.


Jurisprudência 2024 (220)


Procedimento cautelar comum;
comodatário


1. O sumário de RP 25/11/2024 (14750/24.2T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Quer o arrendatário quer o comodatário dispõem de pleno acesso à tutela possessória, mesmo de natureza cautelar, que é oponível erga omnes, incluindo perante o senhorio e o comodante.

II - As normas aditadas ao NRAU relativas à proibição de assédio no arrendamento, tendo por propósito ampliar os meios de defesa concedidos ao inquilino, não obstam ao recurso à referida tutela possessória.

III - O arrendatário e o comodatário podem recorrer ao procedimento cautelar comum, caso não estejam verificados os requisitos da restituição provisória da posse, para pôr cobro à ameaça de lesão grave e dificilmente reparável no exercício do seu direito de uso do imóvel.

IV - O fornecimento de energia e de água constituem factores relevantes no gozo de um imóvel cuja ameaça de lesão é susceptível de legitimar o acesso ao referido procedimento cautelar.

V - Não podendo manter-se a decisão que julgou improcedente o pedido cautelar logo após os articulados e existindo factos controvertidos com relevância para o efeito, devem os autos prosseguir em primeira instância para a realização da audiência de tentativa de conciliação e de produção de prova.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] segundo o art. 1037.º [n.º 1] do Código Civil, não obstante convenção em contrário, o locador não pode praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário, com excepção dos que a lei ou os usos facultem ou o próprio locatário consinta em cada caso, mas não tem obrigação de assegurar esse gozo contra actos de terceiro.

2. O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.

Por sua vez, o art. 1133.º [n.º 1] do mesmo diploma determina que o comodante deve abster-se de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, mas não é obrigado a assegurar-lhe esse uso.

2. Se este for privado dos seus direitos ou perturbado no exercício deles, pode usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.

O que, aliás, traduz um dos aspectos que justificam para a doutrina dominante a ideia de que, embora o nosso Código Civil tenha adoptado, como princípio geral, a concepção subjectiva da posse, consagrou várias soluções particulares que, em parte, coincidem com a concepção objectiva.

“Não se pense, como referem os autores, que há uma grande diferença prática entre o nosso sistema e os que consagram a concepção objectiva porque o legislador português ampliou a protecção possessória a várias situações de detenção como a do locatário, do parceiro pensador, do comodatário e do depositário” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 8.ª ed., pp. 171, citando igualmente Henrique Mesquita, in Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 63; no mesmo sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª ed., p. 6, para quem “a outorga da tutela possessória a várias situações de mera detenção mostra que, no plano das soluções práticas, a diferença entre o sistema jurídico português e os que consagram a concepção objectiva de posse se encontra bastante esbatida”).

Merecendo realce, a este nível, a circunstância de a referida tutela possessória ser reconhecida ao locatário mesmo contra o locador e também ao comodatário mesmo contra o comodante.

Para significar, pois, claramente, que enquanto perdurar a relação de arrendamento ou de comodato, o inquilino e o comodatário têm o direito de exigir a preservação da integralidade dessa relação e do direito exclusivo de se servir do bem erga omnes, incluindo perante senhorio e comodante.

Quanto a estes, aliás, tal direito concedido ao inquilino e ao comodatário é ainda reforçado mercê da imposição do dever de cumprimento pontual dos contratos (art. 406.º/1 do Código Civil), por um lado e, por outro, em face da proibição específica da prática de actos por parte do locador e do comodante que impeçam ou perturbem o uso da coisa (arts. 1037.º/1 e 1133.º/1 do CC).

Ora, a propósito da defesa da posse e, nos casos especialmente previstos, também da mera detenção, o Código Civil coloca à disposição do respectivo titular vários meios de reacção face a condutas lesivas.

Entre eles, em primeiro lugar, a designada acção de prevenção, no art. 1276.º, segundo o qual, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.

Da mesma forma, através da chamada acção de manutenção, prevista no art. 1278.º/1 do CC, estabelecendo que no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.

Prescrevendo ainda o art. 1279.º do CC que sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.

Todavia, mesmo no caso de não existir violência e esbulho, o titular da posse ou da detenção protegida mantém o direito à tutela possessória de natureza cautelar ou provisória visto que, nos termos do art. 379.º do Código de Processo Civil, ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum.

Devendo igualmente destacar-se que esta norma legal, sendo destinada a completar o elenco dos meios de defesa da posse previstos no Código Civil, é também aplicável, coerentemente com o demais regime possessório, aos casos em que ao mero detentor seja reconhecida por lei a referida tutela.

Neste sentido, refere a doutrina que “apesar de se encontrar inscrita num diploma de natureza adjectiva, estamos face a uma norma de direito substantivo que vem ampliar a tutela possessória prevista no CC”.

De modo que, “tal como sucede com a restituição provisória da posse, também o acesso à tutela cautelar comum, em situações de esbulho ou de turbação, aproveita aos direitos pessoais de gozo anteriormente mencionados, tais como o arrendamento, o contrato-promessa com tradição da coisa, o comodato, o depósito ou a locação financeira” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2.ª ed., p. 66).

Sendo certo ainda que “a turbação envolve naturalmente a ideia de simples embaraço ou inquietação ao exercício da posse, sem que, em todo o caso, o possuidor seja privado da retenção ou fruição da coisa ou do direito” (cfr. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 2.ª ed., p. 321).

No mesmo sentido, depõe igualmente a circunstância de se considerar que o art. 1276.º do Código Civil, para o qual remete expressamente o regime de tutela previsto nos arts. 1037.º e 1133.º do mesmo diploma para a locação e para o comodato, traduz uma medida “praticamente incluída no âmbito das providências cautelares não especificadas, a que se refere o artigo 399.º do Código de Processo Civil”, reportada “à possibilidade genérica de se requerer, com base no fundado receio de que outrem cause lesão e dificilmente reparável num direito, que o réu seja intimado para que se abstenha de certa conduta” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., Vol. III, p. 47).

Não é legítimo recusar, pois, nem ao locatário nem ao comodatário, o direito de recorrer às acções defensivas da posse, sem exclusão da tutela cautelar comum, perante actos de turbação ou de ameaça de lesão, embora grave e dificilmente reparável, do seu direito.

Tanto mais que, como defende a doutrina relativamente ao locatário, em lição que, todavia, é também plenamente aplicável ao comodatário, “a lei consente-lhe o recurso às acções possessórias precisamente para que ele logre defender de modo expedito, contra actos de esbulho ou de turbação, a relação de facto em que se encontra com a coisa” (cfr. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 149).

E muito menos é legítimo recusar nos referidos casos o acesso à tutela possessória com base nas normas que, aditadas pelo legislador em 2019 ao NRAU, para além se reportarem exclusivamente ao arrendamento, tiveram subjacente o propósito de alargar a protecção legal concedida ao inquilino perante comportamentos ilegítimos do senhorio.

Assim, sob a epígrafe “proibição de assédio”, dispõe o art. 13.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº6/2006 de 27-2, mercê do aditamento promovido pela Lei nº12/2019, de 12-2, que é proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado.

Como é bom de ver, semelhante protecção concedida ao arrendatário, no sentido de reforçar a posição do contraente mais débil na relação locativa, teve o óbvio intuito de colocar à disposição daquele, novos meios de defesa perante actos ilícitos do senhorio, sem afectar minimamente as formas de tutela que a lei já anteriormente facultava para o mesmo efeito.

Apenas neste sentido, como é claro, deve ser interpretado o segmento inicial do art. 13.º-B/1 do NRAU quando, a propósito da consagração da intimação para tomar as providências nele previstas e do recurso à injunção contra o senhorio para o mesmo fim (regulamentada depois pelo DL n.º 34/2021, de 14-5), ressalva “sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional decorrente dos atos e omissões em que se consubstancie o comportamento previsto no artigo anterior”.

Vale por dizer, assim, que os novos mecanismos de defesa do inquilino foram consagrados sem lhe retirar o acesso às formas de tutela do seu direito que a legislação já oferecia no plano civil, criminal ou contraordenacional, aí se incluindo, naturalmente, a tutela possessória.

Não existindo qualquer evidência ou sequer indício, ademais, que a Lei nº12/2019, de 12-2, ao consagrar a proibição do assédio no arrendamento, tenha passado a recusar ao inquilino o recurso às acções possessórias ou tenha revogado a norma do art. 1037.º/2 do Código Civil.

Na verdade, o art. 13.º-A do NRAU, que aquele diploma legal veio criar, limitou-se a tornar expressamente proibido qualquer comportamento ilegítimo do senhorio que, com o objetivo de provocar a desocupação do imóvel, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, mas não obrigou os lesados a recorrer aos mecanismos de defesa previstos no art. 13.º-B.

Sinal claro, pois, no sentido de que compete ao inquilino, respeitados que sejam os respectivos requisitos legais, a faculdade de optar entre os diversos meios de tutela, indistintamente de serem os tradicionais ou os mais recentes, que considerarem mais idóneos para a defesa do seu direito.

Importa concluir, por isso, sem hesitações, que ao arrendatário, tal como ao comodatário, naturalmente, face ao disposto nos arts. 1037.º/2 e 1133.º/2 do CC, é legítimo o recurso ao procedimento cautelar comum, caso não estejam verificados os requisitos da restituição provisória da posse, para pôr cobro à ameaça de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito."

Entendimento que, de resto, vem sendo reiteradamente preconizado pela jurisprudência dos tribunais superiores, mesmo depois de 2019.

Assim, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/11/2022 (relatado por Joaquim Boavida no processo 2744/22.7T8VNF-A.G1 e disponível na base de dados da Dgsi em linha), “no âmbito de procedimento cautelar de restituição provisória de posse instaurado em 02.05.2022, a existência de um contrato de arrendamento para comércio ou indústria, anterior a um contrato de trespasse de 10.05.1996, pode ser provada por qualquer forma admitida em direito”.

Tal como, na perspectiva recente deste Tribunal da Relação do Porto, “é admissível, em procedimento cautelar comum, a providência de manutenção da posse de imóvel arrendado até à definitiva decisão da questão do direito legal de preferência do arrendatário, a apreciar na ação principal” (cfr. Acórdão de 4/3/2024, da autoria de Eugénia Cunha, no processo 5214/22.0T8MTS-B.P1 e acessível na mesma base de dados).

Ao passo que no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/1/2023, ainda em tema de contrato de arrendamento, se sentenciou que “na falta de violência, a tutela do possuidor pode ser igualmente obtida, mas já no âmbito de um procedimento cautelar comum, desde que verificados os seus pressupostos” (cfr. Acórdão de 26/1/2023, tirado no processo 4683/22.2T8OER e relatado por Inês Moura, pesquisável no mesmo sítio).

O que, aliás, vem esse tribunal manifestando desde longa data, de acordo com a ideia de que “o arrendatário não sendo embora titular de um direito real, pode usar dos meios possessórios previstos na lei, designadamente da providência cautelar de restituição provisória de posse”.

Acrescentando que “a providência de restituição provisória de posse tem a sua justificação na violência cometida pelo esbulhador, visando-se com ela a rápida reposição da situação anterior” e que, “atento este particular aspecto no universo dos procedimentos cautelares, o requerente da providência de restituição provisória de posse não carece de alegar factos demonstrativos da lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, nem do periculum in mora” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/3/2008, referente ao processo 9/2008-8, assinado por Ferreira Lopes e disponível em texto integral na mencionada base de dados).

Da mesma forma, tem sido repetido o entendimento jurisprudencial que erige o fornecimento de energia e de água ao patamar dos factores relevantes de gozo de um imóvel cuja ameaça de lesão é susceptível de legitimar o acesso do arrendatário (e do comodatário) aos meios cautelares.

Como se defendeu no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 22/3/2022 (tirado no processo 1743/21.0T8PVZ.P1-A, relatado por Rui Moreira e acessível também em www.dgsi.pt), “o procedimento cautelar em que se pretenda que o requerido continue a assegurar o fornecimento de energia a um imóvel por si alegadamente arrendado pressupõe um juízo de probabilidade sobre a existência de um direito contratual ao respectivo gozo, como pressuposto do próprio direito ao fornecimento de energia”.

Expressando-se igualmente na jurisprudência a ideia de que “constitui dano grave e dificilmente reparável para efeitos do art. 362.º, n.º 1, do CPC, o corte do fornecimento de energia eléctrica, sem aviso prévio, pela empresa fornecedora a uma fracção onde está instalado um escritório de advocacia, demonstrando-se que por causa disso a requerente da acção cautelar, advogada, ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023, processo 2037/23.2T8CBR-A.C1.S1, relatado por Jorge Arcanjo e disponível em texto integral na página electrónica do DR).

Neste quadro, a decisão recorrida, julgando improcedente a providência logo após os articulados, foi precipitada e não pode manter-se.

E embora se compreenda a importância da preocupação dos tribunais com a celeridade na finalização dos processos, em prol da gestão eficiente da sua actividade, a verdade é que ela não pode negligenciar a exigência, de longe mais importante, do tratamento cuidado que a actuação judicial concede e deve sempre manter na apreciação de direitos essenciais das pessoas e das suas relações mais próximas, inclusivamente para prevenção de formas ilegítimas de acção directa ou até de comportamentos lesivos de bens jurídicos tutelados no direito sancionatório público, sendo fácil perceber a relevância que as acções possessórias podem assumir na prevenção de conflitos de maior gravidade e sendo certo que, à luz dos arts. 20.º/4 da Constituição e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a obtenção de uma decisão em prazo razoável é instrumental do julgamento equitativo dos direitos e obrigações individuais.

Impõe-se, assim, face a todos os fundamentos acima alinhados, decidir o prosseguimento dos autos em primeira instância, para avaliação ponderada sobre a procedência das providências requeridas, em audiência de tentativa de conciliação e produção de prova, e porque existem ainda factos controvertidos com relevância para o efeito, como sucede com a existência do arrendamento, o prazo de vigência do comodato e a seriedade da ameaça da interrupção do fornecimento de luz e de água ao local onde vivem os requerentes."

[MTS]

29/07/2025

Bibliografia (1217)


-- Garlati, L.Prove legali e intimo convincimento. Strade parallele o inevitabile intreccio? Note a margine di Taking the Evolution of the Standards of Proof for a Criminal Conviction Seriously di Jacopo Della Torre, Qf 9 (2025), 1-13

-- Roberts, P.Standards and Methods of Proof: An English Perspective on Della Torre’s Comparative Legal History, Qf 9 (2025), 1-15

-- Tuzet, G., The BARD Standard: From Historical Sources to New Challenges. A Comment on Della Torre, Qf 9 (2025), 1-10


Jurisprudência 2024 (219)


Divórcio sem consentimento; 
casa de morada de família; atribuição provisória


1. O sumário de STJ 26/11/2024 (4188/22.1T8VIS-B.C1.S1) é o seguinte:

I - Os critérios legais para decidir da atribuição provisória da casa de morada de família (art. 931.º, n.º 7, do CPC), bem comum dos cônjuges, até à sua venda ou partilha, nos casos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, convertido em mútuo consentimento, são os mesmos que regem a decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos conjugados dos arts. 1793.º e 1105.º, ambos do CC.

II - Estes critérios fundamentam-se na ponderação de um conjunto de fatores, como as necessidades dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes, entre os quais a jurisprudência inclui, para além dos rendimentos de cada um deles, o estado de saúde dos cônjuges, a idade, a possibilidade de arranjar trabalho, a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros e o comportamento pretérito daqueles no que diz respeito ao cumprimento dos seus deveres conjugais (ac. do STJ de 17-12-2019, proferido no proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1).

III - O conceito de necessidade assume-se como um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas de estabilidade e de segurança das vítimas de violência doméstica.

IV - In casu, a autora padece de depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante 50 anos, conforme consta da acusação do MP e de sentença de condenação transitada em julgado.

V - A cônjuge-mulher, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade.

VI - A unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade - a vida de uma família com história de violência doméstica.

VII - Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua o estatuto de cônjuge mais necessitado ao agressor, adjudicando-lhe o direito de residir na casa de morada de família até à venda ou partilha.

VIII - O direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"8. Regressemos aos factos do caso.

Em primeiro lugar, importa averiguar de forma comparativa a situação patrimonial de cada um dos cônjuges.

A autora aufere uma pensão de reforma de 329, 15 euros mensais (facto provado n.º 10) e o réu tem um rendimento superior a 400 euros a que acresce um valor não apurado de rendimento proveniente de uma atividade empresarial ligada à venda de lenha (facto provado n.º 11).

A autora padece de uma depressão recorrente (facto provado n.º 24).

Após a saída da casa de morada de família, para fugir a ameaças de morte (facto provado n.º 38), a recorrente foi viver para um apartamento de tipologia T1, bem comum dos cônjuges, que estes tinham arrendado à filha (factos provados n.º 5 e 6), enquanto o réu continuou a residir na casa de morada de família cuja atribuição está agora em disputa (facto provado n.º 3).

Abrangendo o conceito de necessidade, em primeiro lugar, os rendimentos líquidos mensais dos cônjuges, temos que, apesar de ambos os cônjuges terem rendimentos baixos, a autora/recorrente apresenta uma situação deficitária na medida em que apenas aufere uma pensão de 329,15 euros, enquanto o réu beneficia de rendimentos superiores a 400 euros, a que acresce um rendimento não apurado decorrente de uma atividade empresarial. São ambos pessoas idosas e a autora padece de uma depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante a constância de um casamento longo (celebrado em ... – facto provado n.º 1). Nos termos da matéria de facto provada, desde o início do casamento que o réu era agressivo com a mulher e que a maltratava física e psicologicamente, inclusive durante a gravidez, para além de lhe bater com um cinto e de a ameaçar várias vezes de morte, tendo sido uma dessas ameaças que a forçou a sair de casa (factos provados n.º 25 e 26).

Nesta factualidade, não procede o entendimento de que o marido se encontra numa situação de maior necessidade do que a autora no que à utilização da casa de morada de família diz respeito. Pelo contrário, mesmo no que se reporta estritamente à situação patrimonial, está provado que a autora aufere menor rendimento mensal (uma pensão de 329, 15 euros), uma vez que o marido ainda tem capacidade de ganho, pois exerce uma atividade empresarial. Por outro lado, o imóvel comum, arrendado à filha, e onde a mãe provisoriamente se encontra alojada (factos provados n.º 5, 6 e 9), não pode ser usado para dizer que a situação patrimonial da autora é melhor. Se o imóvel é bem comum do casal, tanto a mulher como o marido podem habitá-lo, podendo o aqui réu solicitar a denúncia desse contrato de arrendamento (que aliás a filha, entretanto, denunciou com efeitos a janeiro de 2023) para habitar o imóvel, sem depender da boa vontade da filha.

Assim sendo, a situação de necessidade da autora é superior à do réu, quer no plano económico, porque aufere de menores rendimentos, quer no plano psicológico, porque foi vítima de violência doméstica durante cerca de 50 anos e padece de uma depressão recorrente.

Resta analisar, para balancear as posições de ambos os cônjuges, o argumento pragmático em que se baseou a sentença e o acórdão recorrido, segundo o qual, residindo a autora com a filha num apartamento, bem comum do casal, a sua necessidade de habitação estava resolvida, precisando o marido de viver na casa de morada da família porque não se relacionava com a filha a quem o casal tinha arrendado o imóvel.

Ora, este argumento prova demais. Desde logo, porque, como vimos, a casa em que vive a autora é de ambos os cônjuges e qualquer um deles pode viver nela, podendo até o réu rescindir o contrato de arrendamento celebrado com a filha, caso necessite da casa para habitação própria.

Mas vejamos os factos com mais pormenor.

A autora vive numa casa, bem comum do casal, que está arrendada à filha (facto provado n.º 6) e que, portanto, ocupa por tolerância da filha, sem título para tal. Na verdade, a filha é que tem, legalmente, o gozo exclusivo do imóvel. Por outro lado, este imóvel, segundo a factualidade provada, não tem condições para que nele vivam duas pessoas, tendo a filha passado a dormir num colchão na sala para que a mãe possa ocupar o quarto (facto provado n.º 9). Se bem que o interesse da filha, por ser maior de idade e independente financeiramente, não tenha de ser ponderado nesta decisão, compreende-se que a autora não queira colocar a filha nesta situação e que queira viver numa casa mais espaçosa e com melhores condições.

A autora, devido à circunstância de ter menos rendimentos e menor possibilidade de os obter, pois vive de uma pensão de reforma situada no mínimo da escala, enquanto o réu exerce uma atividade empresarial, está mais necessitada da casa de morada de família, não lhe sendo exigível, após ter sido vítima de violência doméstica durante 50 anos, que viva em condições precárias na casa arrendada a uma filha, por mera tolerância desta. Aliás, tendo a filha procedido à declaração de denúncia do contrato de arrendamento com efeitos a janeiro de 2023 (facto provado n.º 12), nada impedirá o réu de utilizar esta casa para sua habitação, não dependendo essa possibilidade do relacionamento com a filha, como entendeu a sentença. Por outras palavras, se essa casa é bem comum do casal, tanto entra na determinação do grau de necessidade da mulher, como do marido. A proximidade maior que a mulher tem em relação a este bem resulta de mera tolerância da filha, arrendatária do imóvel e a única que tem o poder de o fruir, por força desse contrato, entretanto já denunciado pela prórpia arrendatária.

Assim, a cônjuge-mulher, autora na presente ação, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito, por ser mais carenciada e ter uma saúde psíquica frágil (padece de depressão recorrente), de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade enquanto cônjuge mais fraco que carece de proteção.

O conceito de necessidade é assim um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas resultantes de a autora padecer de depressão recorrente e de ter sido durante 50 anos vítima de violência doméstica.

No presente caso, a necessidade da autora, no plano material, é ligeiramente superior em relação à necessidade do marido, e, ainda que assim não se avaliassem os factos, a circunstância de ser vítima de violência doméstica – tipo legal de crime integrado no conceito de criminalidade violenta e que as Nações Unidas consideram ser equivalente à tortura ( cfr. a Declaração de 24 de janeiro de 2008 do Comité das Nações Unidas contra a tortura a propósito o âmbito das obrigações e responsabilidades do Estado no domínio do artigo 2.º da Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes) – cria só por si uma situação de maior necessidade. Com efeito, tem de se considerar, na operação subsunção dos factos na norma, não só as necessidades materiais, mas também as necessidades psíquicas de estabilidade, conforto e segurança, que sempre serão mais bem garantidas pela ocupação da casa de morada de família.

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 11 de maio de 2011, conhecida por Convenção de Istambul, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, constituindo um marco na consciencialização de que a violência de género e a violência doméstica constituem uma grave e intolerável violação dos direitos humanos fundamentais e do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Esta Convenção, que integra o direito interno por força do artigo 8.º, n.º 2, da CRP, impõe aos Estados o dever positivo de proteção das vítimas de violência doméstica e a garantia dos seus direitos humanos fundamentais, não só em matéria criminal, mas também em matéria cível (direitos familiares pessoais e patrimoniais), devendo as normas do Código Civil ser objeto de uma interpretação conforme aos objetivos desta Convenção. A mesma orientação tinha já sido adotada pela Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que consagra medidas de proteção e assistência às vítimas de violência doméstica, adotando uma perspetiva interdisciplinar que cruza vários ramos do direito, como o direito à saúde, à segurança social, à habitação e à estabilidade de emprego.

Tem-se reconhecido que o sistema de proteção que obriga as mulheres vítimas de violência doméstica a sair de casa assume uma repercussão negativa na recuperação psicológica das vítimas em relação aos traumas vividos, bem como cria ruturas no seu projeto de vida. Para fazer face a este resultado, as ordens jurídicas europeias têm evoluído progressivamente de um sistema centrado na retirada da vítima da sua residência para o afastamento do agressor da casa de morada de família, permitindo a proteção da estabilidade da vida das vítimas num momento em que ela está particularmente posta em causa: a denúncia do crime e o pedido de divórcio. Em consequência, a Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, veio alargar a proteção das vítimas de violência doméstica, ampliando a medida de coação prevista no artigo 31.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, de forma a incluir não só a obrigação de o arguido «Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família», mas também a possibilidade de impor ao arguido da obrigação de a abandonar”», estipulando o n.º 2 do preceito que o ali disposto mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.

Embora não estejamos perante um processo-crime, a unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que, pelo contrário, existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade – a vida de uma família com história de violência doméstica. As normas jurídicas não existem isoladamente umas das outras e o processo de aplicação do direito deve preservar a coerência e a unidade da ordem jurídica. Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua esse estatuto de necessidade ao agressor e retire a proteção devida à vítima, que, no caso vertente, até aufere rendimentos inferiores aos do marido.

O Direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica."

[MTS]


28/07/2025

Jurisprudência 2024 (218)


Processos de jurisdição voluntária;
recurso de revista; critérios normativos


1. O sumário de STJ 27/11/2024 (1614/04.5TBESP-E.P1.S1) é o seguinte:

I - Nos processos de jurisdição voluntária, justifica-se a supressão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça estabelecida no art.º 988.º n.º2 do CPC, face ao facto de as decisões se nortearem por citérios de conveniência e oportunidade, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita.

II - Porém, quando a impugnação da decisão tem em vista a interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baseou tal decisão, é admissível o recurso de revista.

III - Assim, haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação.

IV - Sempre que os factos demonstrem a falta de capacidade dos progenitores para assumir plenamente as suas responsabilidades parentais, é de concluir que não existem ou que estão seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação em conformidade com o que dispõe o art.º 1978.º do Código Civil.

V - Para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos “vínculos afectivos próprios da filiação” para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre os progenitores e a criança; é necessário ainda que essa ligação afectiva se concretize em actos que demonstrem aptidão dos progenitores para exercerem plenamente as suas responsabilidades parentais.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

1 - O MINISTÉRIO PÚBLICO invocou a inadmissibilidade do recurso com fundamento no disposto no art.º 988.º, nº 2 do CPC, sendo certo que, no seu entender, a decisão recorrida, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, assentou em critérios de conveniência e de oportunidade.

Quid juris?

O presente recurso de revista vem interposto no âmbito de um processo de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo que efectivamente se integra na categoria dos processos de jurisdição voluntária, sujeitos à disciplina prevista nos artigos 986.º a 988.º do CPC.1

Dispõe o n.º 2 do art.º 988.º que “Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Na verdade, nos processos de jurisdição voluntária, “o predomínio da oficiosidade do juiz sobre a atividade dispositiva das partes, norteado por critérios de conveniência e oportunidade em função das especificidades de cada caso, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita, justifica a supressão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça estabelecida no artigo 988.º, n.º 2, do CPC, vocacionado como está, essencialmente, para a sindicância da violação da lei substantiva ou processual, nos termos do artigo 674.º do CPC.”, como é dito no acórdão deste STJ de 30-05-2019 [Processo 5189/17.7T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt]

No entanto, “na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão." [Processo 5189/17.7T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt]

Assim, conclui o citado acórdão que aqui subscrevemos “haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, [---] e não com base na mera qualificação abstrata de “resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade”.

Ora, no presente caso, analisando as conclusões formuladas no presente recurso, verifica-se que a Recorrente aponta ao acórdão recorrido erros de interpretação e de aplicação de diversas normas legais constantes dos artigos 3º, 4º, al. a), e) e h) ,34º, 35º, nº 1 al. g), 35º, 38-Aº, 58.º, n.º1 a), d), i) todos da LPCJP, o artº1978º, nº1, do Código Civil, o art.º 36º nº 6º, 67º e 69º da CRP, bem como o art.º 3º nº 1 e o artº 9.º § 1 da Convenção sobre os Direitos das Crianças, da Organização das Nações Unidas de 20/11/89, publicada em D.R., Is., de 12/9/90.

Pode, assim, concluir-se que, neste caso, o recurso não tem como objectivo impugnar juízos de oportunidade ou de conveniência, mas sim questionar a interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se balizou a decisão recorrida.

Nesta conformidade, o recurso é admissível, nos termos do disposto no art.º 674.º n.º 1 a) e cabe na previsão do art.º 671.º n.º 1. [Assim entendido igualmente no Acórdão de 16-03-2017, proferido nesta secção, no âmbito do Processo n.º1203/12.0TMPRT-B.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt]

[MTS]


26/07/2025

Bibliografia (1216)


-- Beuth, F., Das Kollektiv und sein Repräsentant / Zum rechtlichen Verhältnis von Verband und Verbraucher:innen bei der Verbandsabhilfeklage (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

-- Joecker, G., Richterliche Folgenberücksichtigung / Eine Untersuchung der praktischen Entscheidungsfindung und -begründung unter Berücksichtigung von Folgen im Zivilprozess (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

-- Stachow, J. J., Die vertragliche Absicherung des Schiedsverfahrens (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

25/07/2025

Bibliografia (1215)


-- Wilfinger, A., Grundfragen der Feststellungsklage (Manz: Wien 2025)


Jurisprudência 2024 (217)


Acção popular;
objecto; "interesses individuais homogéneos"


1. O sumário de RE 22/11/2024 (1443/24.0T8PTM.E1) é o seguinte:

Sendo de admitir, face à factualidade alegada na petição, que os interesses que a apelante visa proteger, através do pedido que formulou, sejam comuns aos elementos que integram a indicada comunidade, não poderá considerar-se, nesta fase liminar, que a pretensão deduzida se mostre manifestamente improcedente por não estar em causa a defesa de interesses tuteláveis através de uma ação popular, conforme considerou a 1.ª instância, conclusão que se afigura prematura.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.2. Apreciação do objeto do recurso

Encontra-se impugnado na apelação o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial, com fundamento em manifesta improcedência da pretensão deduzida, por se ter entendido que a tutela dos interesses invocados pela autora não se mostra admissível no âmbito de uma ação popular.

Consta do despacho recorrido, além do mais, o seguinte: 

[…] Não está em causa:

- A consagração constitucional e legal do direito de ação popular – artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 1.º da Lei que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, aprovada pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;

- O exercício desse direito por associações, mas também por pessoas individuais;

- Que a finalidade é a de tutelar direitos relativos à saúde pública, dos consumidores, qualidade de vida, preservação do ambiente e do património cultural, interesses que não são apropriáveis por cada um individualmente.

Uma ação popular tem por objeto interesses difusos.

No caso, a autora pretende que venham a ser declaradas nulas as cláusulas de um contrato de cessão de exploração comercial relativos a espaços na (…), com o reconhecimento do direito dos AA. fecharem os seus estabelecimentos e condenação da ré no pagamento de indemnização.

Ainda que possam estar em causa cláusulas contratuais gerais suscetíveis de ser objeto de ação inibitória (artigo 25.º da LCCG, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro), não se discute aqui, a avaliar pela alegação constante da petição inicial, nem interesses difusos em sentido estrito – situações materiais insuscetíveis de uma apropriação individual, com titularidade indivisível e dimensão irredutivelmente supra-individual, nem interesses individuais homogéneos – interesses passíveis de individualização autónoma, mas que surgem em situações de massa e em termos de perfeita identidade de natureza, nem interesses coletivos – interesses de categoriais ou interesses de classe, protegidos por uma associação de categoria ou classe, sem cuja intervenção tais interesses não podem ser defendidos na sua dimensão grupal.

O facto de poderem existir interesses individuais que têm origem numa mesma e única alegada conduta ilícita e que, por essa via, se possa identificar um grupo de pessoas, não basta para que tais interesses possam ser tutelados através da ação popular. Para tanto, é indispensável que, considerados no seu conjunto, esses interesses assumam uma importância de ordem pública que exceda a mera soma ou agregação de um conjunto de interesses individuais pertencentes a uma mesma classe e que, ao mesmo tempo, sejam partilhados de forma homogénea e uniforme pelos membros da classe representada – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Relator Cons. Nuno Ataíde das Neves) de 14 de março de 2024 (…)

Ora, estamos perante situação que poderá afetar um número determinado de pessoas – aquelas que mantenham relação com a ré “(…)” e que com a mesma tenham celebrado contrato como o que a autora refere ter celebrado –, mas neste caso podem vir aos autos demandar a ré.

Assim, em face do exposto, indefiro liminarmente a petição. [...]

Discordando deste entendimento, a recorrente defende, em síntese, que lhe assiste, na qualidade de representante de classe, o direito de intentar a presente ação popular, para tutela de interesses homogéneos que afetam os autores populares, aderentes, tal como a representante de classe, de contrato com cláusulas previamente elaboradas pela ré; sustenta a apelante que, estando em causa um contrato de adesão que contém cláusulas abusivas pré-definidas pela ré e visando a ação a declaração de nulidade dessas cláusulas, os interesses que pretende defender são comuns a todos os aderentes do contrato, independentemente da eventual existência de particularidades relativas a cada um, encontrando-se preenchidos os requisitos para a admissão da ação popular.

Nas contra-alegações que apresentou, a ré, por seu turno, sustenta que a ação visa tutelar apenas o interesse pessoal, individual e particular da autora, e não interesses individuais homogéneos comuns aos demais lojistas do centro comercial, defendendo a inadmissibilidade da tutela dos interesses da autora através da presente ação popular.

Cumpre apreciar.

O direito de ação popular encontra-se reconhecido na Constituição da República Portuguesa, entre os direitos liberdades e garantias de participação política, no n.º 3 do artigo 52.º, nos termos seguintes: 3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.

Regulando, além do mais, o direito de ação popular, a Lei n.º 83/95, de 31-08, define, como estatuí o n.º 1 do seu artigo 1.º, os casos e termos em que é conferido e pode ser exercido o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição. O n.º 2 do citado artigo 1.º, por seu turno, elenca, a título exemplificativo, interesses protegidos pela lei em causa, dispondo que: Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

O artigo 2.º da citada lei estabelece, além do mais, a titularidade do direito de ação popular, dispondo o seguinte: 1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda. 2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição.

Sob a epígrafe Regime especial de representação processual, o artigo 14.º daquela lei dispõe o seguinte: Nos processos de ação popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei. O artigo 15.º, mencionado naquele preceito, prevê e regula o exercício do direito de exclusão por parte de titulares dos interesses em causa na ação popular.

Definindo regras de legitimidade das partes nas ações para a tutela de interesses difusos, o artigo 31.º do Código de Processo Civil dispõe o seguinte: Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei. [...]

Face ao objeto do recurso, impõe-se apreciar se a tutela dos interesses invocados pela autora se mostra admissível no âmbito de uma ação popular e, caso se verifique que é inadmissível, se tal configura fundamento de indeferimento liminar da petição inicial, conforme considerou a 1.ª instância.

A Lei n.º 83/95, de 31-08, no âmbito do exercício da ação popular, prevê, no artigo 13.º, o seguinte regime especial de indeferimento da petição inicial: A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.

A aferição da inadmissibilidade da tutela, no âmbito de uma ação popular, dos interesses invocados pela autora e da consequente manifesta improbabilidade da procedência do pedido, nos termos imputados pela 1.ª instância à petição inicial, impõe a análise da fundamentação em que se baseia a pretensão deduzida pela autora na presente ação, à luz da admissibilidade do exercício do direito de ação popular. [...]

A jurisprudência tem contribuído para a especificação do que são os interesses difusos, para efeitos do exercício do direito de ação popular, conforme amplamente demonstrado nas alegações e nas contra-alegações apresentadas, o que nesta sede se mostra dispensável repetir, indicando-se apenas, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2016 (relator: Oliveira Vasconcelos), proferido no processo n.º 7617/15.7T8PRT.S1 e publicado em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte: I - A ação popular tem como objecto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos), os quais se caraterizam por possuírem uma dimensão individual e supra individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva. II - Os interesses individuais homogéneos são definíveis como situações jurídicas genericamente consideradas, correspondendo aos interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso ou de um interesse colectivo. III - A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela acção se almeje a tutela de um interesse colectivo, releva a proteção de situações individuais dos respectivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma. IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade. V - A legitimidade popular deve ser aferida em função do poder de representação dos titulares do interesse por parte do autor popular e do seu interesse na demanda, sendo que os representados devem todos ter sido atingidos pela violação do mesmo interesse difuso ou estarem em risco de o serem.

Não vem posto em causa na apelação o entendimento, consignado pela 1.ª instância na decisão recorrida e que se encontra estabilizado, de que a ação popular pode ter por objeto, não apenas a tutela de interesses difusos em sentido estrito e de interesses coletivos, mas também de interesses individuais homogéneos, nos termos supra especificados, o que se mostra dispensável reapreciar.

A 1.ª instância considerou que não decorre da petição inicial que a autora pretenda a tutela de interesses difusos em sentido estrito ou de interesses coletivos, nem de interesses individuais homogéneos, o que vem posto em causa na apelação, defendendo a recorrente que a ação visa a tutela de interesses individuais homogéneos de que são titulares os autores populares, na qualidade de aderentes, tal como a representante de classe, de determinado contrato previamente elaborado pela ré, questão que cumpre reapreciar.

Na petição inicial, a autora alega que é uma das muitas pessoas que aderiram e subscreveram um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial na (…), concessionada pela ré, visando com a presente ação obter a declaração de nulidade de cláusulas contratuais gerais constantes desse contrato e de regulamento que vincula os subscritores do contrato, bem como indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da existência de tais cláusulas; sustenta que o contrato foi pré-elaborado pela ré e pela mesma imposto a todos os que quiseram instalar uma loja para a sua atividade naquela marina, por via de uma cessão do direito de utilização, tendo a ré igualmente estabelecido o respetivo regulamento, sendo que as cláusulas que elenca, constantes do contrato e do regulamento, são proibidas, pelos motivos que expõe; acrescenta que os autores populares, se tivessem tido tal possibilidade, teriam recusado a inclusão das indicadas cláusulas no contrato que subscreveram, tendo sofrido danos em resultado das mesmas.

Analisada a factualidade alegada pela autora, verifica-se que é invocado um interesse que se afirma partilhado por um conjunto de pessoas que aderiram e subscreveram um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial na (…), com vista à instalação de uma loja para desenvolveram a respetiva atividade naquela marina; sustenta a autora que o contrato em causa, imposto pela ré a todos os que quiseram instalar uma loja nessa marina, bem como determinado regulamento pela mesma elaborado, contêm cláusulas nulas, pelos motivos que expõe, visando a presente ação obter, a título principal, a declaração de nulidade de tais cláusulas, que afirma suscetíveis de causarem danos aos autores populares.

Face à factualidade alegada pela autora, é de admitir que possa estar em causa a defesa de interesses materiais comuns aos membros de determinada comunidade, constituída pelas pessoas que celebraram com a ré um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial na (…), com vista à exploração de uma loja no local. A alegação constante da petição inicial não permite, por si só e a título liminar, afastar a invocada tutela de interesses individuais homogéneos, comuns aos membros da indicada comunidade, cuja verificação permitirá à apelante representá-los em juízo.

Defende a ré, nas contra-alegações apresentadas, que estão em causa diferentes relações jurídicas, as quais se reportam a situações de facto diversas, não visando a ação a tutela de interesses individuais homogéneos comuns aos demais lojistas do centro comercial, mas apenas do interesse pessoal, individual e particular da autora, o que não se mostra admissível através de uma ação popular.

No entanto, tal não decorre da petição inicial, que não permite aferir da eventual diversidade de interesses entre a autora e os demais autores populares, que pretensamente representa. A factualidade alegada na petição inicial não permite estabelecer diferenciação entre a situação da autora, decorrente da relação jurídica estabelecida com a ré, e a situação dos demais lojistas da marina, dada a invocação de que todos aderiram e subscreveram contrato com o mesmo teor, encontrando-se vinculados ao mesmo regulamento, os quais contêm as cláusulas em apreciação, cuja nulidade pretende seja declarada.

Sendo de admitir, face à factualidade alegada na petição, que os interesses que a apelante visa proteger, através do pedido que formulou, sejam comuns aos elementos que integram a indicada comunidade, não poderá considerar-se, nesta fase liminar, que a pretensão deduzida se mostre manifestamente improcedente por não estar em causa a defesa de interesses tuteláveis através de uma ação popular, conforme considerou a 1.ª instância, conclusão que se afigura prematura.

Porém, tal constatação não impede que venha a considerar-se, em fase posterior da tramitação dos autos, afastada a invocada existência de interesses individuais homogéneos, comuns aos demais lojistas do centro comercial, a tutelar através da pretensão deduzida pela apelante na ação.

Reportando-se ao indeferimento liminar de ação popular, considerou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10-04-2024 (relator: Jorge Arcanjo), proferido no processo n.º 8086/23.3T8LSB.L1.S1 e publicado em www.dgsi.pt, o seguinte: O indeferimento liminar da petição inicial de uma acção popular cível, ao abrigo do artigo 13.º da Lei n.º 38/95, de 31/8, com fundamento em que é “manifestamente improvável a procedência do pedido”, significa que [a] improcedência da pretensão do autor é manifestamente inviável, ou seja, perante a alegação dos factos e razões de direito expostas na petição e a uma averiguação sumária, incide, desde logo, uma pronúncia valorativa antecipatória sobre o mérito, quanto a saber se a pretensão formulada se apresenta viável, com probabilidade de êxito, ou se está irremediavelmente condenada ao insucesso.

No caso presente, não podendo concluir-se, pelos motivos expostos, que a pretensão formulada se apresente manifestamente inviável, designadamente pelos fundamentos constantes do despacho recorrido, impõe-se revogar tal decisão e determinar o prosseguimento da ação."

[MTS]

24/07/2025

Legislação (244)


EMJ; ETAF; LOSJ; EMP



Altera os Estatutos dos Magistrados Judiciais, do Ministério Público e dos Tribunais Administrativos e Fiscais, bem como a Lei da Organização do Sistema Judiciário.

 

Alteração ao CPC (14)


Distribuição de processos

-- L 56/2025, de 24/7

Altera as disposições do Código de Processo Civil relativas à distribuição de processos.

 

Jurisprudência constitucional (242)


Decisão penal absolutória;
eficácia em processo civil

O sumário de TC 25/6/2025 (545/2025) é o seguinte:

Não julga inconstitucional a norma contida no artigo 624.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, interpretado no sentido de permitir a prova dos factos contrários aos que, na sentença penal absolutória transitada em julgado, determinaram a absolvição do arguido que subsequentemente é demandado em processo civil.

 

Jurisprudência 2024 (216)


Rol de testemunhas; alteração;
prazo regressivo


I. O sumário de RG 22/11/2024 (776/21.1T8BGC-A.G1) é o seguinte:

1. O rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias;

2. Essa antecedência de 20 dias refere-se à realização efetiva da audiência final e não à sua simples abertura, aplicando-se o preceito mesmo que haja adiamento ou continuação da audiência noutra sessão.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"C) Trata-se, nesta apelação, de saber se se deverá ser admitida a inquirição das testemunhas EE e FF.

Recorde-se que a ré EMP01... veio em 16/04/2024, requerer o aditamento de uma testemunha, que identifica, a apresentar para a audiência de julgamento que teria lugar em 15/05/2024, na medida em que na audiência de julgamento realizada em 21/03/2024 apenas foi possível proceder à tentativa de conciliação, com subsequente suspensão da instância e marcação de nova data, no intuito de as partes tentarem a autocomposição do litígio, o que não foi possível.

No despacho recorrido foi considerado que o limite temporal para a alteração do requerimento probatório, nos termos do preceituado no artigo 598º nº 2, do NCPC se deve reportar à data designada para a audiência final ou para a primeira sessão, independentemente de qualquer adiamento, para mais quando o adiamento seja causado pela própria parte que agora se pretende do mesmo aproveitar, pelo que indeferiu o aditamento requerido.

Vejamos.

Estabelece o artigo 598º nº 2 NCPC que “o rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias.”

A este propósito, debatem-se duas correntes jurisprudenciais e doutrinais, considerando uma que o prazo referenciado no nº 2 do artigo 598º NCPC deverá  reportar-se à data designada pelo juiz para a audiência final ou para a primeira sessão, independentemente de qualquer adiamento, posição sustentada por Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª Edição, página 327, nota 750 e pelo acórdão da Relação do Porto de 12/05/2015, Processo nº 7724/10....

Existe, porém, outra posição que entende que a antecedência de 20 dias se refere à realização efetiva da audiência final e não à sua simples abertura, aplicando-se o preceito mesmo que haja adiamento ou continuação da audiência noutra sessão, como é o caso de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 3ª Edição, páginas 675-676 e Acórdãos da Relação do Porto, de 21/02/2019, Processo nº 464/17.3T8ESP-A.P1, da Relação de Guimarães de 17/12/2015, Processo nº 3070/09.2TJVNF-B.G1, de 18/06/2020, Processo 934/19.9T8VCT.G1, de 09/02/2023, Processo nº 643/21.9T8EPS.G1-A e da Relação de Coimbra de 08/09/2015, Processo nº 2035/09.9TBPMS-A.C1 (cfr. a este propósito António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, no Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 2ª Edição, a páginas 730).

Conforme se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/02/2023, no Processo 643/21.9T8EPS.G1-A “a questão de saber se o limite temporal previsto no nº 2 do artigo 598º do CPC, para o aditamento ou alteração do rol de testemunhas, deve reportar-se à data designada pelo juiz para a audiência final ou para a primeira sessão, independentemente de qualquer adiamento, ou se os 20 dias a que se reporta o citado preceito devem contar-se com referência a qualquer uma das sessões em que a audiência final se pode repartir, ou ainda se tal prazo deve contar-se tomando como referência a sessão da audiência final que dá efetivamente início à discussão da causa e não a simples abertura desta, tem sido objeto de controvérsia.

Em defesa deste último entendimento, refere-se no Ac. do TRL de 15-11-2012, antes referenciado: o «alargamento do prazo para indicação de novos meios de prova, supostamente até vinte dias antes da última sessão da audiência de julgamento, seria um fator de perturbação do processo, numa fase muito sensível como se julga ser a do julgamento, designadamente no que respeita ao respetivo agendamento, numa única ou em várias sessões, separadas, ou não por mais de vinte dias, ou ainda ao agendamento da continuação não prevista de uma audiência que, com mais ou menos fundamento, não seja concluída na data prevista. Poderiam ser suscitadas muitas questões, tendo por referência o decurso do referido prazo de vinte dias, como condição da admissão de um novo meio de prova», pelo que «a possibilidade de o rol de testemunhas ser aditado até vinte dias antes de qualquer sessão da audiência de julgamento seria uma causa de instabilidade e de perturbação processual, que o interesse tutelado não justifica».

Perfilhando idêntico entendimento, a propósito da interpretação do disposto no artigo 598.º, n.º 2 do CPC, refere-se no citado Ac. do TRC de 12-07-2022: «[o] aludido preceito legal reproduz o anterior artigo 512.º-A do CPC de 1961, na versão do DL 180/96, de 25-09, decorrendo desta alteração um regime de prova mais permissivo que o regime de prova anterior que, conforme refere LOPES DO REGO, assentava numa “tendencial imutabilidade dos requerimentos probatórios, mesmo nos casos em que decorriam largos meses ou anos entre a indicação das testemunhas e a realização da audiência, considerava-se como excessivamente restritivo, “amarrando”, sem justificação plausível, a parte a provas indicadas com enorme antecedência”.

No entanto, este regime de prova mais permissivo exige, ainda assim, de molde a evitar constrangimentos e atrasos na produção de prova e realização do julgamento, uma antecedência de 20 dias antes da data em que se realize a audiência final. Assim, o que releva para a contagem deste prazo é a data em que efetivamente se realize ou inicie a audiência final. Uma vez iniciada, é irrelevante para o efeito que esta se prologue por várias sessões ainda que entre as mesmas decorram mais de 20 dias.

Por outro lado, a jurisprudência e doutrina maioritárias têm entendido que este prazo deve ser contado tendo como referência a realização efetiva da audiência final e não a sua simples abertura, seguida de adiamento ou suspensão».

Atento o exposto entendemos que o prazo de aditamento ou alteração do rol de testemunhas do artigo 598º nº 2 NCPC, onde se refere que o rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, se refere à realização efetiva da audiência e, em caso de adiamento, será tempestivo tal aditamento se ocorrer até vinte dias antes da sua efetiva realização na nova data designada para o início do julgamento.
Com efeito, se atentarmos no seu significado, realizar significa tornar ou tornar-se real ou concreto, concretizar-se, materializar-se, pelo que se a audiência se inicia e conclui, esgotando o seu objeto, no mesmo dia, como é normal, ela conclui-se, termina nesse momento.

Pelo contrário, se se inicia, num determinado momento mas não se conclui na mesma data e tem de prosseguir em data posterior, ela perdura ou continua, mantendo a sua qualidade de audiência em qualquer momento, até que se conclua, esgotando o seu objeto, pelo que não poderá deixar de se entender que em qualquer uma das datas em que ocorreu a audiência, a mesma se realizou (hoc sensu).

Uma segunda questão tem a ver com o facto de a ré seguradora ter junto um documento aos autos em 12.04.2024, referente às condições particulares associadas à apólice nº ...77, cuja genuinidade veio a ser impugnada pela autora no seu requerimento de 15.04.2024, sendo neste contexto que a ré veio requerer a inquirição das testemunhas EE e FF, invocando para o efeito o facto de a sessão de julgamento se encontrar agendada para dia 15.05.2024 e, ainda, o disposto no artigo 445º do NCPC.

Estabelece este artigo que notificada a impugnação (da genuinidade do documento), a parte que produziu o documento pode requerer a produção de prova destinada a convencer da sua genuinidade, no prazo de 10 dias, limitado, porém, em 1ª instância, ao termo das alegações orais.

Ora seguindo a cronologia referida temos que a ré juntou o documento aos autos em  12/04/2024, que foi impugnado pela autora em 15/04/2024, tendo a ré requerido, em 16/04/2024, nos termos do artigo 445º NCPC, a inquirição de duas testemunhas, encontrando-se a data da audiência designada para o dia 15/05/2024, quase um mês depois, pelo que não existia fundamento para indeferimento do requerimento de 16/04/2024, que assim, deverá ser deferido.

Face ao exposto, resulta que a apelação terá de ser julgada procedente, revogando-se o douto despacho recorrido e, em consequência, por ser tempestivo, admitir-se o aditamento ao rol de testemunhas para a audiência de julgamento, bem como admitir-se a produção de prova, com inquirição das testemunhas, nos termos do disposto no artigo 445º nº 2 NCPC."

[MTS]