"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/10/2025

A nova redacção do n.º 2 do art. 137.º CPC: mais incerteza que clareza


1. O art. 2.º L 56/2025, de 24/7, deu uma nova redacção ao art. 137.º, n.º 2, CPC, acrescentando uma referência aos "atos de distribuição". A nova redacção do preceito passou a ser a seguinte:

"2 - Excetuam-se do disposto no número anterior os atos de distribuição, as citações e notificações, os registos de penhora e os atos que se destinem a evitar dano irreparável."

Por sua vez, o n.º 1 do art. 137.º CPC (que permaneceu inalterado) estabelece o seguinte:

"1 - Sem prejuízo de atos realizados de forma automática, não se praticam atos processuais nos dias em que os tribunais estiverem encerrados, nem durante o período de férias judiciais".

Destas redacções é possível concluir o seguinte:

-- O n.º 1 do art. 137.º CPC enuncia uma excepção (para os actos realizados de forma automática) e uma regra (para os outros actos);

-- O n.º 2 do art. 137.º CPC contém uma regra excepcional ao disposto no n.º 1 do mesmo preceito.

2. Dado que a distribuição é um acto que é realizado de forma automática (art. 204.º, n.º 1, CPC) e, por isso, já está incluída na excepção constante do n.º 1 do art. 137.º CPC, parece que a inclusão da distribuição na regra excepcional que consta do n.º 2 do art. 137.º CPC se destina a criar uma "excepção à excepção". Procurando explicar:

-- O n.º 1 do art. 137.º CPC excepciona dos actos que não se praticam quando os tribunais estão encerrados ou durante o período de férias judiciais os "atos realizados de forma automática";

-- A distribuição é um acto que se realiza de forma automática (art. 204.º, n.º 1, CPC);

-- O n.º 2 do art. 137.º CPC excepciona do "disposto no artigo anterior os actos de distribuição";

-- Logo, o n.º 2 do art. 137.º CPC excepciona os actos de distribuição da excepção que consta do n.º 1 do mesmo preceito.

3. Parece evidente que este resultado não é aceitável, dado que não tem nenhum sentido que a distribuição não possa ser realizada quando os tribunais estiverem encerrados ou, principalmente, durante o período de férias judiciais.

Em boa verdade, não era necessário acrescentar os actos de distribuição ao n.º 2 do art. 137.º CPC para se concluir que a distribuição pode ser realizada quando os tribunais se encontrem encerrados ou durante as férias judiciais, dado que isso já resulta, com toda clareza, da excepção que consta do n.º 1 do art. 137.º CPC. Aliás, cabe salientar que as outras excepções que constam do n.º 2 do art. 137.º CPC nada têm a ver com actos realizados de forma automática, pelo que a referência aos actos de distribuição nem sequer se enquadra na lógica do preceito.

Poder-se-ia argumentar que a desnecessidade do acrescento respeitante aos actos de distribuição no n.º 2 do art. 137.º CPC origina apenas uma redundância inútil. A verdade é que não é assim, porque, como o n.º 2 do art. 137.º CPC contém uma norma excepcional ao disposto no n.º 1 do mesmo preceito e este mesmo n.º 1 já contém uma excepção para os actos praticados de forma automática, a inclusão dos actos de distribuição naquele preceito só pode ter o sentido de excluir esses actos da excepção que consta deste n.º 1. Quer dizer: os actos que são praticados de forma automática estão excepcionados no n.º 1 do art. 137.º CPC, pelo que -- como acima se referiu -- o sentido do novo o n.º 2 do mesmo preceito só pode ser o de excepcionar os actos de distribuição da excepção que consta daquele n.º 1.

Como é claro, isto não faz qualquer sentido, pelo que há que aplicar o n.º 2 do art. 137.º CPC como se a referência aos actos de distribuição dele não constasse. Isto possibilita que a esses actos se aplique, não a excepção à excepção estatuída no n.º 2 do art. 137.º CPC, mas apenas a excepção que consta do n.º 1 do mesmo preceito e que, por isso, a distribuição possa ser realizada quer quando os tribunais se encontrem encerrados, quer durante o período de férias. 

4. Em conclusão: a nova redacção do art. 137.º, n.º 2, CPC cria, quanto à realização da distribuição quando os tribunais estão encerrados ou durante as férias judiciais, mais incerteza que clareza.

MTS 


Nota de actualização

Contra o referido no post pode objectar-se que, como se refere no art. 204.º, n.º 1, CPC (red. L 56/2025, de 24/7), a distribuição não é automática, mas (apenas) electrónica.

Isto pressupõe que se distinga entre os actos que são realizados de forma electrónica e automática e os actos que são realizados de forma electrónica mas não automática. Segundo se pode imaginar, os actos que são realizados de forma automática são apenas aqueles que são gerados automaticamente por um sistema informático (como, por exemplo, o Citius).

Não será esse o caso da distribuição, porque ela tem de ser "carregada" pelo oficial de justiça.

Se as coisas são realmente assim, então há que ter presente que o legislador opera (com ou sem razão, isso é outra questão) com uma distinção entre actos electrónicos automáticos e actos electrónicos não automáticos.

MTS

Jurisprudência 2024 (243)


Segunda perícia;
direitos da personalidade; colisão de direitos


1. O sumário de RG 14/11/2024 (5501/19.4T8VNF-C.G1) é o seguinte:

I – No art. 71.º, n.º1 do Código Civil prevê-se apenas um direito próprio dos familiares do falecido e não um direito de personalidade deste, uma vez que a personalidade cessa com a morte, nos termos do art. 68.º do Código Civil.

II – A exumação de um cadáver e a recolha de material biológico para realização de testes de ADN, que seja determinada pela autoridade judicial competente por a considerar necessária à descoberta da verdade material não está em conflito com o disposto no art. 71º, nº 1 do Código Civil, uma vez que neste preceito se visa evitar a prática de atos ilícitos.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

Dispõe o art. 487.º do Código Civil que:

“1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.
3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.”

Conforme ressalta do normativo supra transcrito, a segunda perícia pode ser realizada a pedido das partes ou de uma das partes e pode ainda ter lugar por determinação oficiosa do Tribunal.

Neste último caso basta que o Tribunal julgue necessária a realização de outra perícia para o apuramento da verdade, ou seja, afigura-se-nos ser insindicável este juízo do Tribunal sobre a necessidade ou mesmo imprescindibilidade da realização de uma nova perícia.

Distintamente, já podem ser objeto de impugnação os concretos contornos da realização da segunda perícia, pois que aqui já se coloca uma questão de legalidade na sua execução.

Ora, os recorrentes não colocam em causa o juízo do tribunal sobre a necessidade de realização de uma segunda por julgador entender que a primeira perícia não é totalmente esclarecedora, o que questionam são os moldes em que a mesma foi determinada, ou seja, com a exumação do cadáver do tio para recolha de vestígios biológicos.

A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a inutilidade da realização da perícia, dizendo que a perícia não deve ser realizada por violar o plasmado no art. 130.º do Código de Processo Civil que proíbe a prática de atos inúteis.

Louvam-se numa comunicação de 09/03/2021 (e não 2022 como por lapso referem) do Serviço de Genética e Biologia Forenses Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., mas que efetivamente contraria a inutilidade que os recorrentes invocam, pois que o que diz em tal comunicação  é que do ponto de vista técnico, a análise de material exumado pode ser difícil, pelo que não pode garantir a obtenção de resultados que cumpram os critérios de qualidade que têm definidos, de modo a permitir identificar o respetivo perfil genético e disponibilizar toda a informação genética necessária, com segurança. A especificidade de cada amostra, as condições a que esteve sujeita e o tempo de inumação são fatores determinantes na identificação de perfis genéticos, a partir de material exumado.

Ora, tal comunicação alerta para vicissitudes próprias de uma exumação de cadáver com recolha de amostras, mas em momento algum se refere que tal diligência será inútil, antes se referindo que pode ser difícil (logo, também pode não ser difícil), pelo que as asserções produzidas pelos recorrentes acerca da inutilidade da diligência em causa, não encontram arrimo na comunicação em causa, inferindo-se, pelo contrário, da mesma, que correndo bem a exumação e recolha de amostras pode ser útil para o esclarecimento das relações de filiação objeto de litígio nos presentes autos.

A tal não obsta o tempo decorrido desde a inumação do cadáver indigitado progenitor nem a invocada existência de outros dois cadáveres inumados no mesmo local. São, naturalmente, circunstâncias que poderão afetar a recolha de material biológico, bem como a qualidade das amostras recolhidas, mas é algo que apenas poderá ser avaliado aquando da recolha e análise das amostras recolhidas, pelo que é absolutamente inadequado asseverar que a diligência é inútil. Relembra-se o que no ofício supra referenciado que, como vimos, afastou a inutilidade da diligência, já se consideraram as circunstâncias que podem gerar dificuldades para o sucesso na realização da perícia.

Não existe assim qualquer inutilidade na realização da perícia em causa, bem pelo contrário, a mesma poderá mesmo ser concludente para a decisão da ação, pois que conforme ressalta do estudo sobre Princípios de Genética Forense de Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira (da Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, págs. 120), nos casos em que não é possível realizar as perícias de investigação da paternidade com recurso ao trio pai/mãe/filho e se recorre a familiares do pretenso pai, como sucedeu na primeira perícia, as investigações serão de casos incompletos e por isso mais complexas, podendo ser necessário proceder a novas avaliações dos dados familiares, ou mesmo à exumação do cadáver do pretenso pai para recolha de material biológico, de modo a realizar uma investigação de paternidade direta.
*
Dizem ainda os recorrentes que a decretada exumação para recolha de material biológico é altamente lesiva dos direitos absolutos de personalidade moral dos recorrentes e dos demais familiares e ainda da tutela de personalidade de que beneficia o defunto, respetivamente nos termos dos arts. 70.º e 71.º do Código Civil.

Apreciando.

De acordo com o art. 1801.º do Código Civil nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames sanguíneos e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados, em que incontestadamente se incluem os exames a amostras biológicas recolhidas de cadáveres para a realização de testes de ADN, que são os que com maior fiabilidade próxima da certeza tornam possível estabelecer que determinado indivíduo procede biologicamente de outro.

Porém, esgrimem os recorrentes que tal diligência viola dos seus direitos de personalidade e os do falecido.

Contudo, tal asserção não tem qualquer fundamento como a seguir procuraremos demonstrar.

Dispõe o art. 1.º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30/12 que:

“A exumação consiste na abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver”.

Por seu turno o art. 21.º, n.º 1 do citado diploma legal dispõe que: "Após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária”.

Antes de mais importa considerar que, com a morte de uma pessoa extingue-se a sua personalidade jurídica, nos termos do n.º 1 do art. 68.º do Código Civil, ou seja, a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas.

A este propósito, Mota Pinto, in Teoria Geral da Relação Jurídica, 2.ª edição atualizada, págs. 200 e 201, expende o seguinte:

 “No momento da morte, a pessoa perde, assim, os direitos e deveres da sua esfera jurídica, extinguindo-se os de natureza pessoal (v. g. os direitos e deveres conjugais) e transmitindo-se para os sucessores "mortis causa" os de natureza patrimonial (…) a tutela do artigo 71.°, n.° 1, é uma protecção de interesses e direitos de pessoas vivas (as indicadas no n° 2 do mesmo artigo) que seriam afectadas por actos ofensivos da memória (da integridade moral) do falecido.".

Assim, “a tutela post mortem é, na realidade, a protecção concedida ao direito que os familiares têm de exigir o respeito pelo descanso e pela memória dos seus mortos.” (Menezes Cordeiro in  Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, pág. 466).

No caso concreto, em primeiro lugar não se vislumbra que a exumação judicialmente determinada, de acordo com os procedimentos legais possa ser violadora da integridade moral dos recorrentes, sobrinhos do pretenso progenitor do recorrido, nada tendo sido alegado em concreto nesse sentido.

O que poderia estar aqui em causa, seria a violação dos direitos dos familiares – não do falecido - nos termos do art. 71.º do Código Civil que dispõe que:

“1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências a que o número anterior se refere.”.

Contudo, ainda que se concedesse que poderiam estar também aqui em causa direitos de personalidade próprios dos recorrentes, chamemos-lhes assim, ou seja direitos de personalidade com assento no referido art. 70.º, que não estão, a verdade é que poderíamos ter um conflito com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, conhecimento da identidade pessoal na vertente de conhecimento das origens biológicas, com assento no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

Ora, sob a epígrafe “colisão de direitos” dispõe o art. 335.º do Código Civil que:

“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
“2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”.

Nesse caso, deveriam os direitos de personalidade dos recorrentes (que em concreto nem sequer se mostram alegados) ceder por o direito ao conhecimento da identidade pessoal dever prevalecer sobre esses hipotéticos direitos.

Ainda que fosse este o caso, a prevalência do direito à identidade pessoal do recorrente justificar-se-ia, porquanto a recolha de material biológico no cadáver do indigitado progenitor para a realização do exame científico, supostamente violador de direitos de personalidade dos sobrinhos, mostra-se num patamar muito inferior relativamente ao direito à identidade pessoal.

Mas não é de todo este o caso. O que está aqui em causa são os direitos dos familiares plasmados no art. 71.º, n.º 1 do Código civil, embora com uma redação imperfeita, não sendo tutelados os supostos direitos dos familiares nos termos do art. 70.º do Código Civil.

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, processo. 912B/2002.C1.S1, em que é relator Álvaro Rodrigues, sustentado na numerosa doutrina e jurisprudência que aí se mostra recenseada, diz-se que “o cadáver não é titular de direitos, mas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do artº 71º do C. Civil.

(…) Na realização da colheita do material cadavérico para a realização dos testes do ADN, ordenada por autoridade judicial competente, que a considerou necessária, após a devida ponderação, e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, não há objectivamente qualquer violação de direitos, tendo em atenção o direito do Investigante à sua identidade.

A violação do respeito ao cadáver importa a prática de actos que consubstanciem, materialmente, um vilipêndio do cadáver, isto é, actos susceptíveis de aviltar, profanar ou ultrajar o cadáver e não actos médicos periciais exigidos com a legítima finalidade da descoberta da verdade biológica, em casos em que importe o reconhecimento e declaração da identidade de uma pessoa.”.

Eduardo Vera Cruz Pinto in Conferência proferida em Brasília, no âmbito da II Jornada de Direito Civil, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal in http://www.cjf.jus.br) diz que:

No art. 71º do Código Civil português, a proteção aos direitos da personalidade do morto resulta da possibilidade de dano à sua família, que, nesse caso, tem legitimidade processual para atuar em sua defesa, protegendo-se. Logo, a proteção legal é dada não à pessoa que foi, mas à sua família.”.

Assim sendo, como é – também na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/03/2015, proferido no processo 244/06.1TBMNC-B.G.1, em que é relatora Eva Almeida -, dir-se-á que os direitos da família dos falecidos, ponderados em face do direito do autor à sua identidade pessoal, não deverão prevalecer, sendo de salientar que a ter sucesso a ação o recorrido passará inclusivamente a ser o parente mais próximo (primeiro grau na linha reta em contraposição com os recorridos, que são colaterais em terceiro grau – cfr. arts. 1578.º a 1581.º do Código Civil).

Como se refere a propósito da transcrita norma com a epígrafe “colisão de direitos” no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/05/2006, no processo 006A636, em que foi relator Nuno Cameira citado no acórdão do mesmo Tribunal datado de 24/05/2012, no processo 69/09.2TBMUR.P1.S1, em que é relator Serra Baptista:

Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos.

Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade.

Isto é assim porque as limitações ao exercício do direito - referimo-nos, claro está, às limitações extrínsecas, de entre as quais avulta precisamente a colisão de direitos, e não às intrínsecas, atinentes ao seu conteúdo e objecto - determinando, no fundo, como ele deve ser actuado, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em concreto. Não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento.

Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se”.

Adotado este entendimento, em face das considerações supra expostas, resulta que não existe qualquer colisão de direitos quanto aos fundamentos da oposição deduzida pelos recorrentes à exumação de cadáver do seu tio pelos motivos atinentes a si próprios (aliás não explicitados ou concretizados), supostamente subsumíveis ao art. 70.º do Código Civil, sendo que na realidade o normativo aplicável é o seguinte (art. 71.º).

 Já relativamente ao seu falecido tio, o mesmo é desde o momento da morte destituído de personalidade jurídica e, inerentemente, despojado de qualquer direito.

De todo o modo, na interpretação que consideramos a melhor, o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil, confere aos familiares do falecido um direito próprio para defesa da sua memória e dos seus restos mortais. Tem-se entendido que tal direito concedido aos familiares do falecido nos termos do citado normativo apenas pode valer contra a prática de atos ilícitos, pelo que sendo assim, em face de uma exumação determinada por autoridade judiciária, tendo em vista a satisfação de um interesse e direito legítimo, como é o conhecimento das origens não pode prevalecer, inexistindo também aqui qualquer colisão de direitos.

 Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/2014:

Independentemente de o cadáver não ser titular de direitos, mas beneficiário da proteção a que se refere o art.º 71.º n.º 1 do Código Civil, importa sublinhar que a realização da colheita de material cadavérico para a realização dos testes de ADN, que seja ordenada pela autoridade judicial competente que a considerar necessária, após a devida ponderação e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, nunca pode estar em conflito com o disposto no art.º 71.º n.º1 do C.Civil.”.

O que o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil visa evitar é a prática de atos ilícitos, como por exemplo a ofensa ao bom nome de pessoa falecida, não sendo, pois necessário qualquer consentimento dos familiares do falecido, uma vez que a determinação judicial é lícita e muito menos qualquer cooperação por ser desnecessária para a realização da diligência em causa, mostrando-se assim deslocada a referência ao art. 413.º do Código de Processo Civil e as considerações tecidas a tal respeito.

A não ser assim, não se compreenderiam a realização de autópsias sem o consentimento dos familiares e diplomas como os que permitem a utilização de cadáveres para dissecação ou extração de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e investigação científica (DL 274/99, de 22/07) ou a colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana (Lei 22/2007, de 29/06). Deste modo, a extração de ADN com recurso à exumação, sendo uma diligência lícita com vista à obtenção de provas tendentes a apurar a verdade biológica, torna infundada a oposição deduzida pelos recorrentes à realização da segunda perícia. (cfr. neste sentido, também o acórdão da Relação de Guimarães, de 07/12/2016, no processo 3727/13.3TBBCL-A.G1, em que é relatora Alexandra Rolim Mendes).

Para finalizar, dir-se-á que no caso Jaggi vs Suíça, em 13/06/2006, o Tribunal Europeu dos Direitos humanos condenou o Estado Helvético pela violação do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (direito à proteção da vida familiar) pelo facto de os Tribunais terem impedido o recorrente de recolher ADN do indigitado pai biológico falecido, não tendo permitido a exumação, prejudicando o direito ao estabelecimento da filiação, num caso em que, como no presente, os familiares do falecido não colocaram entraves de matriz religiosa ou filosófica."

[MTS]

24/10/2025

Jurisprudência 2025 (18)


Mandato judicial;
renúncia; efeitos*


1. O sumário de RP 27/1/2025 (464/24.7YIPRT.P1) é o seguinte

I - O entendimento de que a renúncia ao mandato forense produz efeitos desde a data da sua manifestação em juízo não encontra, na actualidade, qualquer respaldo legal, doutrinal ou jurisprudencial.

II - Para a plena produção de efeitos da renúncia ao mandato, nos casos em que o patrocínio judiciário é obrigatório, é necessário, em primeiro lugar, que ela seja notificada ao mandante e, para além disso, que este constitua novo mandatário ou que decorram desde aquela notificação os vinte dias a que alude o art. 47.º/3 do Código de Processo Civil.

III - A junção de requerimento de renúncia ao mandato e a falta de comparência do mandatário por esse motivo não determinam o adiamento da audiência de julgamento designada em data anterior.

IV - Para que um vício relativo à tramitação processual seja susceptível de, eventualmente, inquinar a validade da sentença, é necessário que a nulidade processual apenas seja evidenciada na própria decisão.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"OBJECTO DO RECURSO:

Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).

Assim sendo, importa apreciar:

a) Se em consequência da junção do requerimento de renúncia do mandatário, na véspera da data designada para a sua realização, e da subsequente ausência à diligência, a audiência de julgamento deveria ter sido adiada (conclusões I a XI do recurso); [...]

FUNDAMENTAÇÃO:

Considerando que os factos relevantes a considerar são os que resultam do relatório, entendemos que as duas questões enunciadas no objecto do recurso merecem, manifestamente, resposta negativa.
*
I) Relativamente à primeira, importa desde logo convocar o regime previsto para a renúncia ao mandato no art. 47.º do Código de Processo Civil.

Nos termos dessa disposição legal, a revogação e a renúncia do mandato devem ter lugar no próprio processo e são notificadas tanto ao mandatário ou ao mandante, como à parte contrária (nº 1).

Para além disso, dispõe essa norma que os efeitos da revogação e da renúncia produzem-se a partir da notificação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes; a renúncia é pessoalmente notificada ao mandante, com a advertência dos efeitos previstos no número seguinte (nº 2).

Acrescentando ainda no seu nº 3 (para além do que consta nos seus nºs seguintes, de que agora não importa cuidar) que nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado, se a parte, depois de notificada da renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias:

a) Suspende-se a instância, se a falta for do autor ou do exequente;
 
b) O processo segue os seus termos, se a falta for do réu, do executado ou do requerido, aproveitando-se os atos anteriormente praticados;
 
c) Extingue-se o procedimento ou o incidente inserido na tramitação de qualquer ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante (nº3).
 
À luz deste regime, e em atenção à expressa determinação nesse sentido contida no referido nº 2 do art. 47.º do CPC, tem-se por evidente que a produção de efeitos da renúncia ao mandato apenas tem início na data em que a sua notificação à parte se considera realizada.

Ou seja, de acordo com o disposto nos arts. 248.º e 249.º/1 do CPC, no terceiro dia posterior ao da elaboração da notificação ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando não o seja.

Até essa data, a renúncia ainda não produz qualquer efeito.

Em consequência, subsistem integralmente os direitos e deveres inerentes ao mandato e, por isso, o renunciante continua a representar a parte em juízo e a assumir a qualidade processual de seu mandatário.

Sem que essa asserção, por outro lado, conheça excepção ou desvio em função de, face ao valor da causa ou mercê de outro fundamento previsto para o efeito no art. 40.º/1 do CPC, ser obrigatória a constituição de advogado, como resulta da singela razão de o mandato persistir, encontrando-se a parte, por isso, devidamente representada.

Na verdade, a este respeito, o art. 47.º do CPC não deixa margem para quaisquer dúvidas, visto que, expressamente, impõe a produção de efeitos da renúncia reportada à data da sua notificação.

A letra dessa norma apenas concede espaço para eventuais divergências de entendimento quanto à questão de saber como actuar quando, após a devida notificação, a renúncia já iniciou a produção de efeitos e, apesar disso, ainda decorre o prazo de vinte dias para a constituição de novo advogado a que alude o art. 47.º/3 do CPC.

Mesmo nessa situação, porém, a doutrina e a jurisprudência convergem no sentido de o mandatário renunciante persistir constituído na obrigação de representar a parte em juízo até que se complete o referido prazo para a junção de nova procuração.

Assim, segundo a doutrina, a renúncia “é imediatamente eficaz na data em que ocorrer a notificação pessoal do mandante se o patrocínio judiciário por advogado não for obrigatório. Já nos demais, deu-se guarida à necessidade de tutelar os interesses da parte patrocinada, persistindo o mandato por mais 20 dias após a notificação da renúncia” (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pp. 79-80).

Vale por dizer, pois, que a tutela dos interesses da parte que viu o seu mandatário renunciar é assegurada, não pela suspensão da instância ou pelo adiamento da diligência designada para os 20 dias subsequentes, mas através da manutenção dos direitos e deveres inerentes ao primitivo mandato, apesar da notificação da renúncia, enquanto aquele prazo estiver em curso.

Identicamente, a jurisprudência tem sentenciado que, “sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário (n.º 3 do citado artigo 47.º), razão pela qual, a parte continua a ser assistida pelo mandatário renunciante, que continua vinculado às obrigações decorrentes do mandato forense”.

Acrescentando que “este regime visa justamente acautelar a produção de efeitos negativos para a parte, quando o patrocínio é obrigatório, e a parte não consegue imediatamente constituir novo mandatário, daí que o advogado renunciante continue ligado ao mandato, durante 20 dias, até, dentro deste prazo, o mandante constituir novo mandatário, extinguindo-se, então, o primeiro mandato” (cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2023, tirado no processo 13284/21.1T8PRT-A, da autoria de Manuel Domingos Fernandes e disponível na base de dados da Dgsi em linha).

Assim, o entendimento de que a renúncia ao mandato produz efeitos desde a data da sua manifestação em juízo não encontra, na actualidade, qualquer respaldo legal, doutrinal ou jurisprudencial.

Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/3/2020, “sendo o patrocínio judiciário obrigatório, a renúncia ao mandato não produz os seus efeitos imediatamente após a notificação pessoal do mandante, mas sim quando este constitua novo advogado ou decorrido o prazo de 20 dias após a notificação da renúncia (corpo do n.º 3 do citado artigo 47.º). Nesse interim, a parte continua a ser assistida pelo mandatário renunciante, que continua vinculado às obrigações decorrentes do mandato forense.

Mais: “sendo a revogação do mandato forense e a renúncia ao mesmo declarações negociais receptícias, só serão eficazes se e quando chegarem ao conhecimento do destinatário” (cfr. processo 25561/15.6T8PRT-C, sendo o aresto relatado por Joaquim Moura e estando acessível no citado sítio).

Digamos, pois, que do regime legal relativo à renúncia ao mandato e da sua evolução resulta claro que o início da produção dos seus efeitos ocorre na data de notificação, por um lado e, por outro, que eles apenas se produzem integralmente com a constituição de novo advogado ou no final do prazo de vinte dias após a notificação.

Em consequência, passou a estar consolidado o entendimento segundo o qual “o art. 47º, nº 3, CPC deve ser interpretado no sentido de que, nas ações em que é obrigatório o patrocínio, havendo o mandatário renunciado ao mandato sem que a parte, notificada pessoalmente, tenha constituído entretanto advogado, a renúncia ao mandato só produz efeitos [em pleno, acrescentamos nós] após o decurso do prazo de vinte dias legalmente estabelecido para o mandante constituir novo mandatário, significando que durante esse período se mantém o mandato inicial”.

E daí que “o prazo de 20 dias, legalmente fixado, não suspende ou interrompe o prazo processual em curso” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/2/2021, relativo ao processo 5403/18.1T8VIS, relatado por Jorge Arcanjo e pesquisável na mesma base de dados).

Tratou-se, aliás, de uma orientação que emergiu da reforma processual de 1995/96, no sentido de evitar o recurso sistemático à figura da renúncia ao mandato como manobra dilatória e impeditiva da realização de julgamentos que até então grassava com relativo sucesso.

E que, no entanto, não tinha, as mais das vezes, real correspondência com uma quebra de confiança ou qualquer outro motivo de autêntico dissídio entre a parte e o seu representante forense.

À semelhança, na verdade, do que aconteceu nos presentes autos, no âmbito dos quais a renúncia teve por base, segundo foi alegado, a dificuldade de custear as despesas de deslocação do mandatário, mantendo este, porém, a representação da requerida, já posteriormente, na interposição do recurso que visou a anulação do julgamento.

É justificado convocar, atenta a sua manifesta similitude com o caso em apreciação, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2009, relativo a um processo em que, na véspera do final do prazo para interposição do recurso, o mandatário de uma das partes renunciou, pretendendo-se que essa renúncia tivesse por efeito a suspensão do processo ou a interrupção do prazo que se encontrava em curso.

Todavia, a esse propósito, o aresto foi cristalino e assertivo no sentido de que “a interpretação defendida pelos recorrentes considerando que a mera apresentação da renúncia ao mandato desvincula, ipso facto, o Advogado, suspendendo ou até interrompendo o prazo processual em curso, não tem apoio mínimo na letra da lei”.

Referindo igualmente estar assente que “a alteração introduzida no art. 39º do Código de Processo Civil [actual art. 47.º do mesmo diploma], pela Reforma Processual de 1995/96, foi a de não deixar o mandatário-renunciante ad eternum no exercício do mandato, já que na primitiva redacção do preceito inexistia previsto o prazo razoável de 20 dias para o mandante constituir novo advogado, o que redundava em severa sanção para quem desejava retirar-se do patrocínio forense”.

E, citando doutrina, destacou ainda que “estabeleceu-se um prazo legal de vinte dias para o mandante constituir novo mandatário, durante o qual se mantém o patrocínio inicial” e que “embora a lei tenha deixado de o dizer expressamente, tal resulta do prosseguimento do processo até ao termo do prazo” (cfr. processo 2822/06.0TBAGD-A, estando o aresto, da autoria de Fonseca Ramos, disponível na citada base de dados).

Importa sublinhar, por fim, que o estabelecimento do referido prazo de vinte dias (salvo se, antes do seu final, ocorrer a constituição de novo advogado) para a produção plena dos efeitos da renúncia ao mandato foi já objecto de decisão do Tribunal Constitucional, o qual, no Acórdão 671/2017 (consultável na sua base de dados em linha), decidiu “não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 47.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), segundo a qual, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário”.

Em resultado do exposto, duas conclusões são forçosas nestes autos:

a) a junção do requerimento de renúncia ao mandato não produzia ainda qualquer efeito quanto à manutenção desse vínculo na data designada para a realização da audiência de julgamento e não poderia determinar o seu adiamento; e
 
b) a realização ou não dessa diligência, por esse motivo, teria de ser decidida com base nas normas especificamente previstas para o efeito.

Ora, a falta de comparência de advogado com base na mera junção da renúncia ao mandato, na verdade, não constitui motivo idóneo de adiamento da audiência de julgamento, atento o disposto no art. 603.º CPC.

E para o qual, segundo deve entender-se, remete o art. 4.º do Regime previsto para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes do contrato pelo DL n.º 269/98, de 01 de Setembro, quando estejam em causa acções de valor superior à alçada do tribunal de 1.ª instância.

Improcedem, por isso, e manifestamente, as conclusões I a XI do recurso, o que sempre teria por efeito prejudicar a procedência da última."

*3. [Comentário] Embora se tenha optado por dar relevo à temática da renúncia ao mandato judicial, o sumariado no n.º IV também é importante.

MTS

23/10/2025

Jurisprudência europeia (TJ) (328)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 7.º, ponto 1, alínea b), segundo travessão — Competência especial em matéria contratual — Determinação do tribunal competente — Contrato de transporte aéreo celebrado entre um consumidor e um profissional — Crédito indemnizatório do passageiro decorrente de um voo atrasado — Cessão desse crédito a uma sociedade de cobrança de créditos — Ação de indemnização intentada pelo cessionário contra a transportadora aérea no tribunal do lugar de partida do avião — Lugar de cumprimento da obrigação em questão — Lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato de transporte, os serviços foram ou devam ser prestados


TJ 9/10/2025 (C‑551/24, Deutsche Lufthansa/Airhelp Germany) decidiu o seguinte:

O artigo 7.°, ponto 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

um tribunal de um Estado‑Membro é competente, em conformidade com esta disposição, para conhecer de um litígio relativo a uma ação de indemnização intentada contra uma transportadora aérea, estabelecida no território de outro Estado‑Membro, por uma sociedade cessionária do crédito de um passageiro resultante da execução de um contrato de transporte celebrado com essa transportadora, desde que esse tribunal seja o do lugar onde, nos termos desse contrato, os serviços foram ou devam ser prestados. 
 

Jurisprudência europeia (TJ) (327)


Reenvio prejudicial — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.º 1215/2012 — Âmbito de aplicação — Artigo 25.° — Pacto atributivo de jurisdição — Partes num contrato estabelecidas num mesmo Estado‑Membro — Atribuição aos tribunais de um Estado‑Membro de competência para dirimirem litígios resultantes desse contrato — Elemento de estraneidade — Consequências da saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia


TJ 9/10/2025 (C-540/24, Cabris Investments/Revetas Capital Advisors) decidiu o seguinte:

O artigo 25.° n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

esta disposição abrange uma situação em que duas partes num contrato domiciliadas no território do Reino Unido acordam, através de um pacto atributivo de jurisdição celebrado durante o período de transição previsto no Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, na competência de um tribunal de um Estado‑Membro para conhecer dos litígios decorrentes desse contrato, ainda que esse tribunal tenha sido chamado a pronunciar‑se sobre um litígio entre essas partes após o termo desse período.


Jurisprudência 2025 (17)


Prova testemunhal; livre apreciação da prova;
grau de prova; medida da prova*


1. O sumário de RG 23/1/2025 (100/20.0T8BGC.G1) é o seguinte:

I – Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.

II - Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos das testemunhas, os motivos pelos quais se lhes confere credibilidade têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, avaliando-se a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os recorrentes consideram que foi incorretamente julgada a matéria dada como provada sob os nºs 13, 14, 15, 16, 22, 23, 24, 25, 26 e 27, a qual deveria ser dada como não provada e que os factos julgados como não provados e constantes das alíneas a) a h) deveriam ter sido julgados como provados.

Fundamentam a alteração pretendida nos depoimentos das testemunhas PP, QQ, RR, II, SS e AA que não foram devidamente valorados pelo tribunal.

Assim, a apreciação da impugnação situa-se no domínio da valoração da prova testemunhal em processo civil.

Decorre do disposto no artigo 396º do Código Civil e do princípio geral enunciado no artigo 655º do Código de Processo Civil que o depoimento testemunhal é hoje um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, devendo este avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência. [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 248/2009, de 15.06.2009, disponível em www.dgsi.pt.]

A convicção é o estado de certeza ou incerteza na verdade de um facto. No que toca à valoração da prova no âmbito de um processo judicial, este estado não pode ser um estado de fé, impõe-se que seja um estado crítico, formado de acordo com critérios de prudência. [Neste sentido, Marta João Dias, Julgar, N.º 13 – 2011, pag. 178.]

Por consequênciao julgador é livre na valoração da prova, na justa medida em que os meios de prova sujeitos à sua apreciação não têm um valor legal predeterminado, mas a decisão não o é, pela simples mas determinante razão de que a convicção exteriorizável pela decisão não se subsume a uma “íntima convicção”, mas também não é uma “pura objetividade” lógico-racional, que se possa demonstrar.

O estado de certeza da verdade, que há-de corresponder sempre a uma probabilidade, manifesta-se num juízo de certeza prático-emocional que, usando as palavras de Marta João Dias assente nos ensinamentos de Castanheira Neves em questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, p. 479,  “não obstante a inapagável nota pessoal, não cai num subjectivismo arbitrário, mas é antes marcada pela “objectividade da vida”, isto é, no decidir, o julgador convoca a sua experiência ou vivência pessoal, o que mais não é do que o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere e que viabiliza o nosso conviver, pelo que a verdade a emergir há-de ser a intersubjectivamente partilhada e experimentada”. [Ob. Cit. pag. 178/179.]

Analisar criticamente as provas é valorá-las.

Num sistema de prova livre, o legislador abstém-se, em abstrato, de determinar o valor da prova e reconduz essa tarefa ao julgador, a quem cabe aferir, em concreto, o “valor relativo” de cada meio de prova face ao conjunto, isto é, como refere Marta João Dias, o julgador terá que fazer um conciso dos meios de prova produzidos, ponderando o valor de cada e estabelecendo entre eles a hierarquia de valor determinante para a formação da sua convicção. Com isto está a “pesar” as provas [In Julgar Nº 13, 2011, pag. 194.]

Quanto à prova testemunhal, há que referir que para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. [Assim também acórdão da Relação de Évora de 09-01-2018, disponível em www.dgsi.pt.]

Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos das testemunhas, os motivos pelos quais se lhes confere credibilidade têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, avaliando-se a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.~

Por isso, a atividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as razões de ciência, as garantias de imparcialidade, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as coincidências e contradições, ademais de os conjugar com os demais elementos objetivos.

Compreende-se, em razão disso, que a lei disponha que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Certo, no entanto, como já se expressou, que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas apreciação que se realiza de acordo com critérios lógicos e objetivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objetivável e motivável [Neste sentido, acórdão do STJ de 4.11.98, Coletânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.]

Na situação presente, os réus admitem que o dinheiro depositado nas contas bancárias pertencia a GG, tendo os réus transferido este dinheiro para as suas contas pessoais (em dois momentos, um pouco antes do GG falecer e outro logo após o seu falecimento), competia-lhes demonstrar o título legitimo para a transferência, a alegada doação ou instituição como herdeiros.

Assim, a centralidade da questão incide na prova dessa causa legitima de apropriação do dinheiro.

As testemunhas ouvidas, de laços familiares ou de vizinhança muito próxima dos réus, referiram que o GG sempre disse que tudo o que tinha seria para os réus.

Quando questionados sobre os termos da concretização ou manifestação dessa intenção ou vontade, nada esclareceram, por nada saberem.

Sem uma explicação credível e lógica a este facto concreto, os seus depoimentos revelaram-se inconsistentes e de pouca relevância, quedando-se por uma “repetida intenção de recompensa”, sem materialização concreta.

O que a propósito foi declarado pelas testemunhas mostra-se infirmado pelo que resulta dos documentos quanto às anteriores contas bancárias que tinham o sobrinho do falecido como movimentador, para o auxiliar nos levantamentos necessários à gestão do seu quotidiano, à própria personalidade do falecido, por todos descrito como pessoa poupada e com uma vida regrada, que amealhou ao longo da vida para as suas necessidades futuras.

Ora, para demonstração da versão dos réus, no que se conforma a sua impugnação de facto, estes testemunhos superficiais desacompanhados de elementos objetivos concretizadores daquela intenção de beneficiar os réus, revelaram-se manifestamente insuficientes.

A prova de um facto requer o preenchimento do designado standard mínimo da prova [A este propósito, pode ver-se LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, disponível em www.trl.mj.pt, pág. 1]. A este propósito, exige-se que, através dos meios de prova que foram apresentados, seja possível afirmar que o facto é verosímil, no sentido de, como afirma Miguel Teixeira de Sousa, 'excluir, segundo o padrão que na vida prática é tomado como certeza, outra configuração da realidade dada como provada[In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 201]. Exige-se também que seja possível elaborar um raciocínio lógico que permita justificar externamente esta verosimilitude, não se limitando ao mero convencimento subjetivo do julgador [Como afirma GUILHERME RECENA COSTA, in Livre Convencimento e Standards de Prova, pág. 363, princípio da livre apreciação da prova corresponde a uma 'valoração segundo parâmetros racionais, objectivos e controláveis'. A este propósito, são particularmente expressivas as palavras de JOÃO DE CASTRO MENDES, in Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 325, para quem 'quanto ao grau de convicção que é necessário para se falar em prova, diremos que é aquele que for necessário para justificar a decisão. (…) domina aqui a ideia de justificabilidade. Toda a prova é, portanto, uma prova bastante; bastante para justificar o acto que se vai praticar'.].

A confirmação do facto deverá atingir este patamar mínimo - sufficiency of evidence - sob pena de a parte a quem compete o ónus da prova suportar a consequência jurídica da falta de confirmação.

A prova produzida, considerada na sua globalidade e por referência às regras da experiência comum, não impõe decisão diversa (artigo 662º, nº 1, do Código de Processo Civil), pelo que os pontos relacionados com a impugnação não merecem acolhimento, sendo a decisão de facto correspondente à realidade processualmente adquirida.

*3. [Comentário] a) Salvo a devida consideração, a "verosimilitude" não é suficiente para satisfazer a exigência da medida da prova que se exige numa acção, ou seja, da prova stricto sensu. É possível estabelecer a seguinte correspondência entre o grau e a medida da prova:

                                     Grau de prova                                   Medida da prova

                                     Prova stricto sensu                           Verdade do facto
                                     Mera justificação                               Verosimilhança do facto
                                     Princípio de prova                             Hipótese do facto

b) O citado artigo de Recena Costa pode ser consultado aqui.

MTS

22/10/2025

Do conhecimento da ineptidão da petição inicial




[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]

Jurisprudência 2025 (16)


Restituição provisória da posse;
requisitos; impugnação


I. O sumário de RG 23/1/2025 (97/24.8T8MLG.G2) é o seguinte:

1 – O decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse depende da prova dos factos que revelem a posse dos requerentes, a violência e o esbulho e não daqueles de que depende o decretamento de providência no âmbito do procedimento cautelar comum.

2 – Na providência cautelar especificada de restituição provisória da posse a lei estabelece como regra a não audição prévia do requerido, tendo em vista o decretamento da providência, não sendo cometida qualquer nulidade quando a decisão é proferida sem audição prévia da parte contrária.

3 – Optando o requerido apenas por recorrer da decisão cautelar proferida e não impugnando a matéria de facto provada e não provada, apenas podem ser considerados os factos indiciariamente provados na decisão de 1.ª Instância e não quaisquer outros, referidos nas alegações de recurso, que poderiam ter obstado ao decretamento da providência cautelar.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

5 – O recorrente alega ainda que “o decretamento da providência é manifestamente extemporâneo na medida em que não veio impedir a realização as obras reputadas pelos requerentes, uma vez que as mesmas se encontravam já totalmente concluídas e rematadas”, invocando, mais uma vez, o regime dos art.sº 362.º e 363.º do C. P. Civil, ou seja, do procedimento cautelar comum.

Como resulta do que se escreveu já, não estamos perante procedimento cautelar comum.

Para que esta providência cautelar fosse decretada bastava que tivessem resultado provados os factos que integravam os pressupostos acima referidos: a posse dos requerentes, o esbulho e a violência.

Ou seja, o estado em que estava a obra de colocação da cancela e dos pilares – concluída ou não – sempre seria irrelevante para o desfecho da providência cautelar, desde que estivesse indiciariamente demonstrada a posse dos requerentes sobre a parcela denominada de caminho, o esbulho e a violência.

O estado da colocação dos pilares não obstava, assim, ao deferimento da providência cautelar, nem determina o seu levantamento.

6 – Reitera o recorrente a sua alegação relativa à não verificação dos pressupostos que permitem que seja decretada providência cautelar comum (seja o periculum in mora, seja a probabilidade séria da existência do direito).
Não são, como se referiu já, estes os pressupostos que tinham de verificar-se para que a providência cautelar especificada de restituição provisória da posse fosse decretada, pelo que a sua não verificação não impedia o seu indeferimento, nem determina o seu levantamento.

7 – Concretamente sobre os fundamentos da providência cautelar efetivamente decretada de restituição provisória da posse alega apenas o requerido que os requerentes, “para justificarem o esbulho e a violência”, “lançaram mão de uma queixa-crime contra o requerido, do qual, este é suspeito do facto alegado e não condenado, até prova em contrário. Deste modo, há limitação para as acusações infundadas contra o Requerido”.

Não se logra sequer perceber o raciocínio do requerido, considerando a matéria de facto que resultou indiciariamente provada e que supra se elencou nos pontos 36 a 42 e que permitiram afirmar a violência e o esbulho, nos exatos termos tão bem decididos pela 1.ª Instância:

O esbulho verifica-se quando a pessoa é privada da posse, abrangendo os atos que implicam a perda da posse contra a vontade do possuidor e que assumam proporções de tal modo significativas que impeçam a sua conservação, ficando o esbulhado impedido do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse (cf. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil», Vol. I, 3.ª reimpressão da edição de 1998, Almedina, 2010, p. 46).

Nos termos do art. 1283.º do Código Civil, «é havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse ou a ela foi restituído judicialmente», o que significa que a restituição provisória da posse será injustificada, por inexistência de esbulho, quando a coisa possuída tenha sido apreendida por via do cumprimento de uma ordem judicial ou no âmbito de uma ação executiva para entrega de coisa certa, bem como nos casos em que se verifique uma mera turbação da posse, isto é, quando os atos de um terceiro apenas dificultam o exercício do poder de facto sobre uma coisa, poder esse que, no entanto, se mantém na esfera do possuidor (cf. MARCO CARVALHO GONÇALVES, op. cit., p. 276).

O procedimento pode ser instaurado não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas também contra terceiro que esteja na posse da coisa esbulhada e tenha conhecimento do esbulho (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 37/20.3T8PTL.G1, de 01-10-2020, relator JOAQUIM BOAVIDA, disponível in www.dgsi.pt).

In casu, da factualidade sumariamente assente resulta que, em data não concretamente apurada, o requerente cravou dois pilares de pedra, um de cada lado do caminho, construiu um portão em chapa de zinco nesses pilares, fechado com uma tranca metálica e a impedir a passagem de quem quer que seja (tal como os requerentes). Mais colocou o requerido pedras e terra a bloquear o caminho em questão.

Destarte, os requerentes perderam o controlo material sobre a detenção e fruição do sobredito caminho (ou seja, perderam o seu pleno uso), concluindo-se que foram esbulhados da sua posse.
Em face do que se deixou dito, considera-se que a atuação do requerido consubstancia um ato de esbulho com características capazes de fundamentar a providência, concluindo-se, assim, pela verificação do segundo pressuposto do decretamento da providência”. (…)

A restituição provisória só tem cabimento quando o esbulho haja sido perpetrado com violência.

O conceito de violência referenciado pelos arts. 1279.º do Código Civil e 377.º do Código de Processo Civil é explicitado no art. 1261.º, n.º 1, do Código Civil, o qual define como violenta a posse adquirida através de coação física ou de coação moral nos termos do art. 255º do mesmo Código.

Conforme sustentam LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE «é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador», não relevando se o esbulho é direcionado à pessoa do esbulhado ou aos seus bens (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Almedina, 2017, pp. 47 e 94).

Não se negligencia a divergência existente entre os que apenas relevam a violência exercida contra a pessoa do esbulhado e os que relevam, de igual modo, a violência exercida sobre a coisa, contudo afigura-se que apenas o segundo entendimento se revela consentâneo com o conceito de violência plasmado no aludido art. 1261.º, n.º 1, do Código Civil, por referência ao art. 255º do mesmo Código (cf. neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 487/14.4T2STC.E2.S1, de 19-10-2016, relatora FERNANDA ISABEL PEREIRA, disponível in www.dgsi.pt).

Até porque, conforme entendimento propugnado pelo Supremo Tribunal de Justiça, «A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, atuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa.» (ibidem).

Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães quando entendeu que «não pode afastar-se liminarmente a relevância da ação do esbulhador sobre a coisa, havendo que analisar, em concreto, em que medida a violência exercida afeta a relação do possuidor com essa mesma coisa, adiantando-se que a caracterização como esbulho violento, para efeitos do disposto no art. 1279º do CC, não se limita ao uso da força física contra as pessoas, sendo ainda de considerar violento o esbulho quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios ou à natureza dos meios usados pelo esbulhador e, por isso, há-de considerar-se privado da posse, em virtude de ação violenta dos esbulhadores, exercida sobre a coisa.» (cf. processo n.º2722/20.0T8BCL.G1, de 13-07-2021, relator JOSÉ CRAVO, disponível in www.dgsi.pt).

Todavia, no respeitante à violência sobre as coisas, enquanto uma posição mais lata apenas exige uma atuação sobre a coisa esbulhada desde que impeça a continuação da posse por parte do esbulhado, outra mais restrita impõe que a atuação sobre a coisa esbulhada seja apta, ainda que indiretamente, a constranger ou intimidar a pessoa do esbulhado (veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, relator ESPINHEIRA BALTAR, disponível in www.dgsi.pt).

O colendo Supremo Tribunal de Justiça, no enunciado acórdão de 19-10-2016, sufragou a posição mais abrangente, sustentando que a «violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia» (no mesmo sentido, acórdãos dos Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 69/11.2TBGMR-B.G1, de 03-11-2011, relator ANTÓNIO SOBRINHO, Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 1880/13.5TBSTS.P1, de 18-10-2013, relator CARLOS QUERIDO, Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 89/14.5TBBNV.L1-7, de 23-09-2014, relator DINA MONTEIRO, Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, relator ESPINHEIRA BALTAR, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

Sendo certo que não é possível enunciar um conceito preciso de violência, haverá que ponderar, em cada caso concreto, as circunstâncias em que o esbulho foi praticado, isto é, se o esbulhado se viu impedido contra a sua vontade e em consequência de um comportamento que lhe é alheio do exercício da posse ou do direito como até então.

Destarte, afigura-se que para a verificação da violência do esbulho é suficiente que o ato seja dirigido à coisa esbulhada e seja de molde a impedir a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de obstáculos à sua utilização pelo possuidor, sendo este constrangido a suportar esta situação contra a sua vontade (como sucederá nos seguintes exemplos jurisprudenciais: substituição de fechaduras, colocação de cadeados, vedação de prédio com arame e colocação de cadeado num portão, vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50 metro). (…)

No caso sub judice, não se suscitam dívidas que a violência exercida pelo requerido é relevante para efeitos da restituição provisória da posse, pois que se conclui pela constituição de obstáculos físicos, a cancela, as pedras e a terra, e que inviabilizam a passagem pelo traço de terreno em relevo.

A imprevisibilidade desta atuação e os meios utilizados não podem ter outro significado que não um intuito patente do requerido em intimidar os requerentes, de forma a impossibilitá-los de usar e fruir do imóvel em toda a sua plenitude. Conclui-se, assim, pela verificação do terceiro pressuposto”.

Ou seja, perante a matéria de facto que foi considerada indiciariamente provada, sem que aqui tenha sido colocada em causa, não restam quaisquer dúvidas que se se verificavam os pressupostos substantivos que permitiam que fosse decretada a providência cautelar de restituição provisória da posse, fossem os dois aqui contestados, do esbulho e da violência, fosse a posse dos requerentes, com animus do exercício do direito de servidão que, em rigor, não foi contestada pelo recorrente."

[MTS]