"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/09/2025

Jurisprudência 2024 (233)


Compensação de créditos;
declaração de insolvência; insolvência superveniente


1. O sumário de STJ 3/10/2024 (32/22.8T8AVR-A.P1.S1) é o seguinte:

I - A certeza e a segurança das relações contratuais devem permitir, a quem invoca eficazmente a compensação de um crédito, confiar que o efeito extintivo inerente ao exercício desse direito potestativo se produziu definitivamente na ordem jurídica.

II - Não admitir o réu a fazer prova da excepção respeitante à invocada compensação, por se entender que só podia ser feita valer em reconvenção, mas, ao mesmo tempo, entender que a reconvenção nunca seria admitida no caso concreto, porque, sendo a autora uma massa insolvente, tal estaria excluído pelas regras do art. 90.º e ss. do CIRE, sendo o réu condenado no pedido, traduzir-se-ia numa significativa afectação dos direitos de defesa do réu.

III - A insolvência superveniente da contraparte (autora) não deve afectar o efeito extintivo da obrigação que já se possa ter produzido com a eficaz invocação da compensação de créditos, por via judicial, pela Ré, não se ajustando ao sistema decretar a inutilidade superveniente da lide reconvencional como um todo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"32.5. Diz a recorrente que a situação dos autos não é enquadrável no Acórdão do STJ nº 1/2014.

Analisando.

Neste aresto foi uniformizada a jurisprudência assim:

“Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”

A norma do art.º 287.º, al. e) do C.P.C para este AUJ corresponde actualmente ao art.º 277.º, al. e) do CPC.

A situação que despoletou a prolação deste AUJ reportava-se a uma acção intentada por credor contra uma empresa, que veio a ser declarada insolvente, já depois da entrada em juízo da acção.

E o tribunal disse:

“Em síntese, aproximando a conclusão:

- Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência;

- A partir daí, os direitos/créditos que a A. pretendeu exercitar com a instauração da acção declarativa só podem ser exercidos durante a pendência do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do CIRE - cujos momentos mais marcantes da respectiva disciplina deixámos dilucidados -, seja por via da reclamação deduzida no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência (...e, no caso, a A. não deixou de o fazer), seja pela sua inclusão na listagem/relação subsequentemente apresentada pelo administrador da insolvência, não subsistindo qualquer utilidade, efeito ou alcance (dos concretamente peticionados naquela acção (13), que justifiquem, enquanto fundado suporte do interesse processual, a prossecução da lide, assim tornada supervenientemente inútil.

O Acórdão sub judicio elegeu a solução consentânea, que não pode, por isso, deixar de ser sufragada, soçobrando, pois, todas as razões que enformam as asserções conclusivas que resumem a motivação do recurso.

E, com todo o respeito por diverso entendimento, não vemos qualquer razão, técnico-juridicamente ponderosa, que aponte no sentido de que a solução deva ser diversa no Foro comum.”

Em que medida a jurisprudência deste AUJ é aplicável aos presentes autos?

Interpretando o acórdão em causa e as considerações já realizadas sobre a distinção entre “compensação/excepção” e “reconvenção”, o AUJ aplica-se à reconvenção na parte em que a mesma excede a compensação invocada claramente.

É relativamente a este crédito que alguém se pretenda fazer reconhecer como credor contra o insolvente que se diz que o mesmo terá de ser deduzido no processo de insolvência, pelas vias aí indicadas, nomeadamente a reclamação de créditos.

E, por isso, a acção que o alegado credor tenha intentado contra a Ré que venha a ser considerada insolvente deve ter como desfecho a inutidade superveniente da lide – regra que se aplicará ao crédito que excede a compensação invocado a título de reconvenção apresentada por R. em defesa no âmbito de acção intentada por quem como credor vem depois a ser declarada a insolvência do devedor, visto que a posição de invocação desse crédito em reconvenção é equivalente a fazer valer em juízo um crédito por via de uma acção.

Do exposto resulta que a recorrente tem parcialmente razão.

Tem razão na parte em que pretende ver admitida a sua defesa por excepção, em que invoca a compensação com os créditos da A. – e até ao valor daqueles;

Não tem razão quando pretende que nesta acção se possa decretar ser credora da A. no remanescente (e até ao valor total do seu pedido reconvencional), por esta invocação ser equivalente à posição de A. em acção contra insolvente posteriormente assim declarado, tomando por referência a data da propositura da acção.

Nessa parte – e quantia – há inutilidade superveniente da lide e a R. deverá, nos termos legais, deduzir reclamação do crédito a que se arroga no processo de insolvência.

É que, uma vez declarada a insolvência, todos os credores da insolvência têm direitos de crédito que entram em colisão entre si dada, em provável, a insuficiência da massa insolvente para satisfação de todos os créditos. Por isso, se prevê um processo de verificação e graduação de créditos a que são chamados todos os credores da insolvência a fim de aí fazerem valer os seus direitos em confronto com todos os restantes credores e a insolvente, para que os direitos verificados e as garantias ou preferências no pagamento reconhecidas sejam oponíveis a todos.

Visando a Ré, com a reconvenção, exercer direitos de crédito de natureza patrimonial sobre a Autora reconvinda constituídos antes da declaração de insolvência (que não a compensação), deve estender-se também a esta hipótese a jurisprudência fixada no referido Acórdão n.º 1/2014, pois que, também em relação à ré reconvinte, se aplica, a partir do trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência do autor reconvindo, o ónus previsto no artigo 90.º do CIRE

Por força do disposto no art. 128º, nº 3 do CIRE, a reconvenção não pode prosseguir, dado que o meio processual próprio para o reconhecimento e verificação de créditos é o aí referido.

Ainda que fosse procedente a reconvenção, nenhum efeito jurídico contra a massa insolvente retiraria a autora da decisão destes autos, pois a mesma seria inoperante perante os demais credores e massa insolvente – art. 173º do citado Código.

Declarada a insolvência deve julgar-se extinta a instância reconvencional (na parte em que não abrange a compensação) por impossibilidade superveniente da lide por o Réu/reconvinte ter de reclamar o seu crédito no competente incidente. E não obsta à conclusão estar em causa uma reconvenção pois, como é aceite unanimemente, trata-se de uma contra-ação pelo que é totalmente aplicável à dedução de reconvenção, nestas circunstâncias, o que se aplica à ação, também sendo, in casu, impossível de ser deduzida.

32.6. Invoca a recorrente que a solução configurada nos presentes autos envolve um conflito negativo de competência em relação à instância reconvencional. E a razão desse conflito negativo seria fundado na listispendência: estando já pendente a acção e a reconvenção nela deduzida no momento da apresentação da Autora à insolvência e, consequentemente, no momento da prolação da sentença de declaração da insolvência, a Ré não poderia, sob pena de incorrer em litispendência, ir reclamar na insolvência o seu contracrédito contra a Autora e a compensação parcial de créditos e muito menos propor a posteriori, na pendência desta acção, um acção de verificação ulterior de créditos prevista no artigo 146º do CIRE.

Analisando.

Não tem razão integral, mas há alguns aspectos da decisão recorrida que merecem ser ponderados, à luz da já indicada distinção entre compensação /excepção e reconvenção.

Não tem razão na parte relativa à reconvenção porque:

- A reclamação do crédito invocada na reconvenção não só é possível, sem violação do regime da litispendência, como é mesmo a solução imposta pelo legislador na situação específica da insolvência do alegado devedor, que não é dispensável nem mesmo se uma decisão judicial tiver reconhecido o crédito da Ré sobre a insolvente, com trânsito em julgado.

- A apresentação a insolvência após ter sido notificada da contestação-reconvenção contra ela deduzida pela Ré-reconvinte, não contraria o citado princípio da igualdade processual entre as partes, tao pouco corta liminarmente e cerce o direito da Ré/reconvinte ao exercício dos seus direitos de indemnização e contracréditos contra a Autora.

- A Ré não estava impedida, nem nunca esteve impedida, de, após a dedução da sua contestação- reconvenção e a posterior declaração de insolvência da Autora, ir reclamar os seus créditos indemnizatórios ao processo de insolvência ou em acção de verificação ulterior de créditos, não se verificando qualquer excepção de litispendência na reclamação de créditos ou na verificação ulterior de créditos por força do disposto nos artigos 580º, 581º e 582º do C.P.C..

Mas já tem razão quando lhe está a ser vedada a possibilidade de defesa da presente acção na parte em que invoca a compensação com o alegado crédito da A., impondo-se, em princípio, ao tribunal que conheça da defesa que apresenta.

Essa permissão encontra-se no art.º 99.º do CIRE, que funciona como norma que permite não reclamar todos os créditos na insolvência, porque “não emergindo do disposto no art.º 90º do CIRE um princípio absoluto no sentido de todas as situações relativas a créditos da insolvência e créditos sobre a insolvência deverem ser verificadas em sede do processo de insolvência e dos seus incidentes (desde logo o incidente de verificação de créditos), mas admitindo-se que as questões relativas à compensação de créditos se apresentam como uma excepção a esse princípio, nada impede que as mesmas possam ser discutidas no processo onde foram suscitadas, a título de excepção peremptória.”

32.7. Diz a recorrente ainda: “O douto Acórdão recorrido é manifestamente violador do princípio da igualdade processual entre as partes ao considerar que, declarada a insolvência da Autora na presente acção, em processo de insolvência por ela própria instaurado por apresentação já após ter sido notificada da contestação-reconvenção contra ela deduzida pela Ré-reconvinte, a mesma acção pode prosseguir apenas para apreciação dos pedidos nela formulado pela Autora na p.i., para eventual reconhecimento dos direitos de crédito que nela a Autora reclama sobre a Ré, sem a concomitante apreciação dos pedidos reconvencionais oportunamente deduzidos pela Ré contra a Autora e dos contracréditos daquela contra esta que de tais pedidos reconvencionais são objecto, para, na hipótese do seu procedimento, serem objecto de compensação parcial com parte ou a totalidade dos créditos invocados e que venham a ser reconhecidos à Autora na presente acção…O entendimento do Acórdão recorrido corta liminarmente e cerce o direito da Ré-reconvinte ao exercício dos seus direitos de indemnização e contracréditos contra a Autora com base no incumprimento contratual do mesmo contrato com base no qual a Autora formula na p.i. os seus pedidos contra a Ré, não tendo tido em conta que, na pendência da presente acção e da instância reconvencional, a Ré estava impedida de, após a dedução da sua contestação-reconvenção e a posterior declaração de insolvência da Autora…

Analisando.

Não tem razão integral, mas há alguns aspectos da decisão recorrida que merecem ser ponderados, à luz da já indicada distinção entre compensação /excepção e reconvenção.

Tem razão quando lhe está a ser vedada a possibilidade de defesa da presente acção na parte em que invoca a compensação com o alegado crédito da A., impondo-se ao tribunal que conheça da defesa que apresenta. [...]

33. Quanto à questão de saber se estão reunidos os requisitos legais para invocar a compensação, recorda-se que a questão foi colocada na apelação – e vem suscitada na revista pela via da ampliação do objecto do recurso –, mas a mesma foi considerada prejudicada pelo tribunal recorrido:

1. Foi elencada como questão b) do recurso

“b) – caso assim se não entenda, se a reconvenção, por falta dos requisitos da compensação, não deve ser admitida [conclusões J) a T) do recurso].”

2. Teve a seguinte resposta do tribunal:

Face ao ora decidido, fica prejudicado o tratamento da segunda questão enunciada (arts. 663º nº2 e 608º nº2 do CPC).”

Na medida em que se impõe revogar a decisão do tribunal da Relação na parte que considerou toda a reconvenção abrangida pela inutilidade superveniente da lide, também antes de saber se o processo deve mesmo seguir os seus termos, impõe-se determinar que o TR aprecie a questão prejudicada (no contexto da nova decisão que este STJ adoptou), após o que aquele tribunal decidirá do recurso de apelação.

É que o apelante havia colocado a questão de saber se o pedido seria admissível por referência ao fundamento de ser uma compensação judiciária ou compensação reconvenção, ao abrigo do art.º 266.º, n.º2, al. c) do CPC, por entender que não estariam reunidos os requisitos do 847.º do CPC – e o tribunal não conheceu (legitimamente, à época) da questão, tendo a 1ª instância decidido que a questão seria de conhecer em momento próprio, quando houvesse prolação de decisão de mérito sobre a acção interposta."

[MTS]


16/09/2025

Jurisprudência 2024 (232)


Competência material;
contrato de concessão; incumprimento contratual


1. O sumário de RP 11/12/2024 (79534/24.2YIPRT.P1) é o seguinte:

Compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção para pagamento/condenação em quantia pecuniária, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação do réu no pagamento de quantias devidas pela utilização desses parques, a saber, taxas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar,

A questão a avaliar nesta acção é de natureza essencialmente jurídica, relevando, em termos fácticos, o próprio conteúdo do primeiro articulado e os contornos do pedido e da causa de pedir aí desenhados.

Ora, impõe-se desde logo avançar que intende a A. cobrar ao Réu um valor máximo diário pelos períodos de utilização de estacionamento não pago, em razão da exploração de parques de estacionamento ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com a Câmara de Matosinhos, sendo esta quem define as regras dessa exploração.

É que a exploração e concomitante cobrança pela A., respeitando a domínio público, é feita ao abrigo do disposto no contrato de concessão celebrado com a edilidade, sendo que bem assim as tarifas cobradas aos utentes são definidas por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 – II Série (com sucessivas alterações).

A questão a decidir foi já analisada com acerto, adequação técnica e coincidência de solução, pelo tribunal da Relação de Lisboa, nos Acórdãos de 20.10.2009 (6149/08.4YIPRT.L1-7) e 22.04.2010 (1950/09.4TBPDL.L1-2), ambos em http://www.dgsi.pt.

Aqui se convoca, desde logo, o excerto daquele primeiro citado: 

«o contrato de concessão celebrado entre o Município (...) e a recorrente é um contrato de direito público, nos termos do qual o Município (...), munido de jus imperii, adjudicou àquela, a concessão, exploração, gestão e manutenção de quarenta e dois parquímetros na cidade (…). Sobre esta matéria, compete à Câmara deliberar no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, nos termos do art. 64.º n.º 1 alínea u) e n.º 6.º alínea a) da Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro (Lei das Autarquias Locais), alterada pela Lei n.º 5-A/2002 de 11 de Janeiro.

Considerando a causa de pedir nesta acção, o que está indubitavelmente em causa envolve a relação jurídica existente entre o Município (…) e a recorrente, na medida em que tem, na sua génese, a cobrança de uma taxa sancionatória diária pelo estacionamento não pago pelo recorrido. A este direito de cobrança arroga-se a recorrente, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela concessão celebrada.

Se bem que se possa alegar que a relação estabelecida entre a recorrente e um particular difere e dispõe de uma natureza diferente daquela existente entre a recorrente e a edilidade (…), a verdade é que os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de actos de gestão pública.

Com efeito, o contrato de concessão outorgado entre a recorrente e o Município (…), rege-se pelo conteúdo das suas disposições e pelas disposições constantes do Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada daquele Município, no qual se encontram previstos, designadamente, as taxas devidas pelo estacionamento, a possibilidade daquele Município, nos termos da lei geral, concessionar o estacionamento de duração limitada a empresa pública ou privada, bem como a fiscalização do regime previsto no aludido Regulamento e ainda as situações que configuram ilícitos de mera ordenação social e respectivas sanções.

Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do contrato de concessão celebrado, a ora recorrente se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua actuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respectivas regras e condições.

Assim, contrariamente ao que sucede no âmbito de relações contratuais entre particulares, as quais se regem pelo princípio da liberdade contratual e que dizem respeito a actividades de direito privado susceptíveis de ser desenvolvidas por particulares, no caso em apreço, a recorrente, na relação jurídica que estabelece com o recorrido, surge investida de prerrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas e aplicar-lhe as sanções especificamente previstas no Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada e que consistem na aplicações de coimas (...).

Temos, assim, que a acção se reporta a um litígio no âmbito de uma relação jurídica materialmente administrativa, submetida, por convenção das partes, a um regime substantivo de direito público, pelo que, nos termos da alínea f) do art. 4.º do E.T.A.F, são competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos.»

E, com referência já ao segundo Acórdão, «O que ocorre é que as relações contratuais estabelecidas entre o município, ou o concessionário, e os utentes do estacionamento de duração limitada tarifada, têm, (…) um regime substantivo parcialmente regulado por normas de direito administrativo que especificamente os têm em vista, a saber, as contidas no referido Regulamento, que dá execução ao Decreto-Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.

Estabelecendo tal regime, inclusive, infracções de natureza contra-ordenacional, com atribuição, para além de funções gerais de fiscalização do cumprimento do Regulamento, das funções de registo e notificação nessa matéria contra-ordenacional, à concessionária, que alegou actuá-los.

Com o que se recai na previsão intermédia do art.º 4º, n.º 1, alínea f) do ETAF.»

Temos estas considerações como perfeitamente cabíveis na situação decidenda.

Confrontem-se já, nos termos do Regulamento citado, os meios coercivos e as interdições, como claras manifestações do poder do Estado, estabelecidos no quadro do ordenamento/regime do estacionamento de duração limitada, em cujo contexto a Apelante intervém e de cujo quadro nunca enjeitou aproveitar-se, como se vê, claramente, por exemplo do valor reclamado.

Tem-se assim por simplificadora e enviesada a tentativa de estreitar e converter a relações tão só de direito privado a complexa relação constituída através da concessão.

Sempre a «concessão» remete a dois domínios de intervenção: o externo, do concessionário e o interno e essencial, do concedente, já que se reconduz a uma autorização ou permissão de uma actividade “em vez de outrem”. Num tal contexto, o concessionário permanece obrigado pelos contornos e conteúdos do que lhe é atribuído. E, de entre estes, vários ultrapassam as meras intervenções privadas, reconduzindo-se: a interdições, ao exercício próprio de actividade sancionatória e à regulação unilateral e não negociada, antes exercida em nome da legitimidade democrática e de um poder de soberania de natureza executiva.

Mais incontestável se patenteia o desequilíbrio, a natureza realmente não contratual da relação com o utente, na tese doutrinal da recorrente, que convoca uma actuação de facto geradora de uma relação que tem pouco de contratual e mais de mero enquadramento da realidade ou do evento consumado, que denomina de «relação contratual de facto». Nessa medida, o utente nem estabelece um contrato comum, sendo que antes usa o espaço de estacionamento com determinados efeitos jurídicos inerentes pré-estabelecidos em Regulamento Municipal, para mais quando a entidade cobra antes que um preço uma taxa, já que tem por detrás de si um conjunto de mecanismos e regras impositivas emanadas de um órgão da administração local e não um qualquer processo de formação da vontade negocial.

Conclui-se, pois, que o objecto da presente acção se origina no quadro de uma relação jurídica materialmente administrativa, sem que a atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada convole a relação para o domónio jus privatístico, já que o regime que regula os contornos da actividade cedida se submetem, manifestamente, a um estatuto substantivo de direito público.

Estatui a alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção aplicável à presente acção – que é a emergente da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro: «Artigo 4.º – Âmbito da jurisdição – 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […] f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».

Nesta norma se inserem as condições relativas ao pedido e à causa de pedir da presente acção. O uso ou benefício de aparcamento concessionado cujas prestações se pretende cobrar coercivamente é regulado por normas de direito público, regras que revelam a autoridade do Estado e a sua força reguladora e impositiva.

Neste mesmo sentido decidiu já o Tribunal de Conflitos, por Acórdão de 25-11-2010, na base de dados da dgsi, com o seguinte Sumário: I -A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial. II - Nos termos do artigo 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são os competentes para o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. III - Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido. IV - Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias, devidas pela utilização desses parques.

Aqui nos remetemos, data venia, àquela decisão:

«Conforme ensina o Prof. Manuel de Andrade, a competência do tribunal "afere-se pelo quid disputatum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum" (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91).

Por sua vez, o Tribunal dos Conflitos e a Secção de Contencioso Administrativo do STA têm reiteradamente afirmado que a competência em razão da matéria se afere em função dos termos em que a acção é proposta - cfr, a título de exemplo, os acórdãos do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361) e de 2007.05.17 (proc. n° 5107), e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. n° 31478), de 96.05.28 (proc. nº 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. n° 43973), de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024).

Neste caso, atentos os termos em que a acção é instaurada, julgamos ser de concluir que a competência para dela conhecer pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente aos tribunais tributários.

A Autora, B…, SA, na qualidade de concessionária, por força de vários contratos de concessão celebrados com a Câmara Municipal de Ponta Delgada para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros colectivos, em zonas de estacionamento de duração limitada, na cidade de Ponta Delgada, pretende, através da acção, que a Ré, C… Lda, seja condenada a: Pagar-lhe a importância de 421,72 euros, acrescida de juros legais, correspondente aos montantes devidos pelo estacionamento de uma viatura da Ré em zona reservada para esse efeito, abrangida pela concessão.

Funda este pedido no facto de a Ré não ter procedido, em várias datas, que indica, ao pagamento do tempo de utilização do lugar de estacionamento.

Atentos os termos da própria petição e os documentos juntos com a mesma, estamos perante a utilização, assegurada pela Câmara, de um bem do domínio público (os lugares de estacionamento), mediante o pagamento de certa prestação. A prestação patrimonial correspondente ao uso de um bem como este constitui uma taxa, em conformidade com o disposto nos art°s 30, nº 2 e 4°, n° 2, da Lei Geral Tributária aprovada pelo DL n° 398/98, de 17.12. Essa taxa encontra-se prevista na alínea g) do art° 19º da Lei n° 42/98, de 06.08 (Lei da Finanças Locais), e, no que toca a situação concreta em análise, este expressamente contemplada nos artºs 24° e 25° do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada[1] de Ponta Delgada, publicado no DR II série, de 2004.06.01, n° 128, apêndice 71/2004 (cfr. fls. 34 a 39 dos autos).

Neste caso, não lhe e retirada essa natureza pelo facto de ser uma entidade privada - a Autora - que procede a respectiva cobrança. Tal cobrança só ocorre por força da referida concessão de fornecimento, instalação e exploração de vários parquímetros na cidade de Ponta Delgada, sendo que a Câmara não deixa de recolher a receita nos seus cofres, ainda que parte (cfr. fls. 25 e 26 dos autos).

A questão que aqui este em causa tem, assim, natureza fiscal, na medida em que, segundo uma tese ampliativa, a mais seguida na jurisprudência (em oposição a uma tese restritiva), para decidir o litigio há que fazer a interpretação e aplicação de normas de direito fiscal sobre matéria respeitante ao exercício da função tributária da Administração Pública Cfr., a este propósito, Cons. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 2006, I volume, p. 220 e 221, onde são citados vários arestos da Secção de CA deste STA nesse sentido. E há, então, que acrescentar que, subjacente ao litígio, há uma relação jurídica tributária, entre a Câmara e a Ré (muito embora aquela não intervenha na acção), atenta a definição contida no art° 1°, n° 2, da Lei Geral Tributária, nos termos da qual consideram-se relações juridico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas.

Os Tribunais competentes para conhecer da acção, são, assim, em nosso entender, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente, os tribunais tributários, face ao disposto no art° 1°, n° 1, do ETAF. (…)

A competência dos tribunais comuns tem natureza residual, no sentido em que, nos termos constitucionais e legais Cfr. Artigo 211º («1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais»), da Constituição da República Portuguesa, e art. 66 («São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outras ordem jurisdicional»), do Código de Processo Civil. Em termos idênticos a este último preceito dispõe o art. 18, nº 1, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais., se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais (G. Canotilho/V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. rev., 812). Aos tribunais administrativos, por sua vez, cabe, segundo o preceito constitucional e legal, apreciar os processos «que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas» Cfr. Artigo 212º («… 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), da Constituição da República Portuguesa; e artigo 1º («1. Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais..

E, na falta de clarificação legislativa sobre o conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.

Assim, temos que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» [J.C.Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58].

E importa notar, ainda, que, para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir) Neste sentido, veja-se, p. ex. o acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 9.6.10 (Pº 05/10), e a demais jurisprudência e a doutrina, nele citadas.»

No caso sujeito, em causa a concessão pelo Município de Matosinhos à A., para exploração, gestão e manutenção de parques de estacionamento naquela cidade, nos termos previstos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada já citado…

Ora, por via da concessão, ficou a A. obrigada, perante a concedente, a assegurar o funcionamento dos referidos parques de estacionamento em conformidade com o referido Regulamento, cabendo-lhe, em consequência, exigir o pagamento das “taxas”, nele previstas (cfr. artigo 4º do Regulamento) e fiscalizar essa utilização pelos interessados, como naquele igualmente se prevê (16º, última parte do regulamento), sendo certo que vem reclamado o valor integrante da taxa sancionatória prevista no artigo 19º do mesmo Regulamento.

Assim, é de concluir que, por via da concessão, a A. recorrente foi investida de um poder público, para a realização de um interesse público, legalmente definido como sendo o de solucionar o estacionamento no perímetro urbano da cidade de Matosinhos.

Donde o conflito a que respeitam os presentes autos respeita a uma relação jurídica administrativa, segundo o conceito dela acima indicado, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o citado art. 1, do ETAF."

[MTS]

15/09/2025

Jurisprudência 2024 (231)


Processo de divórcio;
pedidos cruzados; dever de pronúncia


1. O sumário de RE 19/12/2024 (5364/22.2T8STB.E1) é o seguinte

Se o Tribunal decreta o divórcio com o fundamento invocado pelo autor não tem que discutir e apreciar o fundamento invocado pela Ré, que assim fica prejudicado, inexistindo, por isso, omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), conjugado com o artigo 608.º, n.º 2, ambos do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4. Apreciação do recurso:
4.1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia:

"Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC que “É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Defende a recorrente/Ré que o Tribunal violou este preceito por não ter apreciado o fundamento do divórcio que invocou: rutura da vida em comum com base na violação dos deveres conjugais pelo autor, limitando-se a apreciar o fundamento invocado pelo autor.

Vejamos.

O Tribunal deu como provados os factos invocados pelo autor, considerou preenchido o requisito da separação de facto há mais de um ano, e, por conseguinte, decretou o divórcio entre as partes e dissolvido o casamento.

A Ré não contesta a verificação deste fundamento, entende, porém, que o Tribunal devia ter decretado o divórcio com base na violação dos deveres conjugais – fundamento que invocou, em sede de contestação – e não como foi, com base na separação de facto das partes, pois diz “Tendo já aqueles factos sido objeto de prova e sido apreciados, e considerando o disposto na lei processual civil quanto ao alcance das decisões transitadas em julgado, e por razões de economia processual, para além do desejo da Apelante de justiça material/substantiva, tem esta todo o interesse em que o divórcio seja decretado com base nos factos por si alegados e, a seu ver, provados”.

Ora, conforme se refere no Acórdão do STJ de 12-12-2023 (Proc. 2800/20.6T8FAR.E1.S1, o referido artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC está intimamente ligado ao disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)”. Por conseguinte, estando já provado um fundamento do divórcio, ficou prejudicado o conhecimento de outros fundamentos do divórcio, designadamente do invocado pela Ré: rutura da vida em comum com base na violação dos deveres conjugais. E isto, independentemente de o pedido da autora consubstanciar ou não uma reconvenção e dever ser ou não admitido como tal, pois conforme ensina Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com/2024/10/jurisprudencia-2024-28.html “quando a reconvenção pretende obter o mesmo efeito jurídico que o autor pretende conseguir (artigo 266.º, n.º 2, alínea d), do CPC), a reconvenção só é apreciada no caso de o pedido do autor não ser considerado procedente. A bem dizer, essa reconvenção é sempre, pela sua natureza, uma reconvenção subsidiária. P. ex.: se, numa acção de reivindicação, o réu deduz um pedido reconvencional em que pede o reconhecimento da sua propriedade sobre o mesmo bem e a restituição deste bem, este pedido reconvencional só vai ser apreciado se o pedido de reivindicação formulado pelo autor for julgado improcedente.

Isto é: o tribunal não coloca em comparação (ou em "competição") o pedido do autor e o pedido reconvencional e não aprecia em simultâneos ambos os pedidos antes de considerar procedente apenas um deles. O que o tribunal vai fazer é, primeiro, apreciar o pedido (de reivindicação) do autor e, para o caso de este ser considerado improcedente, então apreciar o pedido (de reivindicação) do réu. O mesmo vale para a hipótese de, numa ação de divórcio, ser formulado um pedido reconvencional de divórcio”.

Note-se que com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, o divórcio sem consentimento do outro cônjuge “deixou de se pautar pela exigência de prova de culpa de um dos cônjuges (para quem consequências patrimoniais negativas eram decretadas), passando a admitir-se como fundamento de divórcio a cláusula geral qualquer facto que mostre a ruptura definitiva do casamento (constante do actual artigo 1781.º, alínea d), Código Civil)”. - Beatriz Macedo Vitorino – Processos Especiais, Vol. I, pág. 191. Ou como refere Guilherme de Oliveira in A Nova Lei do Divórcio https://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/A-nova-Lei-do-Divo%CC%81rcio.pdf “A Lei n.º 61/2008 abandonou a relevância da culpa – tanto para fundamentar o divórcio, como para regular as consequências patrimoniais da dissolução.

Por conseguinte, não existe qualquer interesse relevante em apurar se para além dos motivos invocados pelo autor, que foram dados como provados e que conduziram a que fosse decretado o divórcio, também se demonstrou o fundamento invocado pela Ré.

Neste sentido pronunciou-se o acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 07-12-2016 (proferido no processo n.º 1917/15.3T8CSC.L1-8) citado na sentença, com que se concorda e onde se decidiu que “O que o recorrente pretende é que o tribunal a quo tivesse conhecido da factualidade por si invocada, descrevendo os vários episódios da vida em comum com a Autora e das condutas que levaram à rutura do casamento. Todavia, para efeito do presente processo, esses factos são irrelevantes na medida em que são desnecessários para demonstrar que nem Autora nem Réu têm o propósito de reatar a vida em comum.

Nos termos gerais de direito, nada obsta a que o Réu venha a propor acção peticionando indemnização da Autora por violação dos deveres conjugais no decurso do matrimónio, o mesmo se podendo dizer, de resto, em relação à Autora. E em tal acção serão, aí sim, discutidos e sujeitos a prova e a apreciação jurídica os factos tendentes a fundamentar eventual indemnização que venha a ser peticionada, quer pelo ora Réu quer pela ora Autora.

Mas não na presente acção, na qual, insiste-se, os fundamentos para o divórcio são os previstos nas alíneas a) a d) do art. 1781º do Código Civil."

[MTS]
 

12/09/2025

Jurisprudência 2024 (230)


Processo de execução;
dívidas do casal; incidente de comunicabilidade*


1. O sumário de RG 18/12/2024 (901/24.0T8GMR-B.G1) é o seguinte;

I - O incidente de comunicabilidade, previsto nos arts. 741 e 742 do CPC, constitui o meio processual adequado a permitir o prosseguimento da execução por uma dívida comum do casal também contra o cônjuge do executado, quando apenas este figura do título como devedor.

II - Se o incidente for procedente, qualificando-se a dívida como comum do casal, ocorre um alargamento da eficácia subjetiva do título que inicialmente serviu de base à execução, passando a haver uma situação de litisconsórcio necessário superveniente entre o executado (inicial) e o seu cônjuge.

III - Em decorrência, a execução prossegue, em primeira linha, sobre os bens comuns e, subsidiariamente, sobre os bens próprios de qualquer um dos devedores.

IV - Não pode ser qualificada como comum do casal uma dívida constituída depois de o facto que determina a dissolução do casamento produzir os efeitos patrimoniais.

V - A assinatura aposta, para valer como aval, num formulário de livrança que, nesse momento – o da subscrição e entrega a outrem –, não está preenchido quanto aos seus elementos (valor, data de emissão, local e data de pagamento), mas que poderá vir a sê-lo, em determinadas circunstâncias, de acordo com critérios previamente definidos entre o portador (credor) e os potenciais vinculados cambiariamente, sejam estes o subscritor/emitente (devedor) e os avalistas (garantes), não vale, em termos técnico-jurídicos, como aval, mas como subscrição para aval.

VI - No hiato compreendido entre a subscrição para aval e o ato de preenchimento, o portador tem uma mera expetativa de aquisição do direito de crédito cambiário, a qual é equiparada à do credor sob condição suspensiva.

VII - Se da interpretação da convenção de preenchimento resultar que a vontade das partes foi no sentido de a produção dos efeitos decorrentes da verificação do evento condicionante do preenchimento não retroagir a momento anterior, designadamente ao da subscrição para aval, o crédito do portador sobre o avalista apenas se constitui quando o título se forma qua tale.

VIII - Em tais circunstâncias, o património comum do casal que foi constituído pelo avalista executado e pela requerida no incidente de comunicabilidade não responde pela dívida resultante do aval, se no momento do preenchimento da livrança já estavam cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, ainda que por facto ulterior à subscrição para aval.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1).1. [...].

Em jeito de enquadramento, começamos por dizer que a questão surge nesta sede incidental uma vez que o Recorrido alegou, no requerimento executivo, que a dívida exequenda, apesar de ter sido contraída apenas pelo executado – o único dos (ex-)cônjuges que, em conformidade, consta do título como devedor e que, por isso, é também o único que tem legitimidade passiva inicial para a ação executiva, ut art. 53/1 do CPC –, é comunicável ao património comum do casal que foi constituído por este e pela Recorrente, pelo que, nos termos do direito substantivo, tendo vigorado no casamento o regime supletivo da comunhão de adquiridos, respondem por ela, em primeira linha, os bens comuns e, subsidiariamente, na falta ou insuficiência daqueles, os bens próprios de cada um dos (ex-) cônjuges (art. 1695/1 do Código Civil).

O meio processual adequado a pôr termo a este desfasamento entre o regime processual – que apenas permite a propositura da ação executiva contra o (ex-)cônjuge que consta como devedor do título – e o regime substantivo – nos termos do qual, alegadamente, ambos os (ex-cônjuges) são responsáveis pelo pagamento da dívida – é, precisamente, o denominado incidente de comunicabilidade da dívida constante de título diverso de sentença, previsto nos arts. 741 e 742 do CPC vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06. É através dele que o legislador dá “expressão processual” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 627) ao regime substantivo da responsabilidade por dívidas comuns, o qual contém solução quer para o caso de o regime de bens comportar uma massa de bens comuns, como sucede nos regimes legais ou convencionais de comunhão (art. 1695/1 do Código Civil), quer para o caso de o regime de bens ser o da separação (art. 1695/2 do Código Civil). Compreende-se, por esta razão, que se afirme (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil cit., p. 627) que, ao contrário do regime previsto no art. 740 do CPC, a observar nas hipóteses de execução movida contra um dos cônjuges (por dívida própria) em que sejam penhorados bens comuns – e que, por isso, apenas faz sentido se existir um património comum –, o incidente de comunicabilidade da dívida “é aplicável qualquer que seja o regime de bens do casamento.”

1).2. O incidente em questão pode ser suscitado tanto pelo exequente (art. 741 do CPC) como pelo cônjuge executado (art. 742 do CPC), interessados em alegar a comunicabilidade da dívida, contra o cônjuge do executado.

É pressuposto comum às duas hipóteses que a dívida conste de título diverso de sentença (art. 741/1 e 742/1). Significa isto, a contrario, que se o título executivo for uma sentença, não deve ser admitida, em sede executiva, a alegação da comunicabilidade. Nesse caso, sendo a dívida comum, restará ao credor a possibilidade de propor nova ação declarativa contra o cônjuge não condenado, tendente a demonstrar a comunicabilidade da dívida (RG 9.05.2019, 204/16.4T8CHV-D.G1, António Barroca Penha) e ao cônjuge condenado a de reclamar, no momento da partilha, a compensação devida ao seu património próprio pelo pagamento de uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges (cf. art. 1689/1 do Código Civil).

Compreende-se esta limitação quando se considere que qualquer um dos interessados já poderia ter suscitado a questão da comunicabilidade da dívida na prévia ação declarativa, conseguindo nela a obtenção de título executivo contra ambos os cônjuges: o credor demandando não apenas o devedor, mas também o seu cônjuge (art. 34/3 do CPC); o devedor, demandado isoladamente, mediante a intervenção principal provocada do seu cônjuge suportada na alegação e prova dos pressupostos da comunicabilidade da dívida (art. 316 do CPC). Sendo esta a ratio da limitação, foi já entendido que, não obstante a letra da lei, “se os termos do processo declarativo não permitirem ou não se compaginarem com este incidente, como sucede no inventário, a comunicabilidade pode ser admitida na execução, mesmo que o título executivo seja a sentença, neste caso a homologatória da partilha” (RC 3.12.2019, 342/09.0TBCTB-J.C1, Carlos Moreira).

É também pressuposto comum às duas hipóteses que a execução tenha sido “movida apenas contra um dos cônjuges”, o que está em conformidade com a própria razão de ser do incidente, que mais não visa, nos termos já referidos, que o alargamento do âmbito subjetivo do título executivo (Maria José Capelo, “Os pressupostos processuais gerais na ação executiva”, Themis, ano IV, n.º 7, 2003, pp. 79-104), de modo a conferir legitimidade passiva subsequente ao cônjuge do executado.

1).3. Centrando a atenção nos termos do incidente quando suscitado pelo exequente, resulta da parte final do n.º 1 do art. 741 do CPC que o pedido de comunicabilidade da dívida pode ser formulado num de dois momentos: ou no próprio requerimento executivo ou subsequentemente à apresentação deste, até ao início das diligências para venda e execução, sendo que, neste caso, deve constar de requerimento autónomo, a autuar por apenso. Conforme explicam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 627), “não se trata de conceder ao exequente uma opção quanto ao momento de alegação da comunicabilidade da dívida, mas antes de permitir a sua alegação superveniente (em relação ao momento da apresentação do requerimento executivo) quando o exequente tenha tido um conhecimento superveniente dessa comunicabilidade (nomeadamente, porque só durante a execução o exequente se apercebeu de que o executado era casado).”

No requerimento com dê origem ao incidente, o exequente tem o ónus de alegar, de forma substanciada, os factos de que depende a qualificação da dívida como comum – v.g., factos que permitam suportar um juízo valorativo no sentido de a dívida ter constituído um “encargo normal da vida familiar”, ter sido contraída “em proveito comum”, estar “nos limites dos seus [do cônjuge] poderes de administração” ou ter sido contraída no “exercício do comércio” –, assim observando a regra geral que consta do art. 5.º/1 do CPC.

A este propósito, é de notar que, como é entendimento jurisprudencial unânime, “[o] proveito comum do casal não se presume, tendo o autor de o provar, alegando e comprovando os factos que o traduzem” (STJ 12.07.2005, 05B1710, Ferreira Girão); trata-se de “uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito, consistindo a primeira em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida, enquanto a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída no interesse comum do casal, preenchendo o conceito legal”, pelo que, assim sendo, “a expressão legal proveito comum traduz-se num conceito de natureza jurídica a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino” (STJ 11.11.2008, 0B3302, Alves Velho; RC 21.10.2014, 582/12.4TBCTB-A.C1, Arlindo Oliveira).

Na sequência, o cônjuge do executado é citado para, no prazo de 20 dias, declarar se aceita a comunicabilidade da dívida, baseado no fundamento alegado, com a cominação de que, se nada disser, a dívida será considerada comum, sem prejuízo da oposição que contra ela venha a deduzir (art. 741/2).

Uma vez citado, o cônjuge do executado pode tomar uma de várias atitudes: (i) nada declarar, o que tem como consequência, por força de uma confissão ficta, a qualificação da dívida como comum, assim se constituindo “automaticamente um título executivo extrajudicial contra o cônjuge, que passa, com base nele, a ser também executado” (Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, 2017, pp. 259-260); (ii) declarar que aceita a comunicabilidade da dívida, o que produz o efeito referido e, ademais, valendo como confissão expressa feita à parte contrária, tem efeitos externos (arts. 352, 355/3 e 358/2 do Código Civil) (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., pp. 259-260); (iii) impugnar a comunicabilidade da dívida, o que se admite que possa fazer também em oposição à execução (Marco de Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 365) ou, tacitamente, através de um pedido de separação de bens comuns que, entretanto, tenham sido penhorados (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., p. 260).

Na última hipótese, que foi a ocorrida no caso que nos ocupa, seguem-se os termos gerais dos incidentes da instância (arts. 292 a 295 do CPC). Se, a final, a dívida for qualificada como comum, os efeitos serão semelhantes aos previstos na primeira hipótese: a execução prosseguirá também contra o cônjuge, que adquire, por esta via, o estatuto de executado, assim ficando composto um litisconsórcio necessário superveniente (Rui Pinto, A Ação Executiva, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2020, p. 528). A execução deverá prosseguir, em primeira linha, sobre os bens comuns e, subsidiariamente, sobre os bens próprios de qualquer um dos cônjuges. Se antes da qualificação tiverem sido penhorados bens próprios do executado inicial, este poderá requerer a respetiva substituição por bens comuns.

Note-se que a decisão final, que apenas produz efeitos dentro do processo quanto à qualificação da dívida, por força da regra geral da 1.ª parte do n.º 2 do art. 91 do CPC, não constitui, só por si, título executivo, posto que nada declara quanto à existência e valor da obrigação exequenda. Daí que seja entendido que, nestes casos, passa a haver um complexo documental (Rui Pinto, idem), formado pelo título executivo diverso de sentença apresentado pelo exequente e pela decisão judicial de comunicação da dívida ao cônjuge não executado (inicial) e, inerentemente, de extensão da responsabilidade subjetiva pela dívida. No mesmo sentido, na jurisprudência, RG 20.04.2020, 5281/17.8T8GMR-B.G1, José Alberto Moreira Dias. De modo aproximado, Nuno Andrade Pissarra (“O incidente de comunicabilidade de dívidas conjugais”, O Direito, ano 146.º (2014), III, pp. 737‑787), escreve que “[a] decisão do incidente não forma um novo título executivo contra o cônjuge do executado, antes alarga a eficácia subjetiva do título que inicialmente serviu de base à execução. O facto constitutivo da dívida comum encontramo‑lo no título inicial e a decisão do incidente nunca é condenatória.”

Estas considerações permitem-nos uma primeira conclusão: o incidente tem início com o requerimento (inserido no requerimento executivo ou apresentado autonomamente) do exequente e, em caso de procedência, culmina com a decisão de qualificação da dívida como comum. Não sendo esta, portanto, uma pré-existência, afigura-se impróprio, salvo o devido respeito, que é elevado, que o tribunal, na decisão, em lugar de julgar procedente o incidente de comunicabilidade, julgue improcedente o “incidente de impugnação da comunicabilidade.” Este trata-se, porém, de um mero pormenor, que não prejudica em nada a interpretação da decisão recorrida e a compreensão do seu sentido decisório (a qualificação da dívida como comum."

*3. [Comentário] Por razões evidentes só se deu relevância ao aspecto processual do incidente de comunicabilidade da dívida, mas o (bom) acórdão da RG tem interesse em muitos outros aspectos.

MTS

11/09/2025

Jurisprudência 2024 (229)


Processo de inventário; articulado superveniente;
remessa das partes para os meios comuns


I. O sumário de RG 18/12/2024 (49/23.5T8VNC-A.G1) é o seguinte: 

1 - Tendo o cabeça de casal declarado a inexistência de testamento efetuado pelo inventariado, a afirmação da sua existência e a sua junção aos autos de inventário por outro interessado é ainda possível após o decurso do prazo para impugnação daquelas declarações, atento o disposto no art.º 568.º, alínea d), do C. P. Civil.

2 - Apresentado o testamento, se for questionada a capacidade do testador, a apreciação dessa questão permite a aplicação do disposto no art.º 1092.º do C. P. Civil e não o disposto no art.º 1093.º do mesmo diploma.

3 - Não pretendendo qualquer dos interessados questionar a validade desse testamento, como expressamente afirmaram, não podem os autos de inventário prosseguir sem que tal testamento seja considerado.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as de saber se pode ordenar-se a remessa dos interessados para os meios comuns tendo em vista a apreciação da questão relativa à validade / invalidade do testamento, intimando-se as partes a propor a ação respetiva e, na ausência de tal propositura, determinar o prosseguimento dos autos sem que o testamento junto e realizado por um dos inventariados seja considerado nos termos da partilha a realizar.

III - Do objeto do recurso:

A apreciação da questão suscitada nestes autos de recurso de apelação exige que este Tribunal reflita sobre duas questões prévias.

A primeira prende-se com natureza do despacho proferido em 06/03/2024 e que motivou a apresentação da apelação.

Ao determinar o prosseguimento dos autos, este despacho, embora de forma claramente implícita, fez cessar a suspensão da instância determinada por despacho de 02/12/2023, tendo ainda esclarecido em que termos é que tal prosseguimento se faria, desconsiderando o testamento apresentado pela interessada recorrente. [...]

A segunda questão prévia que cumpre esclarecer é que o Tribunal a quo não se pronunciou diretamente sobre a questão da tempestividade da apresentação do testamento e, com esta, sobre a tempestividade da impugnação das declarações do cabeça de casal (este declarou que o inventariado não tinha deixado testamento e a interessada recorrente veio alegar, para além do prazo de impugnação daquelas declarações, que este existia, juntando-o e alegando factos relativos à tempestividade da sua junção, sobre os quais nenhum despacho recaiu).

Porém, a partir do momento em que o Tribunal entendeu como relevante para estes autos a existência do testamento, remetendo as partes para os meios comuns e suspendendo a instância, ainda que a termo, para que se apreciasse a sua validade / invalidade, também de forma implícita e embora sem qualquer fundamentação estava a atende-lo para a tramitação destes autos. [...]

É inequívoco que, quando foi apresentado, já havia decorrido o prazo para que a interessada EE apresentasse impugnação às declarações apresentadas pelo cabeça de casal na parte em que este declarou inexistir testamento outorgado pelo inventariado (art.º 1104.º, n.º 1, alíneas c), do C. P. Civil).

É também inequívoco que a falta de impugnação das suas declarações tem hoje, no processo de inventário, efeito preclusivo.

Uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar uma única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, em face dos factos alegados no requerimento inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, incluindo a pronúncia sobre as suas declarações e sobre os documentos apresentados. Tal corresponde a um verdadeiro ónus e não uma mera faculdade”, nas palavras de António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 603. Neste sentido, vide também o recente Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 16/05/2024, da Juiz Desembargadora Fernanda Proença Fernandes, proc. 172/22.3T8CBT-A.G1, in www.dgsi.pt 

Dir-se-ia assim que a requerente EE não estava já em tempo quando colocou em causa as declarações do cabeça de casal quanto à inexistência de testamento realizado pelo inventariado.

No entanto, resulta da lei que este efeito preclusivo tem como exceções o disposto no art.º 568.º do C. P. Civil. Ora, a inexistência de testamento apenas pode ser demonstrada por documento escrito, ou seja, por certidão emitida pela Conservatória dos Registo Centrais, pois que a esta compete organizar um índice geral de testamentos, por ordem alfabética dos nomes dos testadores, com base nas fichas recebidas dos Cartórios (art.º 188.º, n.º 1, alínea a), do DL 207/95, de 14/08, com acesso on line nos termos da Portaria 182/2017, de 31/05). [...]

A aplicação do regime do disposto no art.º 588.º do C. P. Civil resulta do regime do art.º 549.º, n.º 1, do mesmo diploma e é expressamente admitida por António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 606. 

Assim, a alegação deste novo facto constitutivo do direito da reclamante seria ainda admissível se este fosse de conhecimento superveniente, como esta alegou.

O cabeça de casal insurgiu-se contra esta alegação, afirmando que esta deveria ter encetado as buscas para localizar o testamento mais cedo. Esta afirmação não colhe, pois que, desde o início destes autos, se apresentou ele próprio como cabeça de casal, sendo suas as declarações que deram início a estes autos e, assim, era a ele que competia ter efetuado essa busca e não à interessada EE, ainda que seja ela a única beneficiária do testamento.

O regime da admissibilidade do articulado superveniente permitiria pois, se de outra forma não pudesse ser considerado, que a interessada apresentasse o testamento outorgado pelo inventariado, dessa forma infirmando as declarações do cabeça de casal quanto à sua inexistência.

Aqui chegados, centremo-nos na questão efetivamente em discussão.

Existe fundamento para remeter as partes para os meios comuns, prosseguindo os autos como se o testamento não existisse?

A decisão proferida não tem qualquer sustentação jurídica.

Em primeiro lugar, porque não se verificavam os pressupostos do art.º 1093.º do C. P. Civil.

Alegando uma das interessadas que existia um testamento que a tornava herdeira da quota disponível da herança do inventariado e afirmando o cabeça de casal a sua invalidade por falta de capacidade daquele testador, a dimensão dos direitos sucessórios de cada um dos herdeiros deste inventariado dependia da validade ou invalidade daquele testamento.

E, assim, a norma aplicável é o art.º 1092.º do C. P. Civil e não o art.º 1093.º do mesmo diploma que foi convocado.

Dispõe a primeira norma citada que se na pendência do inventário se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos interesses diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, deve o juiz determinar a suspensão da instância.

A remessa para os meios comuns está reservada, apenas, para outras questões prejudiciais que não respeitem à admissibilidade do processo de inventário ou à definição de direitos dos interessados na partilha, como resulta expressamente do art.º 1093.º do C. P. Civil.

Como dizem António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 576, relativamente a este art.º 1092.º do C. P. Civil, “a conexão com o art.º 1093.º permite concluir que qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados diretos na partilha terá de ser decidida no próprio processo, não podendo os interessados ser remetidos para os meios comuns. A lei apenas concede a possibilidade de suspensão da instância do inventário, aguardando o que, com eventuais reflexos na resolução de tais questões, esteja sob discussão noutra ação pendente”. 

Ora, a questão da validade ou invalidade do testamento reporta-se à definição dos direitos interessados na partilha (saber se há ou não que considerar que a quota disponível da herança do inventariado pertence à interessada EE). A ação que versa sobre a anulação do testamento é precisamente um dos exemplos dados pelos autores citados para o preenchimento da alínea b) do n.º 1 do art.º 1092.º do C. P. Civil.

Assim, apenas se poderia ter perspetivado a possibilidade de suspensão da instância e não a remessa das partes para os meios comuns.

Mas ainda que assim não fosse, uma segunda razão imporia decisão diversa daquela que foi tomada, quanto ao prosseguimento dos autos.

Admitamos que se consideraria correta a remessa das partes para os meios comuns, sabendo o Tribunal que nem o cabeça de casal, nem a reclamante pretendiam instaurar, nos meios comuns, a ação em que se discutiria a validade / invalidade do testamento.

Ora, estando junto o testamento, tendo o Tribunal determinado o prosseguimento dos autos, por decisão que não foi colocada em crise por qualquer das partes, tal prosseguimento implica necessariamente que os autos prossigam considerando o testamento que foi efetuado pelo inventariado e que não foi anulado por falta de capacidade do testador, a partir do momento em que foi já declarado que os interessados que beneficiariam dessa anulação não têm interesse em obtê-la.

Não tem nos autos aplicação o disposto no art.º 1105.º, n.5, do C. P. Civil, pois que não está em causa uma reclamação quanto aos bens a partilhar. Só aqui é que, quando as partes são remetidas para os meios comuns relativamente à existência de determinados bens, a partilha prossegue quanto aos demais bens, excluindo-se aqueles sobre os que há discussão.

Pensamos que foi este o raciocínio feito no despacho aclarador, sem consistência lógica ou jurídica, pois que não sendo discutida nos meios comuns a invalidade do testamento, este tem naturalmente que se pressupor válido (e não pode ser, sem mais, excluído do inventário).

Não tendo sido colocada em causa a decisão que declarou a suspensão da instância e determinou a sua cessação (ainda que implícita), pois que nenhuma das partes reagiu quanto a tal decisão, apenas há que apreciar se os autos devem prosseguir e em que termos, não podendo a decisão deixar de ser afirmativa, perante a posição assumida pelo cabeça de casal de não pretender impugnar em ação autónoma o testamento realizado pelo inventariado.

E, prosseguindo, sem que seja proposta ação visando questionar a capacidade do testador, os autos terão de prosseguir pressupondo o testamento realizado pelo inventariado e tempestivamente apresentado nos autos."

[MTS]

10/09/2025

Jurisprudência 2024 (228)


Alteração do pedido;
concretização do pedido*


1. O sumário de RC 26/11/2024 (604/14.4TBCBR-A.C1) é o seguinte:

I – É admissível a ampliação do pedido, em acções de responsabilidade civil, quando estão reunidos os pressupostos do art. 265º, nº2, do C.P.C., ou do art. 569º do Código Civil.

II – Não é possível a ampliação quando a mesma comporta simultaneamente uma alteração da causa de pedir, atentas as limitações impostas pelo nº1 do mesmo art. 265º do C.P.C.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I – RELATÓRIO.

A..., S.A., pessoa colectiva nº ...70, com sede sem ..., Edifício ..., ..., ..., instaurou no Juízo Central Cível de Coimbra [---] acção comum contra MUNICÍPIO ..., com sede na Praça ..., ... ..., pedindo que:

a) Seja declarado que o prédio identificado no artigo 2.º da petição inicial é propriedade da autora;

b) O réu seja condenado a restituir à autora o referido prédio;

c) Caso a restituição não seja possível, o réu seja condenado a pagar à autora compensação pecuniária em valor nunca inferior 1.333.000,00 €. [...]

A autora apresentou réplica, contestando a reconvenção deduzida pelo réu e requerendo a ampliação do pedido formulado na petição inicial, nos seguintes moldes: “(…)

2) Subsidiariamente, e para o caso de não ser possível a restituição do prédio propriedade da Autora, deve ser o Réu condenado a pagar à Autora, para além do valor integral do prédio, identificado no documento n.º 1 da petição inicial, conforme pedido naquele articulado, uma indemnização que compreende todos os danos sofridos pela Autora em consequência da actuação ilícita do MUNICÍPIO ..., nomeadamente os decorrentes da ocupação e edificação ilegal em terreno propriedade da Autora, privação do direito de propriedade da Autora, demora na fixação e no pagamento da indemnização devida por aquela privação e culpa na negociação do protocolo, o que se computa, nesta data em €1.636.968,32, sendo o remanescente a liquidar em execução de sentença, tudo com as legais consequências.” 

Para fundamentar a requerida ampliação, alegou o seguinte:

85.º

Em consequência das acções ilícitas do Réu, a Autora sofreu, em síntese, os seguintes danos:

- Dano negativo, ou de confiança, resultante da lesão do interesse contratual negativo, ou seja, o dano que não teria sido sofrido se não se tivesse entrado em negociações para a celebração do “protocolo”, e que consiste no rendimento que a Autora poderia ter auferido com a exploração de um posto de abastecimento em local alternativo, o qual, em virtude das negociações em curso perdeu a oportunidade de procurar de forma activa e diligente, e que corresponde ao lucro previsto, para o período de 20 anos, de um posto de abastecimento em localização idêntica, com semelhante capacidade de armazenamento, com os seguintes volumes de vendas anuais (com referência ao ano de 2013): o 2.281m3 de combustíveis;         

- €15.000,00 de lavagens automóvel;

-  €400.000,00 de loja,

Valores que perfazem um lucro anual previsto de €42.000,00, ou seja, um lucro previsto para um período de 20 anos correspondente a €840.000,00.

-  Violação do direito de propriedade da Autora, pela ocupação de um prédio, ao qual a Autora atribui o valor de €1.133.000,00 (como resulta do pedido da petição inicial), mas que o Réu, em 2007, já valorou, ele próprio, em €973.297,00;

- Demora na fixação e no pagamento da indemnização pela ocupação e utilização do prédio propriedade da Autora, que corresponde aos juros corridos sobre o valor do prédio, desde a data da sua ocupação (1/11/2006) até à data em que for efectivamente paga e recebida a indemnização, e que se ascendem, nesta data, a €796.968,32 (cfr. documento n.º 3 que ora se junta e se dá por reproduzido).”. [...]

Em 18/12/2023, foi proferido despacho que admitiu a requerida ampliação, nos seguintes termos:

Admito a ampliação do pedido. Atento o que dispõe o artº 265/2 do CPC, afigura-se que a indemnização por danos decorrentes da ocupação e indemnização por danos em virtude da demora na fixação e no pagamento da indemnização constituem desenvolvimento do pedido primitivo.”.  [...]

II – FUNDAMENTOS. [...]

Tendo sido referido pela 1ª instância que a indemnização por danos decorrentes da ocupação e indemnização por danos em virtude da demora na fixação e no pagamento da indemnização constituem desenvolvimento do pedido primitivo, importa verificar, atento o que foi alegado nas correspondentes peças processuais, se a ampliação do pedido pode ser admitida.

O quadro normativo que rege esta matéria, como sabemos, resulta do disposto no art. 265º, nº 2, do C.P.C., norma que apresenta a seguinte redacção: “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.” [---]

A nossa jurisprudência, pronunciando-se sobre o regime que o legislador consagrou – entendimento que também sufragamos –, tem defendido que ampliação é admissível quando a nova pretensão se possa integrar no pedido primitivo e não exista alteração da causa de pedir, ou seja, quando não sejam alegados factos que não se integram nos fundamentos que sustentam a pretensão formulada inicialmente (neste sentido, cf., entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 4/4/2024, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c4a23b9d9ee926c980258afc0045203d?OpenDocument, o Acórdão da Relação de Évora de 12/10/2023, disponível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4ce81ebdc844733d80258a7d00347ae4?OpenDocument), o Acórdão da Relação de Guimarães de 10/7/2023, disponível em http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/791f24cef40b8740802589f900301d3a?OpenDocument, e o Acórdão da Relação do Porto de 27/10/2022, disponível em http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7ac448831b9c72d88025890500533f00?OpenDocument).

No caso vertente, tratando-se de uma situação que tem reflexos no domínio da responsabilidade civil – o pedido formulado a título subsidiário, na petição inicial e na réplica, situa-se nesse âmbito – é ainda necessário levar em consideração o disposto no art. 569º do Código Civil, o qual prescreve que “Quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos.”.

Compulsada a réplica, verificamos, salvo melhor opinião, que a autora formula um pedido que, embora se enquadre nos parâmetros da responsabilidade civil, se funda num acervo factual que não tem correspondência com o que havia sido alegado na petição inicial, tratando-se, por isso, de uma pretensão inteiramente nova, com base em pressupostos fácticos que ultrapassam os limites fixados pela causa de pedir que integra o articulado que introduziu o feito em juízo.       

É invocada, entre outra matéria, factualidade que nos remete para o campo do denominado interesse contratual negativo [Sobre a matéria, cf. o Acórdão desta Relação (Coimbra) de 9/11/2022, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/b8fdaa3539e168698025891f003d4e7b?OpenDocument, e o Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2023, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5dd81f7863ed174880258ab5003f27b1?OpenDocument.], sendo alegados prejuízos que decorrem da circunstância de o posto de abastecimento referido nos autos ter sido encerrado, factualidade, como referimos, que não constava na petição inicial.

Uma vez que não existe acordo das partes, caso em que seria admissível a ampliação (art. 264º do C.P.C. [...]), teriam de estar verificados os pressupostos do nº1 do art. 265º do C.P.C., preceito este que estabelece que “Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.”

Em resumo, não estando reunidos os requisitos dos arts. 264º e 265º, nºs1 e 2, do C.P.C., bem como os que se encontram previstos no art. 569º do Código Civil, não é admissível a ampliação do pedido, pelo que o recurso merece provimento, devendo decidir-se em conformidade, com as consequências legais."


*3. [Comentário] No enquadramento que o acórdão deu ao caso em análise ("pretensão inteiramente nova, com base em pressupostos fácticos que ultrapassam os limites fixados pela causa de pedir"), não pode, com a devida consideração, deixar de se estranhar que nele não se faça qualquer referência ao disposto no art. 265.º, n.º 6, CPC, dado que é este preceito que regula a alteração simultânea do pedido ("pretensão inteiramente nova") e da causa de pedir.

No entanto, o que parece que verdadeiramente se verificou foi uma concretização do pedido subsidiário, que inicialmente era apenas o de, "caso a restituição não seja possível, o réu seja condenado a pagar à autora compensação pecuniária em valor nunca inferior 1.333.000,00 €". Ora, é precisamente esta concretização que não é admitida pelo disposto no art. 265.º, n.º 2, CPC.

MTS

[Publicação emendada às 18 h e 47 m]