"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/06/2025

Anulação de decisão sobre matéria de facto e “custas da apelação pela parte vencida”


[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Jurisprudência 2024 (196)


Injunção de pagamento europeia;
fundamentos de oposição; preclusão


1. O sumário de RC 8/10/2024 (313/23.3T8VIS-A.C1) é o seguinte:

I – O princípio do primado do direito da União Europeia significa que as regras do direito interno (nacional) não podem estabelecer uma solução que viole ou contrarie disposições do ordenamento jurídico europeu.

II – Sendo movida uma execução com base num título formado ao abrigo do procedimento europeu de injunção de pagamento previsto no REGULAMENTO (CE) N.o 1896/2006 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2006, no qual o executado não deduziu oposição, não pode o mesmo, com fundamento no direito interno, deduzir embargos nos quais são suscitadas questões não abordadas no âmbito do procedimento europeu de injunção.

III – Tendo sido penhorado um bem (imóvel) pertencente a ambos os cônjuges numa execução movida apenas contra um deles é aplicável a regra prevista no art. 740º do C.P.C. e não o regime a que alude o art. 743º, nº 1, do mesmo Código.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.1. Factos provados.

Com interesse para a decisão do recurso, importa levar em consideração o despacho recorrido, que contém toda a tramitação relevante para apreciar as questões que o embargante/recorrente suscitou, despacho esse que apresenta o seguinte teor:

DA OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO:

a) Das Ineptidões do Requerimento de Injunção Europeu e do Requerimento Executivo:   

Nos presentes embargos o executado invoca, num primeiro momento, a ineptidão do requerimento de injunção europeu, dizendo para tanto que a exequente se limitou a preencher os campos, fazendo constar na “Nota Explicativa” “INCUMPRIMENTO DE PAGAMENTO DE UM EMPRÉSTIMO”, nada expondo no campo referente a informações adicionais/relevantes, aí tendo junto, para sustentar a sua pretensão, os dois contratos que identificou em 32º, afirmando de seguida a ausência de alegação de quaisquer factos essenciais da causa de pedir complexa, que não se considera suficientemente exposta, vícios que igualmente ocorrem quanto ao valor peticionado, data de vencimento ou data do contrato.

Para fundamentar a ineptidão do requerimento executivo diz que a exequente se limitou a juntar o requerimento de injunção europeia com fórmula executória, nada mais tendo alegado ou invocado, para além de peticionar juros de mora à data de 01/07/2022 e sem qualquer fundamentação.

Após concluir pela nulidade do título executivo dado à presente execução, por inexistência de fundamentação dos factos que lhe servem de base, com a consequente ineptidão, sustenta que a exequente, não só não expôs tais factos no requerimento executivo, não sanando os vícios de que padece o título, como aliás invoca que a quantia de € 17.914,20 se reporta ao saldo negativo de conta corrente a descoberto em nome do executado, assim contrariando o neste particular alegado na injunção, onde fez constar que tal quantia corresponde ao incumprimento do contrato de empréstimo, o que configura distintas realidades.

A exequente contestou, pugnando pela improcedência da exceção invocada, o que fez nos termos vertidos no seu articulado, que por brevidade de exposição aqui se considera reproduzido.

Apreciando:

A injunção a que se reporta a presente execução rege-se pelo Regulamento (CE) n.º1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento.         

O Regulamento é um ato jurídico da União, com caráter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros (art.º 288.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia).

É, pois, diretamente aplicável na ordem interna portuguesa (art. 8º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa).

Conforme consta no considerando n.º 9 do Regulamento, este tem por objetivo simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados, através da criação de um procedimento europeu de injunção de pagamento, e permitir a livre circulação das injunções de pagamento europeias em todos os Estados-Membros, através do estabelecimento de normas mínimas cuja observância torne desnecessário qualquer procedimento intermédio no Estado-Membro de execução anterior ao reconhecimento e à execução.

O procedimento tem por base, tanto quanto possível, a utilização de formulários normalizados para todas as comunicações entre o tribunal e as partes, a fim de facilitar a sua administração e permitir o recurso ao tratamento automático de dados (considerando n.º 11 e arts. 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 16º e 18º do Regulamento).

No requerimento de injunção de pagamento europeia o requerente deverá fornecer informações suficientes para identificar e fundamentar claramente o pedido de modo a permitir ao requerido optar, com conhecimento de causa, entre deduzir oposição ou não contestar o crédito (considerando 13 e art. 7º).

O Tribunal analisará o requerimento, bem como a questão da competência e a descrição das provas, com base nas informações constantes do formulário de requerimento, o que deverá permitir-lhe apreciar prima facie o mérito do pedido e, nomeadamente, excluir pedidos manifestamente infundados ou requerimentos inadmissíveis (considerando 16 e art. 11º).

A injunção de pagamento europeia deverá informar o requerido das opções ao seu dispor, ou seja, pagar ao requerente o montante fixado ou apresentar uma declaração de oposição no prazo de 30 dias, caso pretenda contestar o crédito. Para além das informações completas sobre o crédito fornecidas pelo requerente, o requerido deverá ser informado do alcance jurídico da injunção de pagamento europeia e, em especial, dos efeitos da não contestação do crédito (considerando 18 e art. 12º).

O requerido poderá apresentar a sua declaração de oposição utilizando o formulário normalizado que consta do regulamento. No entanto, os tribunais deverão ter em conta qualquer outra forma escrita de oposição, caso esteja formulada claramente (considerando 23 e art. 16º).

Uma declaração de oposição apresentada no prazo fixado deverá pôr termo ao procedimento europeu de injunção de pagamento e implicar a passagem automática da ação para uma forma de processo civil comum (nos tribunais competentes do Estado de origem), a não ser que o requerente tenha solicitado expressamente o termo do processo nessa eventualidade (considerando 24 e art. 17º).

Após o termo do prazo para apresentar a declaração de oposição, o requerido terá, em certos casos excecionais, o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia (perante o Estado-Membro de origem). A reapreciação em casos excecionais não deverá significar a concessão ao requerido de uma segunda oportunidade para deduzir oposição. Durante o procedimento de reapreciação, o mérito do pedido não deverá ser apreciado para além dos fundamentos decorrentes das circunstâncias excecionais invocadas pelo requerido. As outras circunstâncias excecionais poderão incluir os casos em que a injunção de pagamento europeia tenha por base informações falsas fornecidas no formulário de requerimento (considerando 25 e art. 20º).

Se no prazo de 30 dias suprarreferido não for apresentada ao tribunal de origem uma declaração de oposição, este declara imediatamente executória a injunção de pagamento europeia, para tal utilizando o formulário normalizado G, constante do Anexo VII, devendo para o efeito o tribunal verificar a data da citação ou notificação (art. 18º n.º 1).

Nessa sequência o tribunal enviará ao requerente a injunção de pagamento europeia executória (art. 18º n.º 3).

Uma injunção de pagamento europeia emitida num Estado-Membro e que tenha adquirido força executiva deverá ser considerada, para efeitos de execução, como se tivesse sido emitida no Estado-Membro no qual se requer a execução.

A confiança mútua na administração da justiça nos Estados-Membros justifica que o tribunal de um Estado-Membro considere preenchidos todos os requisitos de emissão de uma injunção de pagamento europeia, a fim de permitir a execução da injunção em todos os outros Estados-Membros sem revisão jurisdicional da correta aplicação das normas processuais mínimas no Estado-Membro onde a decisão deve ser executada (considerando 27 e art. 21º).

Nos termos do art. 19º do Regulamento, a injunção de pagamento europeia que tenha adquirido força executiva no Estado-Membro de origem é reconhecida e executada nos outros Estados-Membros sem que seja necessária uma declaração de executoriedade e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento.

Acresce que o mérito da injunção não pode ser reapreciado no Estado-Membro da execução (art. 22º n.º 3).

O Regulamento prevê duas situações em que o tribunal do Estado-Membro da execução poderá, a pedido do requerido, recusar a execução:

1) se a injunção for incompatível com uma decisão anteriormente proferida em qualquer Estado-Membro ou país terceiro, desde que a decisão anterior diga respeito à mesma causa de pedir e às mesmas partes, a decisão anterior reúna as condições necessárias ao seu reconhecimento no Estado-Membro de execução e não tenha sido possível alegar a incompatibilidade durante a ação judicial no Estado-Membro de origem (art. 22º n.º 1); e

2) se e na medida em que o requerido tiver pago ao requerente o montante reconhecido na injunção de pagamento europeia (art. 22º n.º 2).

O Regulamento também admite que o Tribunal da execução limite o processo de execução a providências cautelares, ou subordine a execução à constituição de uma garantia, ou suspenda a execução, caso o requerido tenha pedido a reapreciação da injunção no Estado-Membro de origem, nos termos do art. 20º do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006.

Revertendo agora à situação ajuizada somos a concluir que a questão ora suscitada e relativa à ausência de causa de pedir do requerimento de injunção europeia o deveria ter sido junto do Tribunal competente do Estado-Membro de origem, nos termos do art. 20º n.º 2 do Regulamento, que prevê após o termo do prazo fixado no n.o 2 do artigo 16.o , o requerido tem também o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competente do Estado-Membro de origem nos casos em que esta tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no presente regulamento ou outras circunstâncias excepcionais.

Com efeito, nos termos do art. 7º n.º 2 al. d) do identificado Regulamento o requerimento de injunção de pagamento europeia deve incluir “d) A causa de pedir, incluindo uma descrição das circunstâncias invocadas como fundamento do crédito e, se necessário, dos juros reclamados;”, mais resultando do seu art. 8º que “o tribunal ao qual é apresentado um requerimento de injunção de pagamento europeia analisa, no prazo mais curto possível, com base no formulário de requerimento, se estão preenchidos os requisitos estabelecidos nos artigos 2.o , 3.o , 4.o , 6.o e 7.o e se o pedido parece fundamentado. Esta análise pode assumir a forma de um procedimento automatizado.”, podendo o requerimento ser rectificado ou complementado nos termos do art. 9º.

Por outro lado, deriva do art. 11º al. a) do Regulamento em causa que o requerimento de injunção europeia é objeto de recusa se, entre outras situações, não estiverem preenchidos os requisitos previstos no seu art. 7º.      

Aqui chegados não restam quaisquer dúvidas de que o pressuposto referente à alegação da causa de pedir configura um dos requisitos especialmente previstos nos normativos transcritos, pelo que, a verificar-se a arguida exceção, concluir-se-ia pela indevida emissão do título de injunção de pagamento europeia - por preterição do requisito previsto no art. 7º n.º 1 al. d) do Regulamento.

Pelo exposto, entendemos que a questão em estudo deveria ter sido oportunamente suscitada perante o Tribunal de origem, mediante a formulação de um pedido de reapreciação da injunção, tal como expressamente prevê o art. 20º n.º 2 referido, o que obsta à sua obrigação por este Tribunal. [...]

2.2. Enquadramento jurídico.

A decisão recorrida, amplamente fundamentada, é esclarecedora quanto à improcedência das excepções que o apelante arguiu em sede de embargos e, simultaneamente, no que diz respeito ao não acolhimento da tese defendida a propósito do levantamento da penhora, aderindo esta Relação aos fundamentos que o Tribunal a quo exarou na sentença impugnada.

Importa, apenas, acrescentar o seguinte.

No que concerne ao procedimento europeu de injunção de pagamento que está na origem do título que é executado nos autos principais, resulta à saciedade que o recorrente, no tempo e lugar próprios, não utilizou os mecanismos que se encontram previstos no REGULAMENTO (CE) N.o 1896/2006 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de Dezembro de 2006, designadamente a oposição (art. 16º desse Regulamento) ou a reapreciação (art. 20º do mesmo Regulamento).  

Significa isto que, de acordo com um conjunto de regras vigentes na União Europeia, logo, aplicáveis em Portugal, não se opôs a que se formasse um título com as características do que vem referido no presente litígio, deixando precludir, consequentemente, os meios de defesa que poderia opor à injunção.

Como se salientou no Acórdão da Relação de Lisboa de 12/5/2022 (Aresto disponível em http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4faf4e0887daf811802588520039dd86?OpenDocument) “Os embargos a execução que tenha como título executivo uma injunção de pagamento europeia devem sujeitar-se ao regime previsto no Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2006, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento.”.        

A entender-se de forma diferente, estaríamos a violar as regras que, por força do Tratado da União, também se aplicam ao nosso Pais, pois permitir-se-ia, ao arrepio do quadro que vigora em todos Estados membros, invocar normas do direito interno para impedir ou obstaculizar a execução de um título formado com base em disposições hierarquicamente superiores [---]".

[MTS]


25/06/2025

Bibliografia (1205)


-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), I Colóquio de Direito da Família, 2.ª ed. (2024) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Comércio, Sociedades e Insolvências, 3.ª ed. (2023) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Compra e Venda de Bens de Consumo / Contradição de Julgados como Via de Acesso ao Supremo / Adequação Formal (2023) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Processo Penal - Recursos (2022) [OA]

-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Tribunais e Inteligência Artificial / Uma Odisseia no Espaço (2023) [OA]

Jurisprudência 2024 (195)


Processo de inventário;
questões prejudiciais; remessa para os meios comuns


I. O sumário de RL 24/10/2024 (464/20.6T8CSC-A.L1-2) é o seguinte:

1. O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, pelo que respeitando a controvérsia à definição de direitos de interessados diretos na partilha, a situação cabe no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que prevê que o juiz remetendo os interessados para os meios comuns, deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.

2. O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC, não contemplando como razão para o efeito a eventual complexidade na resolução das questões de direito.

3. O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A decisão recorrida estribou-se no art.º 1093.º n.º 1 do CPC para fundamentar a remessa dos interessados para os meios comuns, com vista à decisão relativa aos direitos de crédito sobre os bens comuns relacionados pelo cabeça de casal nas verbas 1 e 2 da relação de bens, cuja existência a interessada contestou.

O art.º 1092.º do CPC, referindo-se à suspensão da instância, rege nos seguintes termos:

“1-Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:
a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;
b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;
c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.
3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:
a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;
b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;
c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.
4 - À partilha, realizada nos termos do número anterior, são aplicáveis as regras previstas no artigo 1124.º relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.”

Por seu turno, o art.º 1093.º do CPC, com a epígrafe “Outras questões prejudiciais”, estabelece:

“1.Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.

Da conjugação destes dois artigos, verifica-se que o art.º 1092.º n.º 1 al. b) e o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, reportando-se ambos a questões prejudiciais, têm um diferente âmbito de aplicação que é delimitado por duas vias: uma objetiva que distingue as questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo das que não respeitem a essa admissibilidade; e uma subjetiva que distingue consoante está em causa a definição de direitos de interessados diretos na partilha ou a definição de direitos que não respeitem a estes interessados.

Na situação em presença a controvérsia está nas verbas 1 e 2 identificadas na Relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, como constituindo um crédito deste sobre os bens comuns.

Se é certo que a questão controvertida não respeita à admissibilidade do processo de inventário, que não está em discussão, a verdade é que se trata da definição de direitos de um interessado direto na partilha, já que é o cabeça de casal que pretende ver reconhecido aquele seu crédito que relacionou.

O art.º 1093.º do CPC, como a própria epígrafe indica, só deve ser convocado se estão em causa questões prejudiciais que não se integrem na previsão do artigo anterior, o que manifestamente não é o caso, uma vez que se verifica a previsão do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC.

Os efeitos da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns também são, pelo menos num primeiro momento, diferentes, já que de acordo com o art.º 1092.º n.º 1 al. b) o juiz deve suspender a instância, sem prejuízo de autorizar o seu prosseguimento, nos termos e nas situações previstas no n.º 3 deste artigo; em contrário, no âmbito do art.º 1093.º n.º 2 a suspensão da instância não decorre necessariamente da remessa dos interessados para os meios comuns, podendo, no entanto, vir a ser determinada pelo juiz, se verificados os pressupostos previstos em tal norma.

Nestes termos, já se vê que o Recorrente tem razão quando refere que foi indevidamente aplicado o art.º 1093.º n.º 1 do CPC, que visa as questões que não respeitem à definição de direitos de interessados diretos na partilha, já que respeitando a questão em litígio a estes interessados, a situação integra-se no âmbito do art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, que estabelece que o juiz deve determinar a suspensão da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 3.

- da (in)devida remessa dos interessados para os meios comuns

O Recorrente considera que o tribunal a quo andou mal ao remeter os interessados para os meios comuns, concluindo que os elementos constantes dos autos já permitem reconhecer o seu direito ao crédito identificado na verba n.º 1 relativo ao valor de mais valias que investiu no imóvel comum do casal e quanto ao seu crédito identificado na verba n.º 2 está reconhecida a sua existência “havendo que adaptá-lo à realidade”.

O tribunal a quo afirmou de forma conclusiva que “tal matéria é controvertida e de natureza complexa” e que “a prova que as partes terão de produzir para a decisão da questão em apreço manifestamente extravasa a natureza incidental da reclamação à relação de bens”, remetendo os interessados para os meios comuns.

Vejamos em concreto a questão controvertida que se reporta aos créditos relacionados pelo cabeça de casal nas verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, nos seguintes termos:

Verba 1

Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 22.445,00 sobre os bens comuns do casal, montante que foi investido na construção do prédio urbano construído pelo casal, conforme docs n.ºs 1 e 2 que ora se juntam.

Verba 2

Crédito do cabeça de casal, ora requerente do montante de € 117.217,00 sobre os bens comuns do casal, porquanto o lote de terreno onde se encontra implantado o prédio urbano identificado na verba 37 da relação de bens foi comprado pelo requerente em 18 de maio de 2005 no estado de solteiro, conforme documento n.º 3 que ora se junta.

A Requerida veio reclamar da relação de bens apresentada, pugnando pela inexistência destes créditos, afirmando quanto à verba n.º 1 que o cabeça de casal não investiu dinheiro próprio na construção do imóvel comum e quanto à verba n.º 2 que o terreno foi adquirido com recurso a um crédito hipotecário, tendo após o casamento, ocorrido menos de três meses depois da aquisição, o pagamento das prestações ao banco sido suportado por ambos os membros do casal com os seus rendimentos do trabalho.

Na resposta à reclamação, o cabeça de casal veio esclarecer que o valor da verba n.º 1 se reporta às mais valias pela venda de um imóvel próprio, que investiu na construção do imóvel comum, conforme foi declarado em sede de IRS; quanto à verba n.º 2 admitiu que depois do casamento o mútuo hipotecário contraído para a aquisição do terreno foi pago com o rendimento proveniente do trabalho de ambos os cônjuges, retificando o crédito que reclamou nesta verba para a quantia de € 20.550,38 correspondente à diferença do valor de aquisição do terreno e prestações do mútuo bancário que pagou da sua responsabilidade.

Em primeiro lugar, importa sublinhar, que o Recorrente vem agora em sede de recurso suscitar questões novas relativas à verba n.º 2, que não cabe a este tribunal decidir, ainda para mais passando por cima do que foi a sua conduta processual anterior.

O cabeça de casal começou por identificar na verba nº 2 um crédito sobre os bens comuns do casal no montante de € 117.217,50, valor pelo qual adquiriu o terreno onde foi implantado o imóvel comum, no estado de solteiro; na sequência da impugnação da cabeça de casal, o mesmo veio retificar o valor daquele crédito para € 20.550,38 admitindo que o crédito hipotecário depois do casamento foi pago por ambos os cônjuges com os rendimentos do seu trabalho, chegando a este valor somando € 11.721,47 (correspondente à diferença entre o valor de aquisição e o valor do crédito contraído) e € 8.828,64 (relativo a 24 prestações de € 367,86 cada que pagou até 25 de maio de 2007); agora em sede de recurso, passando por cima de tudo isto, recusando a remessa das partes para os meios comuns, vem requerer que este tribunal determine a avaliação do lote de terreno, com vista à definição deste seu invocado crédito.

O recurso tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes e objeto de apreciação pelo tribunal a quo.

Não é controvertido e decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, e apenas a título de exemplo, o Acórdão do TRL de 14-02-2013, no Proc. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in www.dgsi.pt

Como nos diz Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, pág. 16: “o recurso não visa um segundo julgamento, mas apenas um reexame, por um tribunal superior, do julgamento proferido por um tribunal inferior, e para corrigir eventual erro de que enferme a decisão por este último tomada.”

O que se impõe então avaliar é o invocado erro da decisão que remeteu os interessados para os meios comuns para discutirem as verbas n.º 1 e 2 da relação de bens, não cabendo a este tribunal pronunciar-se sobre diligências requeridas pelo cabeça de casal no recurso.

No processo de inventário, deve o cabeça de casal nomeado proceder à apresentação da relação de bem, nos termos previstos nos art.º 1097.º n.º 1 e 3 al. c) e art.º 1098.º do CPC com especificação, por meio de verbas, dos bens que integram a herança ou, no caso, o património comum dos cônjuges, indicando o seu valor.

Apresentada a relação de bens, podem os restantes interessados reclamar contra ela, nos termos do art.º 1104.º n.º 1 al. d) do CPC, no que a lei vem configurar como um verdadeiro incidente tramitado nos próprios autos, regulamentado no art.º 1105.º do CPC, com a realização das diligências probatórias necessárias com vista à sua decisão – neste sentido diz-nos Carla Câmara in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 70: “Apresentado articulado de oposição, impugnação ou reclamação, prossegue o conhecimento das questões objeto deste requerimento, com a natureza de incidente, podendo ocorrer tantos incidentes quantas as questões suscitadas à apreciação.”

Nos termos do mencionado art.º 1105.º n.º 1 do CPC, tendo sido apresentada reclamação à relação de bens, os interessados que tenham legitimidade para se pronunciar sobre as questões suscitadas têm o prazo de 30 dias para responder, indicando com a resposta a prova que tenham por conveniente, de acordo com o n.º 2 deste artigo, na configuração de uma tramitação processual quanto à apresentação de prova, idêntica à dos incidentes da instância, regulada nos art.º 293.º n.º 1 do CPC.

Quer o reclamante, quer o cabeça de casal, têm o ónus de indicar os elementos de prova no requerimento respetivo em que deduzem a reclamação ou respondem a ela, conforme dispõe o art.º 1105.º n.º 2 do CPC, ao prever que sendo deduzida oposição ou impugnação as provas são indicadas com os requerimentos e resposta.

O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC.

Como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 544, em anotação ao art.º 1092.º do CPC: “Em princípio, o inventário tem potencialidade para apreciar todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem necessidade de recurso aos meios processuais comuns. (…) o facto de a lei aludir à complexidade no apuramento da matéria de facto significa que não se justifica a suspensão a eventual complexidade na resolução de questões de direito.”

No mesmo sentido também se pronuncia Carla Câmara, in O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, pág. 132 quando refere: “A decisão de qualquer questão, seja ela relativa à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, ou a qualquer outra questão, cabe ao tribunal onde o processo se inventário corre seus termos. É este tribunal, onde corre o processo de inventário, que tem competência para dirimir todas as questões atinentes à definição do acervo hereditário a partilhar e dos interessados pelos quais vai ser partilhado aquele acervo. A remessa das partes para os meios comuns ocorre excecionalmente.

O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.

 No âmbito do processo de inventário, as questões controversas que se coloquem seguem a tramitação dos incidentes, o que pode não se mostrar adequado para assegurar as garantias dos interessados, já que desde logo tem associada uma maior simplificação e limitação probatória do que o processo comum, podendo suscitar-se questões, que pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto subjacente não se coadunem com uma tramitação mais simplificada.

São estes os critérios que têm de estar na base da decisão da remessa dos interessados para os meios comuns, o que implica a avaliação em concreto das questões a dirimir e dos factos que têm subjacentes, salientando-se que não constitui fundamento para remeter os interessados para os meios comuns a insuficiência de meios de prova apresentados pelas partes com vista ao esclarecimento dos factos que alegam – neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do TRL de 30-06-2011 no proc. 2083/05.8TMLSB-B.L1-1 in www.dgsi.pt quando refere: “Ora, a lei não faz depender a remessa dos interessados para os meios comuns do facto de algum dos interessados não ter carreado para os autos, quando o podia ter feito, meios de prova conducentes à demonstração dos factos, mas apenas se for de admitir que nos meios comuns tais factos poderão ser mais largamente investigados.”

Se se avaliar em concreto as questões a dirimir e os factos a ela subjacentes invocados pela interessada na oposição à relação de bens e na reposta do cabeça de casal, não pode deixar de verificar-se que não há grande complexidade na matéria de facto que se impõe apurar.

A verba n.º 1 da relação de bens indica um valor que terá sido investido pelo cabeça de casal na construção do prédio comum. Competindo-lhe a prova de tal facto, o mesmo veio invocar que tal corresponde às mais valias que teve com a venda de imóvel anterior, juntando os documentos que teve como pertinentes para o demonstrar, constatando-se que nos respetivos articulados ambos os interessados juntam documentos e só a Requerida arrolou uma testemunha.

Quanto à verba n.º 2 representa um alegado crédito do cabeça de casal pelo facto de ter adquirido o terreno onde foi implantada a construção que é imóvel comum do casal. O cabeça de casal já reconheceu que o mútuo hipotecário relativo àquele terreno, depois do casamento, teve as respetivas prestações pagas por ambos os cônjuges, fixando aquele crédito na quantia que pagou pelo mesmo que não foi abrangida pelo crédito hipotecário, acrescida das prestações que pagou da sua responsabilidade.

Avaliando a controvérsia exposta pelos interessados nos respetivos articulados, não se vê como qualificar de complexa a matéria de facto que lhes está subjacente e que importa apurar, sendo certo que também não se vislumbra que as partes vejam de alguma forma comprimidas as suas garantias, se as questões forem resolvidas incidentalmente, com recurso à prova que cada uma delas oportunamente apresentou.

Em face do que fica exposto, considera-se que não estão reunidos os pressupostos para a remessa das partes para os meios comuns, nos termos previstos no art.º 1092.º n.º 1 al. b) do CPC, para decidir estes dois direitos invocados pelo cabeça de casal, impondo-se a revogação da decisão recorrida que o determinou, devendo os autos prosseguir com a decisão incidental das mesmas no âmbito do processo de inventário."

[MTS]


24/06/2025

Jurisprudência 2024 (194)


Interposição de recurso;
ónus de formular conclusões*


1. O sumário de RL 24/10/2024 (5502/24.0T8LRS.L1-2) é o seguinte:

Se o recorrente não indica, nas próprias conclusões do recurso, um único fundamento concreto por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida, limitando-se a dizer que a decisão está errada ou a utilizar uma ou mais variantes de tal tipo de acusação, não há fundamentos que tenham que ser conhecidos. E como a decisão da matéria de facto não foi alterada, o recurso é manifestamente improcedente.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Do art. 639/1 do CPC consta o ónus de formular conclusões, sendo estas a indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão.

Daqui decorrendo, entre o mais, que é irrelevante que esses fundamentos constem eventualmente do corpo das alegações se nas conclusões não consta qualquer referência a eles.

As conclusões têm de conter todo um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas na sentença ou acórdão posto em crise, como diz, por exemplo do acórdão do STJ de 19/02/2008, proc. 08A194, lembrado por João Aveiro Pereira no seu estudo sobre O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil.

No mesmo sentido, o Prof. Alberto dos Reis (CPC anotado, vol. 5º reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 360) lembra o ac. do STJ de 10/12/1943 que decidiu que “não satisfaz ao disposto no art. 690 [agora 639/1 do CPC] a alegação do recorrente que, a título de conclusão, se limita a solicitar a absolvição do pedido e a revogação da sentença apelada, pois o artigo exige que nas conclusões se indiquem resumidamente os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho.” E comenta: “A doutrina do acórdão é perfeitamente exacta.”

Não basta, pois, nunca, dizer-se que uma decisão está errada ou utilizar-se uma ou mais variantes de tal tipo de acusação. Tem de se argumentar, apontando pelo menos um fundamento para pedir a alteração ou anulação da decisão.

Dizer-se que a providência “foi decretada de premissas erradas” – 1.ª conclusão – ou que “foi mal proferida e sem prova” – 6.ª conclusão – é dizer simplesmente que a decisão está errada, pelo que não é uma conclusão que possa valer para os efeitos do art. 639/1 do CPC.

Dizer-se que o “bem foi comprado por 125.000€ e não por 155.000€” – 2.ª conclusão – não é articular um fundamento para pedir a alteração ou anulação da decisão.

Por fim, dizer que “o recorrente não vislumbra onde se encontra o justo receio” – 5.ª conclusão – também não é arrazoar um fundamento para pedir a alteração ou anulação da decisão. Já seria diferente se o requerido tivesse dito que na fundamentação da decisão não se encontrava a afirmação do justo receio. Mas não foi isso que o requerido disse. De qualquer modo, diga-se que na fundamentação da decisão recorrida se encontra, como tinha de ser, a tentativa de demonstração do justo receio como requisito necessário para se decretar o arresto.

Como o requerido não aduz, nas conclusões do recurso, um único fundamento de ataque da decisão recorrida, porque não diz, minimamente que seja, por que é que a decisão recorrida devia ser outra ou por que é que está errada ou porque é que ela deve ser anulada, não há fundamentos que tenham que ser conhecidos.

O tribunal de recurso não pode substituir-se ao recorrente e averiguar, por si, se, e nesse caso porquê, a decisão recorrida está errada.

E como a decisão da matéria de facto não foi alterada, o recurso é manifestamente improcedente."

*3. [Comentário] Atendendo ao disposto no art. 639.º, n.º 2, CPC talvez se pudesse questionar se o recurso contém mesmo conclusões. Dando-se uma resposta negativa à questão, o problema seria então de inadmissibilidade do recurso.

MTS

23/06/2025

Jurisprudência 2024 (193)


Arresto;
interesse processual*


I. O sumário de RE 10/10/2024 (2478/24.8T8FAR.E1) é o seguinte:

1. A pendência de uma ação de revisão estrangeira condenatória revela séria probabilidade da existência do direito de crédito por ela titulado, permitindo ao credor a instauração do procedimento cautelar de arresto.

2. A existência de uma hipoteca registada a favor do Requerente do arresto torna inútil o decretamento do arresto sobre o imóvel hipotecado, porquanto a finalidade do arresto – meio de conservação da garantia patrimonial do credor – já se encontra assegurada por a hipoteca estar afeta especialmente ao pagamento do crédito do Requerente e, por força da lei, nessa situação, a penhora se iniciar obrigatoriamente pelo bem hipotecado.

3. Também não é de decretar o arresto por o valor do crédito do Requerente não estar totalmente coberto pelo valor máximo da hipoteca, quando não se encontra perfunctoriamente demonstrado que o valor da venda ou adjudicação do imóvel irá cobrir a totalidade daquele crédito e dos demais credores comuns que possam registar penhora anterior ao registo do decretamento do arresto.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na sentença recorrida, após se enunciarem os requisitos legais do decretamento do arresto, escreveu-se o seguinte:

«Da factualidade indiciariamente provada resulta que os Requeridos estão em dívida para com a Requerente no montante de €864.588,96 (acrescido de juros calculados à taxa de 2,95% por mês ou fracção, a partir de 25/03/2024 até pagamento), não se apresentam a pagá-lo ainda que interpelados, sendo certo que apenas existe bem imóvel – hipotecado, porém, a favor do Requerente – e as quotas de que é titular o 2.º Requerido enquanto sócio da 1.ª Requerida.

Todo este circunstancialismo fáctico, a envolver a pessoa colectiva da Requerida – protelação no tempo do pagamento a que se obrigou perante a Requerente, desconhecimento de bens e/ou rendimentos para além dos bens identificados, elevado valor do crédito a favor da Requerente – legitima o receio fundado da Requerente de perda da garantia patrimonial do crédito.

Por conseguinte, mostram-se preenchidos os pressupostos de que depende o decretamento do arresto.»

Porém, acrescentou:

«Cumpre, porém, apreciar a questão do arresto do bem imóvel, na medida em que o Requerente já beneficia da garantia especial dada pela hipoteca voluntária.

Com efeito, se o efeito útil do arresto é tornar ineficazes, em relação ao credor, potenciais actos de disposição dos bens, de acordo com as regras próprias da penhora (art. 622 Cód. Civil), existindo hipoteca sobre o bem a arrestar, nenhum efeito útil se alcança se pensarmos que a hipoteca acompanhará sempre o bem no caso de alienação. Por outras palavras, o efeito pretendido ou a garantia existe desde logo na hipoteca e não no arresto, e este não acrescenta mais à garantia hipotecária. Acresce dizer que o bem imóvel, por força da hipoteca registada a favor do Requerente, já está afecto especialmente ao pagamento do crédito em causa – cfr. artigo 752.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil e artigo 697.º do Cód. Civil – e que, por força da hipoteca, o Requerente terá o direito de ser pago pelo valor daquele bem com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – cfr. artigo 686.º, n.º 1, do Cód. Civil.

Assim, é manifesta a falta de interesse no arresto que incida sobre bens que constituem a garantia real do próprio credor requerente, considerando que em nada viria reforçar a preservação da garantia patrimonial, pois, de acordo com o disposto pelo artigo 752.º, n.º 1, do CPC, existindo garantia real, a penhora deve incidir desde logo sobre esses bens – cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 195, apud Ac. TRL de 05.03.2024, P. 14867/23.0T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.

Não obstante esta garantia especial de que já goza o Requerente, quanto às quotas que o 2.º Requerido detém sobre a 1.ª Requerida, não se afigura o respectivo arresto desmesurado face ao elevado montante do crédito em causa.

Em conclusão, deverá o presente procedimento cautelar proceder quanto ao arresto das quotas societárias de que é titular o 2.ª Requerido, devendo improceder quanto ao mais.»

É contra este entendimento que se insurge o Apelante, alegando, em suma, que a hipoteca não cobre todo o valor em dívida e encontrando-se o imóvel onerado com outras hipotecas e penhora, anteriores à do Recorrente, o princípio da proporcionalidade e as regras do bom senso determinam a aplicação da medida preventiva de arresto sobre o imóvel.

Vejamos, então, se assim será.

O arresto preventivo, enquanto providência cautelar conservatória da garantia patrimonial de obrigações civis e comerciais, encontra-se regulado nos artigos 619.º a 622.º do Código Civil (CC) e artigos 391.º a 396.º do Código de Processo Civil (CPC).

O arresto, tal como os restantes procedimentos cautelares, exerce uma função instrumental relativamente ao processo declarativo ou executivo, assegurando que os bens arrestados se irão manter na esfera jurídica do devedor até que seja obtida coativamente a realização do direito do credor.

Visa, pois, impedir que o perigo da demora inevitável do processo (periculum in mora) impeça a total ou parcial eficácia da sentença favorável ao Requerente da providência.

Assim, estipula o artigo 619.º, n.º 1, do CC: «O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei do processo», redação que, com exceção do segmento final, é reproduzida no artigo 391.º, n.º 1 do CPC.

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 391.º do CPC: «O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado nesta secção.»

Compete ao Requerente do arresto alegar e provar de forma sumária «(…) os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência», conforme prescreve o artigo 392.º, n. º1, do CPC.

O arresto será decretado, sem audiência da parte contrária, após serem «Examinadas as provas produzidas (…) desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais» (artigo 393.º, n.º 1, do CPC).

Decorre, assim, dos preceitos referenciados que são requisitos cumulativos da procedência deste procedimento cautelar:

(i) A probabilidade séria da existência do direito de crédito invocado pelo Requerente (fumus boni iuris);
 
(ii) O justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito (periculum in mora). [...]

No caso sub judice, e sem que o ora Recorrente expresse qualquer crítica, a decisão recorrida considerou indiciariamente provada a existência do crédito da Requerente resultante da entrega do valor mutuado, do incumprimento por parte dos Requeridos da sentença condenatória nos termos supra alegados e documentados nos autos (cfr. ponto 7 dos factos indiciariamente provados).

Efetivamente, também se nos afigura que se encontra perfunctoriamente demonstrada a existência do crédito não obstante ainda não existir decisão a rever e a confirmar a sentença estrangeira que condenou os ora Requeridos.

Como se refere no sumário do Acórdão desta Relação de Évora proferido em 17-10-2013 [Proferido no proc. n.º 1366/12.5TBLGS-A.E1 (Francisco Xavier), em www.dgsi.pt]«I. A sentença arbitral estrangeira que condena o requerido no pagamento de determinada quantia ao requerente de arresto revela séria probabilidade da existência do direito de crédito por ela titulado, mesmo que ainda não tenha sido revista e confirmada em Portugal.»

A razão de ser de tal entendimento radica no facto de, em sede cautelar, também para «(…) o arresto funciona o padrão de verosimilhança que rege os demais procedimentos cautelares, bastando a verificação de uma séria probabilidade quanto à existência do crédito, ainda que a relação creditícia não tenha sido objecto de pronunciamento judicial (cf., entre outros, Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 196, e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 124).»

Resta, assim, aferir do seguindo requisito (justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito - periculum in mora), ou seja, no caso em apreciação, o fundado receio de que a demora na obtenção de decisão revidenda perca o seu efeito útil por durante a pendência da ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira a situação de facto venha a alterar-se de tal modo que a sentença condenatória revidenda perca, na prática, a sua eficácia ainda que venha a ser revista e confirmada para produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa.

O arresto ao consistir numa preensão judicial de bens é capaz de antecipar os efeitos derivados da sentença condenatória revidenda no ordenamento jurídico português, sendo, por isso, um meio de conservação da garantia patrimonial do credor. [ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, IV Volume, Janeiro de 2003, p. 170.]

Ora, a questão que se coloca é se beneficiando o Requerente de uma hipoteca registada sobre o imóvel pretendido arrestar, o arresto tem algum efeito útil em relação ao justo receio de perda de garantia patrimonial do crédito.

Importando, para o efeito, considerar que o arresto tem como efeito, nos termos do artigo 622.º do CC, tornar «ineficazes em relação ao requerente do arresto», os atos de disposição dos bens arrestado, de acordo com as regras próprias da penhora.

Mas, por outro lado, apesar da hipoteca não impedir a alienação do bem hipotecado, é uma garantia real que incide sobre coisas imóveis ou equiparadas do devedor ou de terceiro, conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor de tais coisas imóveis, ou equiparadas, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686.º, n.º 1, do CC).

Ou seja, o referido efeito útil do arresto já se encontra assegurado pela função da garantia real que decorre da hipoteca.

Efetivamente, constituindo o arresto um meio conservatório de garantia geral e patrimonial do credor de natureza creditícia, ainda que dentro da universalidade dos bens que constituem o património do devedor tenha a função de individualizar os que são objeto de arresto e que no momento da execução vão servir para a satisfação do crédito do arrestante (à semelhança do que sucede com os bens penhorados) constituindo-se como uma penhora antecipada, tal não invalida que, por força da hipoteca registada a favor do Requerente, o imóvel em causa já esteja afeto especialmente ao pagamento do crédito do Requerente (artigo 752.º, n.º 1, do CPC e artigo 697.º do CC).

Assim sendo, e como também se concluiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 05-03-2024 [Proferido no proc. n.º 14867/23.0T8LSB.L1-7 (Cristina Silva Maximiano), em www.dgsi.pt (também citado na decisão recorrida). [...]] perante um circunstancialismo semelhante ao dos presentes autos em que se pedia o arresto de bens imóveis hipotecados a favor do arrestante, «(…) por manifesta falta de interesse, o arresto não pode incidir sobre os próprios bens que constituem a garantia real, considerando que a medida em nada viria reforçar a preservação da garantia patrimonial que esta providência visa alcançar, uma vez que, de acordo com o disposto no art.º 752º, nº 1, existindo garantia real, a penhora deve incidir desde logo sobre esses bens – cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 195.», lendo-se no sumário deste aresto:

«Não é de decretar o arresto relativamente a bens que já se encontram hipotecados a favor da Requerente.»

Ora, o Apelante contrapõe a esta argumentação que o valor do crédito garantido pela hipoteca é inferior ao valor em dívida e que existem duas hipotecas e uma penhora anteriores ao registo da sua hipoteca, pelo que o arresto do imóvel sempre se justificaria, tanto mais que o valor das quotas arrestadas «pouco garante o crédito do Recorrente», em relação ao remanescente do montante garantido pela hipoteca.

Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que a questão que o Apelante coloca não contradiz a falta de efeito útil do arresto do imóvel pela razões sobreditas, mas apenas evidencia que os bens dos devedores (imóvel e quotas societárias) são insuficientes para a satisfação integral do seu crédito.

Situação que não se altera caso seja decretado o arresto do imóvel, porquanto a insuficiência invocada decorre da situação jurídica já previamente existente, traduzida, desde logo, no valor do imóvel, no valor máximo garantido pela hipoteca a favor do Requerente e por existirem duas hipotecas e uma penhora anteriores que beneficiarão de prioridade no pagamento.

Por outro lado, iniciando-se a penhora sempre pelos bens hipotecados como estipula o artigo 752.º, n.º 1, do CPC, no caso improvável, atento o valor dos créditos [---], do valor da venda do imóvel exceder a totalidade dos créditos garantidos e satisfeitos em sede executiva, sem esquecer a precipuidade das custas (artigo 541.º do CPC), o remanescente do crédito não coberto pela hipoteca sempre seria pago, nessa parte, como crédito comum, uma vez que a penhora constitui um meio de obter o cumprimento coercivo da obrigação, consistindo na apreensão do bem em ordem à conservação da garantia geral relativamente aos bens penhorados, procedendo o tribunal através da venda ou adjudicação à satisfação do crédito em substituição do executado que incumpriu a sua obrigação (artigo 822.º do CC).

Mesmo levando em conta que do n.º 2 do artigo 822.º do CC conjugado com o artigo 762.º do CPC resulta que o arresto é convertido em penhora retroagindo a data da penhora à data do arresto, só se justificaria decretar o arresto com esse fundamento, prevenindo o periculum in mora resultante da delonga processual da tramitação da ação de revisão e confirmação da sentença estrangeira, se o Requerente tivesse alegado e perfunctoriamente demonstrado que existia a probabilidade séria de ser satisfeito por via do referido remanescente do valor da venda e/ou adjudicação e que se perfilavam outros credores comuns que viessem a beneficiar da anterioridade da penhora em relação à data da conversão do arresto em penhora na execução que o Requerente venha a instaurar.

Ora, nem essa alegação existiu, nem existem nos autos elementos que permitam inferir como minimamente plausíveis as referidas circunstâncias.

Bem pelo contrário, como o próprio Apelante reconhece ao invocar a insuficiência do valor do imóvel (mesmo acrescentando o valor das quotas penhoradas) para satisfação do seu crédito.
Em face de todo o exposto, improcede a apelação, confirmando-se a decisão recorrida."

*III. [Comentário] A RE decidiu bem.

Como se refere no acórdão, não é possível tornar inoponível ao arrestante, através da aplicação do disposto no art. 622.º, n.º 1, CC, a alienação voluntária de bens que, na altura do arresto, já se encontram hipotecados.

Em contrapartida, a hipoteca posterior de bens que já se encontram arrestados não obsta a que seja efectivamente inoponível ao arrestante qualquer alienação voluntária desses mesmos bens.

MTS

20/06/2025

Bibliografia (1204)


-- Pompili, M., Revocatoria ordinaria e concorso dei creditori (Giuffrè: Milano 2025)

-- Rosario, F., Clausole di irresolubilità per inadempimento / Autonomia privata e disponibilità del rimedio (Giuffrè: Milano 2025)

Jurisprudência 2024 (192)


Compropriedade conjugal;
acção de divisão de coisa comum


1. O sumário de RE 10/10/2024 (150/23.5T8EVR.E1) é o seguinte:

I. O processo de divisão de coisa comum é o meio próprio para o ex-cônjuge dividir o património adquirido em compropriedade por ambos os consortes no decurso de casamento sujeito ao regime da separação de bens, entretanto dissolvido por divórcio;

II. O processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o regime de bens do casamento foi o da comunhão geral ou o da comunhão de adquiridos, nos quais cada cônjuge se constitui titular de um direito de meação sobre a universalidade dos bens comuns;

III. A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem, se tiverem estado casados num regime da comunhão e houver património comum a partilhar.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Vêm os presentes recursos interpostos de decisão que absolveu a Ré da instância por considerar errada a forma de processo eleita pelo Autor – acção de divisão de coisa comum – para alcançar o objectivo de dividir o património alegadamente adquirido por ambos no decurso do casamento entre ambos, sujeito ao regime da separação de bens.
A argumentação do despacho em crise apresenta os seguintes vectores:

i. O processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens em compropriedade do casal (citando para o efeito a jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28.09.2023, proferido no âmbito do proc. n.º 611/21.0T8SSB.E1 – in www.dgsi.pt).

ii. Ainda que inexistam bens comuns do casal, a abertura do processo de inventário justifica-se, também, no caso vertente, por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis (entendimento que extrai da jurisprudência dos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.06.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1702/20.0T8BRG-A.G1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2010, proferido no âmbito do processo n.º 2104/09.5TBVFX-A.L1-7 – ambos in www.dgsi.pt). [...]

*
Analisemos, de seguida, cada um dos elencados fundamentos.

i. Relativamente ao primeiro ponto, a especificidade do regime da separação de bens do casamento entre Autor e Ré, não permite acompanhar o entendimento perfilhado na decisão recorrida, no sentido de que o processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens titulados em compropriedade pelos elementos do ex-casal.

Vejamos porquê.

De acordo com o disposto nos artigos 1688.º, 1788.º e 1789.º, n.º 1, do Código Civil, o divórcio dissolve o casamento e faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraindo-se os seus efeitos, quanto às relações patrimoniais, à data da propositura da acção ou da separação de facto fixada na sentença.

Após o divórcio, procede-se à partilha dos bens comuns, o que pode ocorrer extrajudicialmente, por acordo dos interessados, ou judicialmente, na falta de acordo, em processo de inventário (artigos 2102.º, n.º 1, do CC e 1133.º da actual redacção do CPC). [...]

O património integrado na comunhão conjugal confere a cada um dos cônjuges um direito de meação que se não confunde com o direito de compropriedade.

Na proposta de Rita Lobo Xavier (Rita Lobo Xavier, “Divórcio, o Regime de Bens e a Partilha do Património Conjugal”, in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças Diálogo Teórico-Prático, e-book da Ordem dos Advogados e do CEJ): “A perspetiva do património coletivo considera a situação de contitularidade. Os bens comuns constituem um património coletivo na medida em que cada um dos cônjuges é contitular de um direito sobre a massa dos bens comuns, como um todo, não sendo contitular de um direito não sobre cada uma das coisas nela integradas. Cada um dos cônjuges é titular do direito a metade do mesmo (direito de meação), direito de que não podem dispor antes da dissolução do casamento, da separação de pessoas e bens ou da separação judicial de bens. (…) e que tem muitas similitudes com a que existe na situação de indivisão hereditária”.

A distinção resulta também clara na fórmula, utilizada por Pires de Lima e Antunes Varela ( Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume IV, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 449.): “os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade colectiva…”, sendo que “…na propriedade colectiva há ainda um direito uno, enquanto na compropriedade há um aglomerado de quotas dos vários comproprietários”.

A compropriedade pressupõe um título de aquisição em que todos os comproprietários intervenham.

Diversamente do que sucede nos matrimónios sujeitos aos regimes da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral, o casamento sujeito ao regime da separação de bens não tem a aptidão de constituir património comum do casal pois cada um dos cônjuges “…conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, podendo dispor deles livremente” (artigo 1735.º do Código Civil).

Por isso, vem sendo entendimento doutrinal e da jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o casamento, por força da sujeição aos regimes da comunhão geral ou de bens adquiridos, seja apto a gerar um património comum do casal (artigos 1721.º e ss. e 1732.º e ss., ambos do Código Civil). [...]

A conclusão a que se chega partindo da exposição apresentada é a de que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado à partilha de bens comuns, exclusivos dos regimes de comunhão de bens que permitem a constituição de um património comum do casal e um direito de meação de cada consorte sobre a universalidade desses bens.

Como o regime da separação de bens não é passível de integrar os bens adquiridos, antes ou na pendência do casamento, num património comum do casal, não se mostra preenchido pelo casamento sujeito a tal regime (da separação) um pressuposto necessário ao uso do processo de inventário subsequente ao respectivo divórcio.

A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade distinta do património integrado na comunhão, neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem desde que tenham estado casados no regime da comunhão (geral ou de adquiridos) e haja património comum.

Esta é, aliás, a bitola que, em linha com a orientação da jurisprudência dominante (Entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2019, relatado pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes no processo número 1517/13.2TJLSB.L1.S2, cujo sumário refere: “I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio. (…) III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do artigo 1404.º, do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns. IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade. No mesmo sentido, também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.02.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Eva Almeida no processo n.º 2509/22.6T8VCT.G1. [...]

Contrastando com a interpretação realizada na decisão da 1ª instância, não é a situação de compropriedade de bens que, de acordo com os fundamentos do acórdão em apreço, permite o uso do processo de inventário, mas a circunstância de, contrariamente ao caso vertente em que Autor e Ré estiveram casados no regime da separação de bens, a situação ali versada dizer respeito a um matrimónio sujeito ao regime da comunhão de bens adquiridos, no qual para além de bens titulados em compropriedade pelos cônjuges, havia também bens comuns a partilhar.

Sendo o inventário o meio próprio para a alcançar a partilha daqueles bens comuns, bem se compreende que tenha sido admitida a possibilidade de numa única acção de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do artigo 1404.º do Código de Processo Civil, se proceder à divisão ou partilha de todos os bens.

Esta posição inscreve-se na já apontada neutralidade ou irrelevância da compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento para o recurso ao meio processual de inventário subsequente a divórcio, pois se não constitui fundamento bastante (este é conferido pela existência da meação do cônjuge nos bens comuns), também não é circunstância impeditiva se o pressuposto do casamento no regime da comunhão se verificar.

ii. Apreciemos agora o segundo argumento apontado pela decisão em recurso, no sentido de que o uso do processo de inventário se justifica por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.

Nos termos previstos pelo artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, “…nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

O direito de exigir a divisão de coisa comum é potestativo, tem por escopo a dissolução da compropriedade que pode realizar-se através da divisão em substância da coisa ou da partilha do seu valor ou preço.

Pela via judicial (artigo 1413.º do CCivil), o processo de divisão de coisa comum obedece a uma forma especial (artigo 925.º e ss. do CPC) que prevê duas fases distintas:

- a primeira, visa apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário e, bem assim, aferir da divisibilidade do bem (artigo 926.º, n.ºs 4 e 5, do CPC);
- a segunda tem como objectivo: a divisão do bem em substância com a adjudicação das partes, caso se conclua que tal é possível na primeira fase do processo (artigos 927.º, n.º 1 e 929.º, n.º 1, ambos do CPC); ou a adjudicação da totalidade / venda a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, caso se conclua que o bem é indivisível (artigos 928.º e 929.º, n.ºs 2 e 3, ambos do mesmo diploma legal).

Trata-se de um processo dirigido contra todos os consortes, através do qual o primeiro momento, de pendor declarativo, visa confirmar o direito de cada um à respectiva quota e o segundo, de cariz mais executivo, realiza a repartição material do(s) bem(ns) indiviso(s) ou a atribuição patrimonial correspondente a cada direito individual.

O credor hipotecário, titular de hipoteca sobre a totalidade do prédio objecto da acção de divisão de coisa comum, não vê o seu direto afectado pela definição dos direitos realizada na fase declarativa do processo, porque a sua garantia real se mantém sobre a totalidade das quotas.

É na segunda fase do processo, de pendor executivo, que a adjudicação a um dos interessados ou a venda a terceiros do imóvel hipotecado impõe a prévia intervenção do credor hipotecário, a fim de aí reclamar o seu crédito e fazê-lo valer, sendo citado nos termos previstos pelo artigo 786º, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 549.º, n.º 2, ambos do CPC, para reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos, nos termos do artigo 788.º do mesmo diploma legal.

Deste modo, a utilização da forma especial do processo de divisão de coisa comum não comporta qualquer prejuízo, ou preterição dos direitos do credor hipotecário.

Não há, por isso, fundamento para sustentar que o uso do processo de inventário se justifica por, na situação em juízo, estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.

Note-se que a aceitação deste argumento para franquear o uso do processo de inventário aos comproprietários de bem(ns) indiviso(s), abriria a porta deste processo especial com pendor marcadamente sucessório e conjugal, a um conjunto de outras situações de constituição do direito de compropriedade, não apenas por ex-cônjuges, mas também por pessoas que não estiveram ligadas pelo vínculo do matrimónio."

[MTS]