"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/12/2025

Ainda a questão da impugnação das decisões sobre competência em razão do território


[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2025 (53)


Legitimidade para recorrer;
terceiros


I. O sumário de RP 25/2/2025 (19860/15.4T8PRT-B.P1) é o seguinte:

1 - As questões a apreciar na sentença e os limites da factualidade a considerar para o efeito não derivam dos termos em que foram definidos o objecto do litígio e elencados os temas de prova, mas antes da causa de pedir invocada pelo autor e das excepções arguidas pelo réu.

2 – O prazo de 30 dias fixado para a dedução de embargos de terceiro conta-se de qualquer facto em função do qual resulte a convicção de que o embargante tomou conhecimento da virtualidade de um acto (v.g. uma penhora) ofender o direito de propriedade ou a posse que se apresenta a invocar nos próprios autos de embargos de terceiro.

3 – A interposição de um recurso por quem não é parte na causa exige a demonstração de que a decisão recorrida lhe determina um prejuízo directo e efectivo, requisito que não se preenche com a alegação de eventuais efeitos numa outra acção entre as mesmas partes, mas que não resultarão da decisão recorrida, ou com a alegação da afectação da honra e consideração de um dos intervenientes na causa, em função da apreciação da sua intervenção em alguns actos jurídicos relativamente aos quais a decisão recorrida nada dispôs.

4 – O conhecimento das questões suscitadas por via do expediente de ampliação do objecto do recurso, utilizado pela parte vencedora para a eventualidade de reversão da decisão recorrida, fica prejudicado no caso de confirmação deste decisão.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como resulta do disposto no art. 641º, nº 5 do CPC, a admissão do recurso pelo tribunal recorrido, que pressupôs, embora sem qualquer justificação, a legitimidade dos recorrentes, não vincula este tribunal de recurso.

Por outro lado, a necessidade de decisão sobre tal legitimidade, como pressuposto processual deste recurso, foi expressamente assumida pelos recorrentes, pelo que a respectiva apreciação nesta fase se impõe, não exigindo qualquer audiência ou contraditório complementares.

Cumpre pois, decidir da respectiva legitimidade.

Como cada um destes recorrentes reconhece, nenhum deles é parte na execução, nem nos embargos de terceiro que àquela foram apensos. Invocam, todavia, a sua legitimidade, à luz do art. 631º, nº 2 do CPC.

Dispõe esta norma: “As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.”

A legitimidade conferida por esta disposição legal exige, assim, um prejuízo directo e efectivo para aquele que se apresenta a recorrer.

No caso, a decisão em recurso e que, como supra se concluiu, haverá de ser mantida é a da improcedência dos embargos, por extemporaneidade. Como acima já se referiu, a factualidade ali apreciada actua apenas como premissa menor da conclusão pela intempestividade dos embargos, não resultando em qualquer outra conclusão, designadamente sobre a definição da composição da fracção G, sobre a titularidade do direito de propriedade sobre o que seja a composição dessa fracção G, sobre a eventual distinção entre a fracção G e o prédio descrito sob o nº ..., inscrito na matriz sob o art. ..., antigo ....

Face à conclusão pela caducidade dos embargos, a decisão não teve a virtualidade que lhe poderia advir do disposto no art. 349º do CPC: a constituição de caso julgado sobre a decisão da existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou pelas embargadas, isto é, a exequente A..., S.A. e a executada B..., S.A.

Este resultado bem se compreende, pois que a conclusão pela caducidade dos embargos, que determinou a sua improcedência, é incompatível com a prolação de decisões sobre aquele que seria o seu objecto, se houvessem de prosseguir.

Assim, no caso, a decisão da caducidade dos embargos teve por efeito que não se pudesse ou houvesse de decidir, como seria própria de uma decisão de mérito que houvesse de ser proferida, sobre a composição da fracção G, sobre a titularidade do direito de propriedade sobre o que seja a composição dessa fracção G, sobre a eventual distinção entre a fracção G e o prédio descrito sob o nº ..., inscrito na matriz sob o art. ..., antigo ....

Da mesma forma, a factualidade apreciada em sede de discussão da causa foi-o apenas em ordem à conclusão sobre a definição do momento em que o embargante teve conhecimento de que a penhora efectuada sobre a fracção G era apta a conflituar com os direitos que invoca sobre os imóveis a que referiu o pedido dos embargos.

Assim, tal apreciação jamais poderá assumir autoridade de caso julgado num outro processo em que intervenha qualquer das partes nestes autos, quanto à definição daqueles elementos a composição da fracção G, sobre a titularidade do direito de propriedade sobre o que seja a composição dessa fracção G, sobre a eventual distinção entre a fracção G e o prédio descrito sob o nº ..., inscrito na matriz sob o art. ..., antigo ....

E isso não acontecerá, obviamente, no âmbito do processo n.º 3597/23.3T8CSC, acção interposta pelo Embargante contra a aqui D..., S.A. e a B..., S.A., no Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 2, para reconhecimento de direito de propriedade.

Com efeito, não sendo a D..., S.A. parte nestes autos de embargos, jamais lhe poderá ser oposta, nessa acção, a autoridade de caso julgado de qualquer segmento da decisão aqui proferida, designadamente o relativo à decisão sobre qualquer dos factos julgados positiva e negativamente.

E isso, adianta-se desde já, acontece de igual forma mesmo em relação à B..., S.A., que nestes autos figura como embargada, pois que, como já se referiu, a apreciação da factualidade em discussão serviu apenas de instrumento para a aferição do conhecimento, pelo embargante, do momento do acto conflituante com os direitos que aqui pretendia exercer.

Significa isto, nesta sede, que não pode admitir-se que a D..., S.A. tenha um interesse directo e efectivo que se mostre prejudicado pela decisão recorrida. Note-se que, para tal efeito, a referência é a decisão efectivamente proferida e não aquela que, numa outra hipótese, poderia ter sido proferida.

Por conseguinte, não pode reconhecer-se à D..., S.A. legitimidade para recorrer da decisão proferida em 1ª instância, à luz do disposto no art. 631º, nº 2 do CPC, pois que a mesma nenhum prejuízo directo e efectivo provoca na sua esfera patrimonial.

*
A mesma conclusão, embora por diferente ordem de razões, se tem de dirigir à questão da legitimidade do recorrente CC.

Afirma este recorrente ser legal representante da embargada B..., S.A., tendo sido interveniente na escritura de constituição de propriedade horizontal de que resultou a referida fracção G. E entende que a decisão recorrida acaba por lhe imputar a prestação de falsas declarações, pondo em causa o seu bom nome, honra e consideração.

Essa sua interpretação, mesmo que se admitisse ser a correcta perante os termos do processo, tendo então o tribunal acolhido uma versão diferente daquela defendida pela B... e por si narrada, jamais facultaria que se lhe reconhecesse que a decisão, por esse motivo, lhe acarreta um prejuízo directo e efectivo, relevante para efeitos do disposto no nº 2 do art. 631º do CPC.

Como se refere no Ac. do STJ de 15/12/2011 (proc. nº 767/06.2TVYVNG.P1.S1, em jurisprudência.pt), “O prejuízo, que é pressuposto da legitimidade ad recursum de terceiros prejudicados pela decisão, deve ser um prejuízo real, directo, efectivo, não meramente um prejuízo ou dano colateral, reflexo. Se a decisão não causa um prejuízo directo, se não se repercute de forma nuclear, afectando o património físico ou moral do recorrente, mas antes de modo reflexo lhe puder causar dano, esse terceiro não pode recorrer da decisão por falta de legitimidade.”

No caso, a decisão de improcedência dos embargos, nem no seu efeito, nem nos seus pressupostos, contém a virtualidade de determinar qualquer efeito na esfera jurídica de CC. E a sua percepção de que foi afectado o seu bom nome, honra e consideração, de forma alguma tendo constituído elemento do dispositivo da decisão ou sequer dos seus pressupostos, de forma alguma pode configurar um tal prejuízo efectivo e directo.

Por conseguinte, também quanto a ele, por não verificação do pressuposto previsto no nº 2 do art. 631º do CPC, cabe rejeitar o recurso, por falta de legitimidade.

*
Pelo exposto, considerando o disposto no nº 2 do art. 631º do CPC e a ausência de qualquer prejuízo efectivo e directo, resultante da decisão de improcedência dos embargos de terceiro em virtude da caducidade do direito de os interpor, na esfera jurídica de CC e D..., S.A., rejeita-se, por ilegitimidade, o recurso de apelação por ambos interposto."

[MTS]

11/12/2025

Bibliografia (1234)


-- Merkl, A. J., Die Lehre von der Rechtskraft entwickelt aus dem Rechtsbegriff / Studienausgabe der Originalausgabe 1923 (Ed. Kammerhoferm J./Garcia Cadore, R.), Mohr, Tübingen, 2025


Jurisprudência 2025 (52)


Acção de divórcio;
arrolamento


1. O sumário de RP 24/2/2025 (4557/24.2T8MTS-A.P1) é o seguinte:

I - Requisito da admissibilidade do pedido a formular ao abrigo do procedimento cautelar previsto no artigo 409º do CPC é, no que ora releva, a pendência de ação de divórcio sobre a qual o legislador pressupõe a existência de uma situação de conflito e consequente presumido receio de extravio ou ocultação de bens. Bens comuns, ou bens próprios sob a administração do outro cônjuge.

II - Consequentemente, a admissibilidade do pedido de arrolamento a formular neste âmbito, não está dependente da posterior instauração de processo de inventário para partilha, o qual pressupõe a existência de bens comuns, in casu inexistentes.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O presente procedimento cautelar de arrolamento especial foi instaurado ao abrigo do disposto no artigo 409º do CPC, como incidente tramitado por apenso aos autos de processo de divórcio ainda pendente de decisão.

Preceitua este normativo legal, no que ora releva:

“1- Como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro. (...)

3 - Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto no n.º 1 do artigo 403.º.”

A exclusão do previsto no nº 1 do artigo 403º - ou seja a exigência da alegação e prova de que existe “justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos” para a procedência do arrolamento especial peticionado tem subjacente o conhecimento pelo legislador do reflexo dos conflitos conjugais no modo como cada um dos cônjuges se passa a comportar relativamente aos bens comuns, ou aos bens próprios do outro colocados sob a sua administração. Levando à “presunção” [Cfr. António S. Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV volume, “Procedimentos Cautelares Especificados”, ed. Almedina de 2001, p. 269/270, ainda por referência ao anterior CPC, então artigo 427º, com idêntica redação ao atual artigo 409º em análise; bem como José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, vol. II, 3ª edição em anotação ao artigo 409º - p. 198/199. Aqui se dando nota de que a “presunção” “juris et jure” do periculum in mora por abranger tanto o plano da prova como o da alegação, “não se trata rigorosamente de presunção”- vide p. 198.] “juris et de jure” do “periculum in mora”, quer no plano da prova quer da própria alegação, evitando adicionais motivos de conflito entre os cônjuges.

Ao requerente do arrolamento especial previsto no artigo 409º do CPC, como dependência ou incidente de ação de divórcio, basta-lhe, por tal, alegar a existência de bens comuns ou de bens próprios sob a administração do outro.

Estando dispensado da alegação e prova do periculum in mora.

É certo, tal qual refere a decisão recorrida, que in casu o divórcio instaurado pelo requerente contra a requerida foi em sede de tentativa de conciliação convertido em divórcio por mútuo consentimento, então ali tendo ficado a constar, quanto às questões a que alude o artigo 994º do CPC e em concreto quanto aos bens, inexistirem bens comuns. Estando a instância suspensa a requerimento das partes com vista a tentarem chegar a acordo “quanto ao destino da casa de morada de família”, sita em Guimarães.

Casa à qual alega o requerente, deixou de ter acesso por a tal impedido pela requerida desde 22/04/24 e onde se encontram os bens que descreveu na p.i. e cujo arrolamento peticionou, uma vez que sendo de sua única e exclusiva propriedade, aos mesmos não tem acesso nem a requerida lhos entrega. Apesar de a tal já ter sido instada.

A alegação enquadra-se precisamente no, pelo legislador, presumido conflito entre os cônjuges na pendência da ação de divórcio que pode conduzir à prática de atos suscetíveis de colocar em crise os direitos do cônjuge interessado – pela ocultação, dissipação ou extravio quer de bens comuns quer bens próprios do outro cônjuge sob a administração do outro:

Realça-se a conjunção “ou” que indica alternativa ou opção ínsita no nº 1 do artigo 409º do CPC:

1 - Como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro”.

O arrolamento geral – vide artigo 403º - visa assegurar a manutenção de bens tidos por litigiosos, salvaguardar a sua dissipação e extravio, enquanto a definição da sua titularidade está em discussão. É igualmente o meio de obter a descrição desses mesmos bens e respetiva avaliação.

Servindo depois o auto de arrolamento como descrição no inventário – vide artigo 408º nº 2 do CPC, caso ao mesmo haja lugar.

Estando em causa arrolamento como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, então tem aplicação o arrolamento especial previsto no já citado artigo 409º, com as especificidades indicadas no nº 3 deste mesmo artigo e já supra mencionadas.

Arrolamento que depende da invocação da existência de “bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro”.

In casu, o requerente alegou serem os bens cujo arrolamento peticiona da sua exclusiva propriedade, bem como encontrarem-se sob a administração da requerida, contra sua vontade.

O fundamento do decidido indeferimento do requerimento inicial, mesmo antes de ter sido produzida qualquer prova, resultou do entendimento do tribunal a quo de que:

- os bens descritos pelo requerente se não enquadram na “categoria de bens próprios sob a administração do outro cônjuge, pois são insuscetíveis de dar frutos”;

- este procedimento visa acautelar o direito à justa partilha do património comum, in casu inexistente, atenta a declaração dos cônjuges efetuada na ata de tentativa de conciliação ocorrida no processo de divórcio, ainda pendente.

No que concerne ao argumento de que os bens descritos não são suscetíveis de dar frutos como pressuposto de poderem ser alvo de administração pelo outro cônjuge, não encontra o mesmo sustentação jurídica.

Atenta a definição de frutos constante do artigo 212º do CC, tanto são frutos os que provêm diretamente da coisa – frutos naturais (aqueles que podem ser separados da coisa principal, sem afetação da sua substância); como o são aqueles que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica, “rendas ou interesses” – frutos civis.

Em abstrato, são os bens em causa suscetíveis de gerar frutos civis – basta pensar no seu aluguer (vide artigos 1022º e 1023º do CC), o qual constitui por definição um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrado por prazo superior a 6 anos (vide artigo 1024º do CC).

Acresce que o conceito de administração, in casu dos bens próprios pelo outro cônjuge, tampouco está dependente desta capacidade de gerar frutos, civis ou naturais.

A administração de um bem inclui tanto os atos tendentes à sua frutificação normal, como à sua conservação. Incluindo esta a manutenção dos bens de acordo com critérios de razoabilidade, reparações de rotina e atos necessários a evitar que os bens se percam ou deteriorem [---].

Neste pressuposto procede a crítica apontada à decisão recorrida quando afirma não serem os bens em questão suscetíveis de ser enquadrados na “categoria de bens próprios sob administração do outro cônjuge, pois são insuscetíveis de dar frutos”.

Afastado este argumento, analisemos o segundo argumento apresentado pelo recorrente como fundamento da crítica apontada à decisão recorrida. Defendendo que a sua pretensão formulada neste requerimento não está dependente da instauração de inventário e da partilha de bens subsequente ao divórcio.

O que, na verdade, foi o argumento decisivo afirmado pelo tribunal a quo, como resulta do trecho que infra deixamos reproduzido:

«Enquanto preliminar ou incidente de ação de divórcio, a providência de arrolamento, nos termos do artigo 409.°, visa acautelar o direito à justa partilha do património comum. (...)

Importa salientar que o arrolamento pode ter como objeto, para além dos bens próprios do requerente que se encontrem na posse do outro cônjuge, os bens do casal a serem partilhados e “tem como finalidade garantir que tais bens existam no momento em que se efetue a partilha” .

Vale isto por dizer que, tendo em conta as suas finalidades especificas, não pode ser pedido o arrolamento de bens próprios do requerido, nem tão-pouco de bens de que o requerente e requerido sejam comproprietários, já que esses bens não podem ser objeto de partilha no âmbito de um processo de inventário subsequente à dissolução do casamento.

Ora, sendo os bens cujo arrolamento se requer, bens particulares, não podem ser objeto de arrolamento previsto com preliminar da ação de divórcio ou como incidente da mesma, uma vez que não podem ser objeto de partilha subsequente a divórcio, partilha essa que face ao declarado pelos cônjuges na tentativa de conciliação não haverá lugar após o decretamento do divórcio.»

O arrolamento previsto no artigo 403º do CPC é dependência da ação à qual interessa a especificação de bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (nº 1 do artigo 403º) e depende da verificação e demonstração pelo requerente do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos (nº 2 do artigo 403º).

Invocando o requerente ser proprietário de determinados bens que se encontram na posse ou detenção de terceiro e sobre os quais alegue recear o seu extravio, dissipação ou ocultação até que na ação a intentar seja definida a titularidade desses mesmos bens, é-lhe facultado o recurso ao procedimento cautelar de arrolamento previsto neste artigo.

Visa este procedimento, a que alude o artigo 403º do CPC, acautelar a manutenção dos bens litigiosos até que seja definida a titularidade dos mesmos, no âmbito da ação de que é dependência.

Seguindo a tramitação regulada nos subsequentes artigos 405º a 408º.

Dos quais se destaca o artigo 405º, o qual sobre a epígrafe “Processo para o decretamento da providência” disciplina:

“1 - O requerente faz prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente.

2 - Produzidas as provas que forem julgadas necessárias, o juiz ordena as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.”

A norma específica aplicável ao caso sub judice (artigo 409º) regula situações especiais em que o legislador presumiu “juris et de jure”, pelo conflito que usualmente lhes está subjacente, o periculum in mora quer no plano da prova quer no plano da alegação [---].

E assim, quando em causa esteja ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, como preliminar ou incidente das mesmas, pode qualquer dos cônjuges requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro (nº 1 do artigo 409º), sem que tenha de provar, sequer alegar, o receio mencionado no nº 1 do artigo 403º, atenta a já mencionada presunção legal.

Os bens alvo do pedido de arrolamento previsto no artigo 409º do CPC, são tanto os bens comuns, como os bens próprios do requerente que estejam sob a administração do outro.

Requisito da admissibilidade do pedido a formular ao abrigo do procedimento cautelar previsto no artigo 409º do CPC é, no que ora releva, a pendência de ação de divórcio sobre a qual o legislador pressupõe a existência de uma situação de conflito e consequente presumido receio de extravio ou ocultação de bens. Bens comuns, ou bens próprios sob a administração do outro cônjuge.

Consequentemente, a admissibilidade do pedido de arrolamento a formular neste âmbito, não está dependente da posterior instauração de processo de inventário para partilha, o qual pressupõe a existência de bens comuns, in casu inexistentes.

Tais requisitos estão suficientemente alegados no requerimento inicial e como tal deveria a pretensão ter sido apreciada, com a produção da prova oferecida."

[MTS]


10/12/2025

Jurisprudência 2025 (51)


Execução para prestação de facto;
prestação pelo executado


1. O sumário de RP 25/3/2025 (13702/22.1T8PRT.P1-A) é o seguinte:

I – Na execução para prestação de facto, estando o prazo da prestação previsto no título executivo, não há lugar à fixação de novo prazo para o efeito nem à citação ou notificação do executado para prestar ele próprio o facto exequendo, sem prejuízo de este poder fazê-lo nos 20 dias posteriores à sua citação para os termos da execução e de, não podendo completar-se nesse prazo a prestação já iniciada, dever ponderar-se a suspensão da instância pelo tempo necessário, depois de ouvidas as partes.

II – O caso julgado incide sobre a decisão enquanto conclusão de determinados fundamentos, apenas atingindo estes fundamentos, de facto ou de direito, enquanto pressupostos daquela decisão.

III – A realização da prestação por outrem pode ser feita com custeamento prévio (cfr. artigo 870.º do CPC) ou com custeamento posterior (cfr. artigo 871.º do CPC).

IV – No primeiro caso, a economia processual impõe que a indemnização moratória que tenha sido pedida seja liquidada e o paga em cumulação com a liquidação e o pagamento do custo das obras.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A primeira questão suscitada pela recorrente consiste em saber se, antes de ter determinado a conversão da execução para prestação de facto em execução para pagamento de quantia certa, o tribunal a quo devia ter determinado a prestação do facto pelo executado.

Vejamos o regime legal.

Nos termos do disposto no artigo 868.º, n.º 1, do CPC, se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação; pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo.

Resulta desta norma que, ao propor a execução para prestação de facto positivo, fungível e com prazo certo, o exequente deve optar entre:

a) A prestação do facto por outrem (execução específica), podendo cumular este pedido com a indemnização moratória a que tenha direito; ou
b) A indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação (execução sucedânea).

Alguns autores consideram que esta norma não concede ao exequente a possibilidade de optar livremente entre a execução específica (eventualmente cumulada com a indemnização moratória) e a execução sucedânea, defendendo que a primeira está reservada para os casos de mora e a segunda para os casos de incumprimento definitivo. Sobre esta questão vide Rui Pinto, A Acção Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pp. 1014 e 1015.

Se estiver em causa a prestação de um facto infungível, o exequente terá naturalmente de optar pela indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação, podendo também requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos da parte final da norma em análise.

Em qualquer dos casos, o devedor é citado para, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução, mediante embargos, conforme previsto no n.º 2, do mesmo artigo 868.º.

Não sendo deduzida oposição à execução ou sendo a oposição que suspendeu a execução julgada improcedente, a tramitação subsequente depende da opção inicial tomada pelo exequente.

Se este pretender a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação, o artigo 869.º do CPC manda observar o disposto no artigo 867.º do mesmo código, ou seja, a execução para prestação de facto é convertida numa execução para pagamento de quantia certa, cabendo ao exequente deduzir o incidente de liquidação do valor do dano sofrido, de acordo com o preceituado nos artigos 358.º, 360.º e 716.º do CPC, com as necessárias adaptações. Definido o valor da indemnização, a execução prossegue com a penhora dos bens necessários ao respectivo pagamento e com os demais termos da execução para pagamento de quantia certa.

Se o exequente optar pela prestação do facto por outrem, requer a nomeação de perito que avalie o custo da prestação, observando-se os demais termos previstos nos artigos 870.º a 873.º do CPC. Assim, também neste caso a execução prossegue como execução para pagamento de quantia certa, tendo em vista obter o valor necessário ao pagamento do custo da prestação. A diligência pericial destinada a definir este valor deve decorrer com observância do princípio do contraditório (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2022, p. 315, citando no mesmo sentido Lebre de Freitas). Sendo esta a opção, o exequente pode ainda pedir uma indemnização moratória.

O que a lei não prevê, em nenhuma destes casos, é a citação ou notificação do executado para prestar, ele próprio, o facto que não prestou no prazo previsto no título executivo.

Tal citação está apenas prevista quando o prazo para a prestação não está determinado no título executivo, caso em que o exequente indica logo no requerimento executivo o prazo que reputa suficiente e requer que, citado o devedor para, em 20 dias, dizer o que se lhe oferecer, o prazo seja fixado judicialmente, seguindo-se os demais termos previstos nos artigos 874.º e 875.º do CPC.

O que se pode discutir – e tem sido discutido – é se o executado ainda pode prestar o facto e até que momento o pode fazer. A este respeito, Abrantes Geraldes e outros (ob. cit., p. 314) escrevem o seguinte:

«Apesar da controvérsia doutrinal, é de admitir que, na sequência da citação, o executado ainda cumpra a prestação de facto (fungível ou infungível) a que estava adstrito. Por um lado, se o exequente requereu a prestação por outrem, não se vê razão para negar tal possibilidade ao próprio devedor, mais a mais se isso ocorrer dentro dos 20 dias subsequentes à citação. No caso de o cumprimento, embora iniciado, não poder completar-se nesse período, será de equacionar a possibilidade de o juiz, mediante audição das partes, decretar a suspensão da instância pelo tempo necessário, na condição de o executado cumprir o que restar da prestação, sob pena de cessar a suspensão.

(…) Por outro lado, quando o exequente tenha optado pela indemnização compensatória, sem que tenha sido resolvido o contrato, sendo a prestação ainda possível, será igualmente de admitir a realização da prestação pelo executado nos 20 dias seguintes à sua citação. Fora desse estrito quadro, isto é, se o cumprimento, ainda que iniciado, extravasar esse limite, a eventual suspensão da instância, nos termos acima equacionados, deverá depender da aceitação do exequente».

Entendimento semelhante é preconizado por Rui Pinto (cit., p. 1017) escreve o seguinte:

«No mesmo prazo de 20 dias o executado pode cumprir a prestação, como dissemos. Esse facto deve ser atestado pelo agente de execução.
CASTRO MENDES, e bem, defendia que se o cumprimento da prestação exigir prazo superior a estes 20 dias e “o executado se mostrar seriamente pronto a realizá-la” existe motivo justificado para suspensão da instância executiva ao abrigo do artigo 279° n°1, atual artigo 272° n° 1 in fine. Tal solução continua a ser a correta, cabendo ao juiz aferir se pode ou não a execução ser suspensa. Pode é discutir-se se o exequente deve dar a sua concordância a essa suspensão, quando não seja ele a requerê-la».

Mas, repete-se, a lei não impõe nem permite que o tribunal convide o executado a prestar o facto ou lhe fixe novo prazo para o efeito antes de o processo prosseguir como execução para pagamento de quantia certa."

[MTS]

Bibliografia (1233)


-- Korves, R.Rechtswegübergreifende Bindungswirkungen, Duncker & Humblot, Berlin, 2026 [OA]

Jurisprudência 2025 (50)


Depoimento de parte;
factos favoráveis; apreciação


1. O sumário de RC 25/2/2025 (1152/23.7T8CTB.C1) é o seguinte:

i) O depoimento de parte visa a obtenção de confissão de factos desfavoráveis ao confitente e que favoreçam a parte contrária, sendo esse o fim pretendido com o depoimento de parte (arts. 352º do CC, 452º e 463º do NCPC);

ii) O anterior CPC não admitia que o depoimento de parte pudesse ser probatoriamente valorado na parte em que lhe fosse favorável, mas o novo CPC de 2013 admite a prova por declarações de parte, a serem valoradas livremente pelo julgador; assim, a parte pode é aspirar a que o seu depoimento na parte que lhe seja favorável seja aproveitável, mas para que isso aconteça tem que manifestar, no acto de produção deste, que as declarações favoráveis que faça sejam valoradas como prova sujeita a livre apreciação do julgador, desde que a parte contrária esteja presente, ou lhe seja dada a possibilidade de igualmente ser ouvida;

iii) Afirmando o tomador do seguro, para efeito de contrato celebrado, ser ele o condutor habitual da viatura objecto do seguro, escondendo da Seguradora que o verdadeiro condutor habitual era o seu filho, jovem encartado ainda em regime probatório, nos termos do C. Estrada, com o intuito de obter um prémio muito mais barato do que o seu filho devia pagar, caso fosse ele a efectuar o seguro, este comportamento gera a anulabilidade desse contrato de seguro por inexactidão dolosa quanto à declaração de risco, nos termos do art. 25º, nº 1, da L. Contr. Seguro.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC).

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da decisão da matéria de facto. [...]

2. A R. impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados 23., 24., 25. 26., 28. e 33., que pretende passem a não provados, 31., 32. e 38., nos quais pretende aditamento/alteração, e factos não provados f) e g), que pretende passem a provados, com base nas declarações de parte da A., e depoimentos testemunhais de BB e CC e prova documental (docs. 1 e 3 da contestação e 9 da p.i.), conforme as suas conclusões de recurso (as 3. a 26.). Enquanto a recorrida defende a improcedência das mesmas, com base no depoimento da testemunha BB e acareação entre a testemunha CC e a A. (cfr. conclusões 2ª a 5ª). 

O julgador exarou a seguinte motivação quanto à matéria impugnada:

“O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou lógicas, que são meios legalmente admitidos para a valorização das provas e de formação da convicção. (…)

No que respeita aos factos 22) a 28), atinentes à utilização do veículo ..-..-DM, o Tribunal ponderou o teor do depoimento de parte de AA, na parte não desfavorável, e do depoimento de BB.

Não se ignora que o teor das declarações de parte ou do depoimento de parte na parte em que o mesmo não seja desfavorável à própria parte que o emite deve ser sempre atendido e valorado cum grano salis. Aliás, não se pode negligenciar que não são, pela sua própria natureza, declarações desinteressadas, uma vez que quem as emite tem um manifesto interesse na causa. Na verdade, «nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação» (LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Prova Testemunhal, Almedina, 2017, p. 366). Neste sentido, também sustenta ESTRELA CHABY (O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 50) que, em relação ao valor probatório das declarações de parte, afirma que «vale a regra da livre apreciação, nada se dispondo quanto à possibilidade/impossibilidade de as declarações fundarem, por si só, a convicção do julgador, o que, a suceder não constituiria caso inédito na legislação portuguesa». Também no Acórdão do TRL, 26-04-2017, processo n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7, (disponível em www.dgsi.pt) se afirma ser incorrecto degradar «o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio» (e na jurisprudência, neste mesmo sentido, ver Acórdão do TRG, de 01-10-2020, Proc. 3461/16.2T8BRG.G2, «[é] valorizado, credibilizado pelo princípio da livre apreciação das provas, valendo por si, mesmo que não haja outros elementos de prova coadjuvantes», e da mesma Relação, de 13-09-2018, Proc. 159/17.8T8FAF.G1). Mas também não se pode ignorar que as declarações de parte isoladas em si serão, por princípio, insuficientes para dar como provados determinados factos. Assim, é «normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie», Acórdão do TRP, 23-03-2015, Processo n.º 1002/10.4TVPRT.P1 (disponível em www.dgsi.pt.), devendo atender-se às regras da racionalidade, da experiência, da normalidade do acontecer e às circunstâncias concretas que se oferecem no caso 2No sentido de que, por si só, não têm expressão probatória («As declarações de parte devem ser valoradas autonomamente, mas de forma integrada com os demais elementos de prova», «[s]endo as declarações de parte o único suporte probatório nesse sentido, não se pode dar como provados os factos constitutivos do direito alegado pelo A. unicamente com base nas suas declarações de parte», Acórdão do TRL, 28-05-2019, Processo n.º 97280/18.4YIPRT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, e v. no mesmo sentido Acórdãos do TRC, de 08-07-2021, Proc. 5281/19.3T8VIS.C1, do TRP, de 12-07-2021, Proc. 1016/20.6T8PNF.P1).. A contextualização do relato e a existência de corroborações periféricas constituem critérios adicionais que, de forma válida, poderão sedimentar a credibilidade do testemunho (de parte) prestado, neutralizando o argumento do interesse do testemunho.

No caso em apreço, o depoimento de parte da Autora foi coincidente com o depoimento da testemunha BB (filho da Autora) no que respeita à utilização do carro. Estamos perante familiares próximos (mãe e filho) e poder-se-ia dizer que, por esse facto, o filho quereria beneficiar a posição processual da mãe. Contudo, isso é um argumento genérico e abstracto, e que no caso merece ser afastado não só por a prova produzida em sentido contrário ser remota (a lá chegaremos), mas também por haver elementos nos autos que indiciam que efectivamente havia uma utilização habitual do carro pela Autora.

Por um lado, temos o depoimento de parte da Autora no sentido de que utilizava o carro ..-..-DM diariamente, sendo certo que esporadicamente emprestava o mesmo ao seu filho (nas idas à ..., local onde o mesmo estudava), e apenas tão-só quando o mesmo não obtinha boleia, apanhava autocarro ou mesmo quando a mãe não o levava até lá.

O depoimento do filho secunda o da Autora, concretizando-o em determinados aspectos, designadamente a quantidade de vezes que o carro lhe era cedido pela Autora para se deslocar a ..., deixando assente na instrução da causa que o empréstimo do carro era feita de forma residual e excepcional, apenas tão-só quando não conseguia ir de boleia com amigos ou ir de autocarro. Este último era, aliás, o meio de transporte preferencial do depoente, conforme deu nota, precisando os horários por si utilizados e a companhia de autocarro na qual seguia viagem.

Naturalmente surge prova que pode causar algumas dúvidas a esta versão trazida pela Autora.

Em sentido dissidente, surge o depoimento de CC, perito averiguador da Ré. Ora, relacionado com esta testemunha surgem duas declarações escritas da Autora e do filho BB, vertidas a fls. 148, nos quais estes supostamente admitiriam que o condutor habitual do veículo era o filho e que apenas indicaram à mediadora de seguros que o condutor habitual era a mãe para obter um prémio mais reduzido.

Este depoimento carece de aprofundamento.

O perito averiguador da Ré referiu, em primeira linha, que as declarações escritas a fls. 148 tinham sido lavradas pela Autora e respectivo filho por iniciativa destes e sem qualquer intervenção externa, sendo certo que havia apenas orientado ao nível da descrição do acidente. Após, confrontado com a singularidade de se escrever numa «descrição de acidente» elementos completamente estranhos (designadamente que o filho da Autora era o condutor habitual e que a Autora se havia indicado como condutora habitual para conseguir um prémio mais barato), inflectiu referindo que apenas havia dito àqueles para escrever aquilo que tinham dito ao perito.

Este depoimento há que ser contemporizado pelos seguintes factores. Em primeiro lugar, o perito averiguador tem naturalmente interesse em demonstrar o que é favorável à seguradora. E não é uma entidade equidistante ou sequer naturalmente imparcial ou isenta. Em segundo lugar, a natureza das declarações referidas em 31) e 32) surgem enxertadas num corpo de texto que apenas tem que ver com a descrição do acidente. Logo, são inusitadas. E nem sequer nos parece ser de cogitar, de acordo com as regras da experiência comum, que um segurado/sinistrado preste declarações por escrito, por sua alta recreação, e num campo alusivo à dinâmica do acidente, que sejam respeitantes a outros aspectos externos (e que, por acaso, eram favoráveis à seguradora e à possibilidade de se eximir da responsabilidade de indemnizar pelo sinistro). Em terceiro lugar, os depoimentos da Autora e de BB dão nota de que o perito averiguador utilizou estratagema para arrancar as supostas declarações confessórias daqueles, aludindo à possibilidade de aqueles terem incorrido na prática de um crime, ao ter dado informações erradas na declaração amigável do acidente. Ora, essa advertência por parte do perito poderá ter causado nos declarantes medo e ter atiçado a chama inflamante motora e causadora dos textos em causa, com a promessa de que tudo se resolveria se assinassem nos termos que, a final, ficaram vertidos a fls. 148.

O perito averiguador, no encontro referido nos factos provados, referiu ainda ter tido acesso aos documentos respeitantes a uma factura da B..., em nome de BB, e à declaração para efeitos de seguro (o que foi confirmado pela testemunha BB), o que foi o móbil para que aquele arrancasse à Autora e ao seu filho as aludidas declarações confessórias.

Ademais, é consabido que a Ré (leia-se o perito averiguador CC) utilizou no respectivo relatório de averiguação o argumento de que a Autora havia preenchido erradamente a declaração amigável em pelo menos três pontos (nome do condutor e sua data de nascimento, dia e hora diferentes da participação da GNR, vd. fls. 5 do relatório junto como documento n.º 3 da contestação), pelo que é totalmente crível que o perito averiguador tenha lançado desses argumentos anteriormente para confrontar a Autora e o seu filho, e que tenha até sugerido que os mesmos teriam problemas com a seguradora e, até mesmo, problemas criminais por falsificarem documento.

Por outro lado, em sede de acareação determinada em audiência final, entre a Autora, a testemunha BB e a testemunha CC, os primeiros souberam manter convictamente as suas versões, e o último cedeu a um nervosismo estranhamente revelador (sendo certo que apresentou uma postura em Tribunal estranhamente medrosa ao longo de todo o seu depoimento), resvalando para uma inicial ameaça de que iria participar criminalmente dos primeiros, sem defender ou manter convicta e objectivamente a sua versão dos acontecimento.

Tudo concatenado, a convicção do Tribunal é que, não só ocorreram os factos 29) a 33), que vão provados em face do que acima se disse, como também que as declarações apresentadas a fls. 148 não representam uma confissão de que o filho da Autora é que era o condutor habitual – antes foram fabricadas e maquinadas intelectualmente pelo perito averiguador da Ré, que entreviu uma possibilidade de alcançar uma posição vantajosa para a Ré, cominando e advertindo a Autora e filho que poderiam ter incorrido na prática de um crime. [...]"

Relativamente à A., ouvimos o seu depoimento de parte, gravado em CD. O tribunal ponderou e a recorrente pretende ponderar o mesmo. Acontece que o depoimento de parte da A. foi requerido aos arts. 10º e 11º da contestação que retratavam a alegação do que está hoje plasmado nos factos não provados f) e g), este em parte. Todavia a A. não confessou estes factos, como se pode constatar da audição do seu depoimento, nem por isso existe qualquer assentada. Portanto, do seu depoimento de parte não resultou qualquer confissão de factos desfavoráveis que favoreçam a parte contrária, sendo esse o fim visado com o depoimento de parte (arts. 352º do CC, 452º e 463º do NCPC).

O anterior CPC não admitia que o depoimento de parte pudesse ser probatoriamente valorado na parte em que lhe fosse favorável. Entretanto o novo CPC de 2013 admite a prova por declarações de parte, a serem valoradas livremente pelo julgador.

Assim, a parte pode é aspirar a que o seu depoimento na parte que lhe seja favorável seja aproveitável, mas para que isso aconteça tem que manifestar, no acto de produção deste, que tal depoimento se volva em declarações de parte, isto é, que as declarações favoráveis que faça sejam valoradas como prova sujeita a livre apreciação do julgador, desde que a parte contrária esteja presente, ou lhe seja dada a possibilidade de igualmente ser ouvida (vide neste sentido Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, à LUZ do CPC de 2013, 3ª Ed., págs. 259/260).

O que não aconteceu, pois não está registado na acta da audiência de julgamento, nem consta da gravação, tal requerimento ou pretensão. Daí que, não havendo confissão relativamente a tais 2 factos, o que a A. disse no seu depoimento de parte, com carácter favorável a ela não podia ser apreciado livremente pelo tribunal a quo, nem pode clamar qualquer valor probatório, de apreciação livre, que traga alguma vantagem à R./recorrente."


*3. [Comentário] Salva a devida consideração e se bem se percebeu a orientação da RG, não se pode acompanhar a sua posição. 

A parte é chamada a depor pela outra parte, procurando-se que desse depoimento resulte uma confissão pela parte de factos que lhe são desfavoráveis. Durante o depoimento, a parte refere factos que lhe são favoráveis.

Pergunta-se: a parte tem o ónus de requerer que o seu depoimento "se volva em declarações de parte", sob pena de as suas declarações não poderem sequer ser livremente apreciadas pelo tribunal?

Sinceramente, trata-se de uma solução que não se acompanha, tanto mais que a prova por declarações de parte pode ser determinada oficiosamente pelo tribunal (art. 466.º, n.º 2) e, portanto, oficiosamente apreciada por esse tribunal.

MTS

09/12/2025

Bibliografia (1232)


-- Marinoni, L. G., Tutelas estruturais, RePro 365 (2025), 293


Jurisprudência 2025 (49)


Competência material;
acção de reivindicação; Município


I. O sumário de RC 25/2/2025 (1372/23.4T8CTB.C1) é o seguinte:

1. Para verificar competência material de um tribunal há que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo avaliar-se a natureza da pretensão formulada ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional (pedido) os factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito (causa de pedir).

2. O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais ou comuns é constitucionalmente definido por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (cf. artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, 64.º do Código de Processo Civil, e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

3. O artigo 4.º, n.º 1, alínea i) do ETAF, na redacção do DL n.º 214-G/2015, de 02-10, ao estatuir que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…) “Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”, apenas atribui a competência material aos tribunais administrativos para as acções em que esteja em causa a remoção de actuações ilegais da Administração, “via de facto”, materializadas em actos concretos (v.g., ocupação ou apropriação física de propriedade privada).

4. Se a acção proposta contra um Município foi configurada como uma típica acção de reivindicação, assente numa situação jurídica de direito privado, visando obter a tutela judicial do direito de propriedade, o qual se encontra regulado por regras de direito privado, a competência continua a caber, como sempre aconteceu, à jurisdição comum e aos tribunais cíveis.

5. A circunstância de na acção de reivindicação ser deduzido um pedido indemnizatório contra o Município, que pode ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, não obsta àquela competência, já que esse pedido, tal como formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na decisão impugnada o tribunal a quo considerou que se verifica incompetência material do Juízo Central Cível, baseando a sua decisão no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, que prescreve que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.

Expendeu para tanto que: 

“Da citada disposição legal, decorre que todas as ações que tenham por objeto a interpretação, validade e execução de contratos respeitantes a bens do domínio público são da competência dos tribunais administrativos.

Atentos os considerandos expendidos e as normais legais aplicáveis, podemos concluir que só os Tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar todas as questões relativas à interpretação, interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica regulada por normas de direito público, como é o caso da classificação dos “espaços verdes”.

A propósito desta questão, como o réu bem refere na sua contestação, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 28.09.2012, no Processo n.º 023/09, in www.dgsi.pt, o qual decidiu que “os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. art. 4.º, n.º 1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição. Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atento a natureza pública do bem objeto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado «estatuto de dominialidade»

Ora, analisando a petição inicial, verificamos que a autora pretende, e no essencial, que o réu seja condenado a restituir-lhe a área de 4.573,8 m² da denominada parcela B2, a qual foi posta em causa pelo réu com o fundamento de que se encontra afeta ao domínio público, por corresponder a “área verde”.

Nesta medida, sendo a ré uma pessoa coletiva de direito público e pretendendo o autor o reconhecimento e restituição da parcela corresponde a “área verde” como sua propriedade é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da presente ação.” (sic).

Vejamos se assim é.

A competência jurisdicional resulta da medida da jurisdição atribuída aos diversos tribunais, isto é, do modo como eles repartem entre si o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto de todos os tribunais.

Para que um tribunal possa decidir sobre o mérito de um determinado processo judicial é indispensável, antes de mais, que a acção seja proposta perante o tribunal competente para a sua apreciação, traduzindo-se esse pressuposto processual na susceptibilidade de análise de determinada causa ou litígio, por os critérios determinativos legalmente estatuídos concederem a um tribunal uma medida de jurisdição suficiente para essa avaliação.

Para se fixar a competência do tribunal em razão da matéria deve atender-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em Juízo pelo demandante – a este respeito, cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pp. 74/75, e Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, p. 379.

Como ensinava Manuel de Andrade, em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o tribunal, a competência afere-se pelo quid disputatum ou quid decidendumi.e., a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta – op. cit., p. 91.

Numa outra formulação, para verificar competência de um tribunal há que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo avaliar-se a natureza da pretensão formulada ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional e, ainda, os factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir.

Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros arestos:

– Acórdão do Tribunal dos Conflitos [---] de 20-09-2012, Proc. n.º 2/12: “A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos, sendo que em sede da indagação a proceder a este nível irreleva o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão”.

– Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 01-10-2015, Proc. nº 08/14: “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.

Sintetizando: é a estrutura da causa, tal como vem configurada pelo autor, a determinar a competência material do tribunal.

Na situação em apreço, segundo a causa de pedir e pedidos formulados na petição inicial, o que está em causa neste processo é, no essencial, o reconhecimento do direito de propriedade sobre a área real de um lote industrial (designado “B2”), alegando a recorrente, fundamentalmente, que: (a) desde sempre esse lote teve uma área bem superior à descrita no registo predial; (b) a realidade física e material do lote permanece inalterada há mais de 30 anos; (c) o lote está circunscrito, desde a sua criação, com uma vedação inalterada de arame, fixa em prumos de ferro e com entradas devidamente marcadas; (d) o lote, desde sempre, está delimitado, a poente, por um caminho em terra batida que bordeja toda a vedação existente, nessa confrontação, delimitadora da área do lote “B6”.

Em suma, o que a autora/recorrente pretende é o reconhecimento do seu direito de propriedade plena sobre a realidade física e material do lote industrial “B2” e a restituição do que alegadamente lhe foi retirado pelo Município ....

O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais ou comuns é constitucionalmente definido por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme se alcança da leitura concatenada dos arts. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa [---], 64.º do Código de Processo Civil [---] e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013 [---]

Segundo Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, 1999, pp. 31/32: “A competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal”.

Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do artigo 212.º da Constituição, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”.

Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídica administrativa ou fiscal, tal como explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Volume II, 2010, pp. 566/567, deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”.

Também no Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 20-09-2012, Proc. n.º 07/12, se aduz: “Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.”.

O tribunal recorrido, como se referiu anteriormente, entendeu estar-se perante uma relação jurídica administrativa, e enquadrou a situação sub judice no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, concluindo “(…) que só os Tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar todas as questões relativas à interpretação, interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica regulada por normas de direito público, como é o caso da classificação dos “espaços verdes”.

Salvo o devido respeito essa solução é errada, sendo certo que a alínea e) do art. 4º do actual ETAF mencionada pelo tribunal a quo nada tem a ver com o caso em discussão, referindo-se, apenas, a matérias contratuais.

A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, presentemente, está concretizada no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19-02, sucessivamente alterada em 16 ocasiões, tendo a 16.ª e última alteração sido introduzida pelo DL n.º 74-B/2023, de 28-08, reafirmando-se no artigo 1.º, n.º 1, do ETAF que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

O artigo 4.° do ETAF enuncia, através de enumerações, o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, definindo a título exemplificativo, pela positiva, os litígios nela incluídos (n.º 1) e pela negativa, os litígios dela excluídos (n.ºs 2 e 3).

Como refere Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 5ª edição, p. 118, a generalidade das alíneas do n.° 1 do citado preceito legal – com excepção de parte das alíneas b), e), g) e h), relativas a matéria de contratos e de responsabilidade civil – visa apenas a concretização positiva do aludido conceito de matriz constitucional, os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.

Um litígio emergente de relações jurídico-administrativas, como se verificou supra, será aquele que envolva uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, assim como aquele que se inscreva em relações que conferem poderes de autoridade ou impõem restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribuem direitos ou impõem deveres públicos aos particulares perante a Administração.

Analisando as várias alíneas que compõem o artigo 4.º, n.º 1, do ETAF – “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…)” – , anota-se que com a revisão pelo DL n.º 214-G/2015, de 02-10, a alínea i) daquele preceito legal passou a ter a seguinte redacção: “Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”.

Lê-se no preâmbulo do DL n.º 214-G/2015 que: “(…) [E]stende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.

Interessa aqui apurar se a alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, na versão emergente daquele diploma legislativo, abrange, ou não, as acções reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à actuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.

Mário Aroso de Almeida – cf. Manual do Processo Administrativo, 2.ª edição, 2016, p. 171 – expende que: “Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”.

Jorge Pação – cf. Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF, “Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF”, 2.ª Edição, 2016, p. 197 –, sustenta que “(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum”.

Carla Amado Gomes – cf. Temas e problemas da justiça administrativa, 2018, pp. 39-56 e Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título, “Revista do Ministério Público”, n.º 15, Abril/ Junho, 2016, pp. 89-109 – sustenta que a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em “via de facto”, que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar, não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida.

Na avaliação da questão em apreço importa ter presente o disposto no artigo 9.° do Código Civil, sob a epígrafe “Interpretação da lei”:

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Empreendendo a tarefa interpretativa do normativo previsto no artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF, de acordo com as coordenadas legais antes enumeradas, i.e., partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, afigura-se-nos, à semelhança do entendimento já sustentado em diversíssimos Acórdãos, que a norma contida no citado normativo deve ser interpretada no sentido de apenas atribuir a competência aos tribunais administrativos para as acções em que esteja em causa a remoção de actuações ilegais da Administração,“via de facto”, materializadas em actos concretos – v.g., ocupação ou apropriação física de propriedade privada.

Já, porém, se apenas discutir a titularidade do direito de propriedade sobre um imóvel, mormente no âmbito de acções de reivindicação, a competência continua a caber, como sempre aconteceu, à jurisdição comum e aos tribunais cíveis.

In casu, verificados os contornos do litígio, é manifesto que a autora/recorrente o configurou como uma típica acção de reivindicação, afirmando o seu domínio sobre um lote de terreno e articulando os factos que permitem estribar essa titularidade, peticionando o reconhecimento do seu direito e a restituição da coisa.

Trata-se, por conseguinte, de uma típica acção real, assente numa situação jurídica de direito privado, visando obter a tutela judicial do direito de propriedade, o qual se encontra regulado, não por normas ou institutos de direito público, mas por regras de direito privado, constantes dos artigos 1311.° e 1316.° do Código Civil.

Deste modo, a relação material controvertida, tal como é caracterizada pela autora, não se inscreve, de modo algum, em nenhuma das alíneas do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, mormente na alínea i).

Acresce que, tal  como se decidiu no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 18-04-2023, Proc. n.º 022/22 (citando o Acórdão daquele Tribunal, de 23-01-2020, Proc. n.º 041/19), a circunstância de o pedido indemnizatório formulado contra o Município ... – cf., in casu, alíneas D) e H) do petitório – poder ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual não obsta a esta conclusão, já que esse pedido, tal como está formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal.

Ou seja, o pedido indemnizatório constitui mera consequência da reivindicação da propriedade, sendo consequente aos pedidos de reconhecimento do domínio e de restituição da coisa – cf. alíneas A), B) e C) e E), F) e G) do petitório.

A solução que por nós é perfilhada é, aliás, idêntica à adoptada pelo Tribunal dos Conflitos no Proc. n.º 036/21, de 08-11-2022:

“Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4°, nº 1 do ETAF abrange, ou não as acções reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.

Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9° do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2). Atente-se ainda que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).

Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.

Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.”.

De resto, o Tribunal dos Conflitos, já após a nova redacção do artigo 4.º do ETAF, tem entendido, de forma unânime, que a competência material para o conhecimento de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no âmbito da jurisdição administrativa, devendo ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual.

A este respeito, vejam-se, entre outros:

(i) Acórdão de 30-11-2017, Proc. n.º 011/17: “Se a acção se constitui como de reivindicação, já que a propriedade do terreno, que o Recorrido questiona alegando que o terreno pertence ao domínio público, surge como o que está em questão a título principal, pedindo-se a restituição integra da coisa indevidamente ocupada (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), a competência material para conhecer da mesma cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC)”.

(ii) Acórdão de 13-12-2018, Proc. n.º 043/18: “A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais, mesmo que cumulativamente se formule um pedido indemnizatório contra a entidade pública”.

(iii) Acórdão de 23-01-2020, Proc. n.º 041/19: “I - A competência material do tribunal afere-se em função do modo como o autor configura a acção, essencialmente definida pelo pedido formulado e pela causa de pedir invocada. II - Se os autores visam primordialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio rústico e, em consequência, a condenação dos réus a devolvê-lo no estado em que se encontrava inicialmente, mostra-se delineada uma acção onde os pedidos formulados correspondem a uma acção de reivindicação, alicerçada em aquisição originária e derivada e em facto presuntivo do direito de propriedade. III - O conhecimento dessa acção cabe na jurisdição dos tribunais comuns que são igualmente competentes para decidirem dos pedidos cumulados deduzidos com o pedido principal”.

(iv) Acórdão de 02-12-2021, Proc. n.º 03802/20.8T8GMR.G1.S1: “É da competência dos Tribunais Judiciais uma acção instaurada contra uma entidade pública na qual a autora pede que se reconheça o direito de propriedade que alega e que a ré restitua a parcela de terreno que indevidamente ocupou, invocando que adquiriu o direito por usucapião e que sempre beneficiaria da presunção de titularidade do direito de propriedade fundada, quer no registo predial, quer na posse”.

(v) Acórdão de 15-02-2023, Proc. nº 010/21: “Tal como a Autora apresenta o litígio, formulando pedidos que têm subjacente o direito de propriedade, que invoca e pretende fazer prevalecer, a relação controvertida é uma relação de direito privado, tratando-se da defesa do direito de propriedade de um bem do domínio privado da freguesia, pelo que a competência para conhecer desta acção em que se discutem direitos reais não se inclui no artigo 4º do ETAF, devendo esta ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual”.

(vi) Acórdão de 20-06-2024, Proc. n.º 01439/23.9BEBRG: “É da competência dos Tribunais Judiciais julgar uma acção declarativa de simples apreciação negativa na qual a questão central é a da titularidade do direito de propriedade de um bem invocado pelos Autores e da sua defesa perante a actuação dos Réus”.

Deste modo, não se enquadrando a relação jurídica em causa no processo sub judicio, tal como figurada pela autora/recorrente, no artigo 4.º do ETAF, uma vez que as pretensões formuladas radicam no direito real de propriedade, a competência material para apreciar a acção cabe aos tribunais judiciais.

Assim sendo, a competência material para a apreciação da presente acção pertence, no caso, ao Juízo Central Cível de Castelo Branco, de acordo com as disposições combinadas dos artigos 64.º do Código de Processo Civil, e 40.º, n.º 1, e 117.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização do Sistema Judiciário."

[MTS]