"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/11/2025

Jurisprudência 2025 (32)


Decisão-surpresa;
pressupostos, consequências*


1. O sumário de RP 10/2/2025 (279/23.0T8BAO.P1) é o seguinte:

I - Ao contrariar todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual, e arredar na sentença do respetivo conhecimento determinados meios de prova já admitidos, por configurarem, no entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, meio de prova ilícita, sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), o Tribunal de 1ª instância proferiu verdadeira decisão surpresa, porquanto respeita a prova que se relaciona com matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e que foi dada como não provada, violando o princípio do contraditório.

II - Essa decisão não está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento, tendo sido proferida sem que a Apelante tenha tido a oportunidade de expor os seus argumentos, de forma a convencer (ou não) o Julgador da sua decisão, num momento em que não era expectável a prolação da referida decisão.

III - Neste caso, a não observância do contraditório constitui uma nulidade processual, que é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia - artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil -, dado que, sem a prévia audição das partes, o Tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.

IV - As circunstâncias que determinam a nulidade da sentença impedem que, no caso, o Tribunal ad quem faça uso da regra da substituição prevista no artigo 665º Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1 – Se a sentença proferida está inquinada de nulidade, por constituir decisão surpresa, violando o disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil

Sustenta a Recorrente, sob as conclusões Z e AA do recurso, que ao arredar do conhecimento determinados meios de prova já produzidos, por suposta “nulidade” dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, o Tribunal a quo proferiu verdadeira decisão surpresa, inquinada de nulidade, violando assim o artigo 3º, do Código de Processo Civil.

Em concreto, está em causa a violação do nº3, do citado preceito, nos termos do qual “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

O citado artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, isto é, nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Cfr. “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 31.], “a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”. Segundo estes autores, “antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)” (ob. cit., pág. 32). [...]

Pretende-se, por esta via, evitar a formação de “decisões surpresa”, ou seja, decisões sobre questões de direito material ou de direito processual, de que o Tribunal pode conhecer oficiosamente, sem que tenham sido previamente consideradas pelas partes.

Por isso se entende que é ainda uma decorrência do princípio do contraditório a proibição de decisões surpresa, com as quais nos deparamos sempre que a solução dada pelo Tribunal a uma questão comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever que fosse proferida. [...]

O exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, decisiva para a sorte do pleito, porque relativa a factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base da decisão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

Com este princípio pretendeu o legislador, como já acima salientamos, impedir que as partes fossem surpreendidas com soluções de direito inesperadas, seja através do conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual.

Este entendimento amplo do princípio do contraditório, afirmado pelo nº3, do artigo 3º, do Código de Processo Civil, não afasta os poderes de subsunção ou de qualificação jurídica que o artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil confere ao juiz - tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Trata-se, apenas, de impor ao julgador o dever de, previamente ao exercício de tais poderes, proceder à audição das partes, sempre que pretenda decidir uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, com recurso a um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

Revertendo ao caso concreto, e tendo presente as considerações que antecedem, importa decidir se assiste razão à Apelante quanto invoca a surpresa da decisão proferida pelo Tribunal a quo ao arredar do conhecimento determinados meios de prova.

Em causa está a parte da motivação da sentença que a seguir se transcreve:

Para a consignação da matéria de facto o Tribunal atentou nos factos alegados pelas partes, dado o ónus que sobre as mesmas impende.

Sucede que foi alegada matéria – artigos 27.º e 28.º da Petição Inicial aperfeiçoada - referente a questões que são susceptíveis de integrar as alíneas d) a f) do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro). Mais, para prova do alegado foram juntas comunicações escritas.

Competindo a este Tribunal apreciar a legalidade dos meios de prova, diremos que todas as denominadas comunicações electrónicas juntas em sede de Petição Inicial e Petição Inicial aperfeiçoada, correspondem a documentos comunicados à Autora por co-interessado nos factos que aqui se dilucidam (o Sr. AI, visto que na origem dos mesmos está um acto por este praticado - pedido de coadjuvação da Autora). E do teor das aludidas comunicações se percebe que Causídico terá realizado intervenção no sentido de colocar termo ao presente litígio, tendo solicitado - não se sabe em que termos, ou porquê, mas tal tem a ver com o seu ofício - pagamento a prestações do valor reclamado pela Autora.

Em face do exposto não podem as aludidas comunicações ser admitidas como sendo meio legal de prova, e nessa senda os factos que se extrairiam dos mesmos (o teor da comunicação) não foram vertidos na matéria de facto, tanto mais que Ilustre Causídico nas aludidas comunicações, por várias vezes fez constar “Aviso: Esta mensagem é exclusivamente dirigida ao seu destinatário e contém informação confidencial e sujeita a segredo profissional, cuja divulgação não é permitida por lei. Se por erro não for o destinatário desta mensagem, agradecemos que, de forma imediata, dê conhecimento de tal facto por correio electrónico ou através de telefone (+351 ...) bem como proceda à eliminação desta mensagem e de eventuais ficheiros anexos. Sendo esse o caso, informamos ainda que a distribuição, cópia ou utilização desta mensagem, ou de qualquer ficheiro anexo, qualquer que seja a sua finalidade, são proibidas por lei”, e não autorizou (sem discutir se o poderia fazer, porquanto não releva) a divulgação de tais comunicações, e inexiste, nem foi requerida, dispensa de sigilo profissional, para utilização e consequente valoração das mesmas.

Donde, não se teve em conta o alegado em 27.º e 28.º da Petição Inicial aperfeiçoada e as comunicações (e-mail) por esta juntas com intervenção de Causídico em nome do Réu.

Sem prejuízo se dirá, que os efeitos pretendidos retirar pela Autora com tais comunicações (aceitação pelo Réu de pagamento de comissão) poderia ser conseguido por outro meio de prova, designadamente Testemunhal, ou depoimento de parte do Réu. [...]

Note-se que nos artigos 27.º e 28.º da petição inicial aperfeiçoada a Apelante alegou o seguinte:

27.º

Sendo que, pasme-se, o próprio advogado do Réu, na referida troca de emails (vide Doc. n.º 29) além de solicitar o pagamento das guias dos impostos, informa o mesmo do seguinte: «Para além disto, como já lhe transmiti, terá que pagar a comissão à leiloeira no valor de € 15.081,34 (IVA incluído).

Como é do S/ conhecimento solicitei à leiloeira o pagamento daquele valor em prestações, tendo a leiloeira solicitado o envio de um mail com a proposta de pagamento em prestações.

Nesse sentido, peço que me indique se podem entregar algum valor de entrada e quanto podem e propõem pagar por mês.»

28.º

Desde logo, facilmente se percebe que o Réu teria (e tem porque ainda não pagou) que pagar a comissão devida à Autora pela venda efetuada pela mesma.”

Mais sustenta a Apelante que o documento 29 respeita a um e-mail enviado pelo Ilustre Mandatário do Recorrido ao mesmo e que aquele, posteriormente, reencaminhou para o Administrador da Insolvência.

No contraditório àquela petição inicial aperfeiçoada o Réu, nos artigos 13º a 15º, invocou o seguinte:

13º

Cabendo salientar que é absolutamente ilícita, por violadora do dever de segredo profissional a que estão vinculados os Advogados o alegado em 27º PI assim como a junção do doc. 29, o qual deve ser desentranhado dos autos.

14.º

Trata-se de grosseira violação do segredo profissional e, como tal, de prova ilícita, que nada pode provar em juízo – cfr. Art. 92º E.O.A.

15.º

Consubstanciando ainda grave ilícito disciplinar e, como tal, devendo extrair-se certidão dos autos remetendo-se a mesma à Ordem dos Advogados, para os competentes fins disciplinares”.

Conforme se consignou no relatório deste acórdão, na decisão de 7 de maio de 2024, o Tribunal recorrido dispensou a audiência prévia, proferiu despacho saneador, identificou o objeto do litígio, enunciou os temas da prova, admitiu os requerimentos probatórios e agendou a audiência de julgamento.

Nesse despacho, quanto à prova documental, o Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:

Da produção de prova

> Da Prova documental

Ao abrigo do artigo 423.º do Código Processo Civil, por a sua junção se mostrar legal e tempestiva, não se revelarem impertinentes ou desnecessários e se afigurarem, em abstracto, úteis à descoberta da verdade admitem-se os documentos juntos com os articulados (iniciais e aperfeiçoados).”

Perante este despacho, sustenta a Apelante que o Tribunal recorrido, até à prolação da sentença apelada, em momento algum manifestou recusa em aceitar os documentos, admitindo-os plenamente.

É certo que a admissão de documentos não se confunde com a sua valoração.

No entanto, no caso concreto, perante o que havia sido alegado pelo Réu em sede de contraditório à petição inicial aperfeiçoada, não tendo o Tribunal de 1ª instância ordenado o desentranhamento do documento 29 nem tecido qualquer consideração relativamente à invocada violação do dever de segredo profissional que aquele documento (bem como as demais comunicações eletrónicas juntas aos autos) poderia configurar, afigura-se-nos legítimo concluir que tal despacho, ao admitir todos os documentos juntos com os articulados, tenha criado nas partes e, em particular, na Apelante, a convicção de que os mesmos seriam efetivamente considerados na decisão final e, nessa medida, acabou por conduzir a Recorrente a não requerer o que tivesse por conveniente, como seja, caso assim o entendesse, a dispensa de sigilo profissional para utilização e consequente valoração daquele documento (e das demais comunicações eletrónicas juntas aos autos), ou a produzir outros meios de prova.

Ao contrariar, desse modo, todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual e, do mesmo modo, ao posteriormente, arredar do respetivo conhecimento determinados meios de prova já admitidos, por configurarem, no entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, meio de prova ilícita, sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), o Tribunal de 1º instância proferiu verdadeira decisão surpresa, porquanto respeita a prova que se relaciona com matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e que foi dada como não provada sob a alínea a), relativa ao conhecimento e aceitação por parte do Réu das condições gerais da venda dos imóveis que este adquiriu no âmbito da insolvência, em que foram declarados insolventes os seu pais.

Perante a prolação de tal decisão surpresa, é legítimo concluir que o Tribunal violou o princípio do contraditório.

Sustenta a Recorrente que essa omissão do exercício do contraditório por parte do Tribunal recorrido, ao arredar na sentença a valoração de determinados meios de prova já produzidos, por suposta nulidade dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, sendo uma verdadeira decisão surpresa, inquina a sentença de nulidade, não concretizando se estamos perante uma nulidade processual ou uma nulidade da sentença. [...]

Na lição cristalina de Miguel Teixeira de Sousa, tendo em vista distinguir uma nulidade processual das nulidades da sentença, dir-se-á que “Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas:

- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual;

- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte.

No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação.

Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.

Do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação.

Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual.

Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte.

É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar:

- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); mas não é certamente por acaso que esta nulidade é também a única que constitui uma excepção dilatória (cf. art. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al, b), CPC);

- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC.” - O que é uma nulidade processual? In Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.

No caso concreto, como já supra se consignou, a Apelante dirige a sua impugnação ao conteúdo da sentença que não teve em consideração o alegado nos artigos 27º e 28º da petição inicial aperfeiçoada e não valorou as comunicações eletrónicas juntas como documento nº 29, por entender que não são meio de prova legal, pois que a sua valoração violaria o dever de segredo profissional, a que aludem as alíneas d) a f) do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro, uma vez que não existe, nem foi requerida dispensa de sigilo profissional para a utilização e consequente valoração daquelas comunicações. Fê-lo sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), e, nessa medida, ante o exposto, concluímos, como já acima se consignou, que tal decisão proferida constituiu uma decisão surpresa, em violação do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Não é pacífica na jurisprudência a questão de saber se a prolação de uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, ou uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 615º, nº 1, d), do Código de Processo Civil.

Como diz António Abrantes Geraldes in Recurso em Processo Civil, 7ª ed., pág. 24, “a expressão usual segundo a qual «das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se» aparenta uma simplicidade que não condiz com o que a prática judiciária revela. Importa, pois distinguir as nulidades de procedimento das nulidades de julgamento, uma vez que, nos termos do art. 615º, nº 4, quando estas últimas decorram de qualquer dos vícios da sentença assinalados nas als. b) a e) do nº 1, a sua invocação deve ser feita em sede de recurso, restringindo-se a reclamação para o próprio tribunal quando se trate de decisão irrecorrível”.

Mas se para algumas situações a resposta se apresenta como pacífica, outras há em que a solução não se apresenta tão clara. É o caso, por exemplo, “quando é cometida alguma nulidade de conhecimento oficioso ou em que é o próprio juiz que, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa (art. 3.º, nº 3). Nestes casos, em que a nulidade é revelada apenas através da prolação da decisão com que a parte é confrontada, a sujeição ao regime geral das nulidades processuais, nos termos dos arts. 195.º e 199.º, levaria a que a decisão que a deferisse se repercutiria na invalidação da sentença, com a vantagem adicional de tal ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição de recurso. Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra, praticamente inultrapassável, ínsita no art, 613º, à qual presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, uma vez proferida a sentença (ou qualquer decisão), fica esgotado o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por essa via que pode ser alcançada a revogação ou a modificação da decisão. Perante esta dificuldade, parece mais seguro assentar que, sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615.º, al. d). Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3.º, nº 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, pelo que o recurso constitui a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objecto a arguição daquela nulidade” [Cf. [ A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018), pág. 25 e 26; no mesmo sentido Teixeira de Sousa, em https//blogipp.blogspot.com, citado na nota de rodapé de pág. 26.]

No caso concreto, entendemos que ao prolatar aquela decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, o Tribunal a quo incorreu simultaneamente numa nulidade processual (prevista no artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil) e numa nulidade da sentença por excesso de pronuncia (prevista no artigo 615º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil) [Neste sentido, cf. vd., entre outros os Acs. RP 15-12-2021, p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como e STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.]. Isto porque tal nulidade apenas se revelou com a prolação da sentença, pelo que a falta de contraditório, neste caso, constitui uma nulidade que se projeta na decisão, subsumível à previsão do art. 615º, nº 1, d) do Código de Processo Civil (nulidade da decisão por excesso de pronúncia)."

*3. [Comentário] O acórdão tem as seguintes declarações de voto (que, curiosamente, fazem maioria e tornam a Relatora realmente vencida):

"Anabela Morais [Com declaração de voto:

Voto a decisão, mas com diversa fundamentação jurídica. Acompanho a orientação que a violação do princípio do contraditório constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195º, nº 1, do CPC. O contraditório constitui um procedimento que deve ser adoptado antes da prolacção da decisão, consubstanciando violação da lei a sua inobservância. Assim, respeitando sempre entendimento diverso, entendo que a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, tem como consequência a sua revogação e substituição pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais actos incompatíveis que tenham sido praticados em primeira instância.]

Eugénia Cunha [Com declaração de voto:

Acompanho a declaração de voto da Exma Sra Desembargadora 1ª adjunta.]"

Como se tem repetidamente dito neste Blog (por exemplo, aqui), esta orientação é incompatível com quaisquer poderes da Relação para apreciar o vício relativo à decisão-surpresa. Com efeito, se a nulidade fosse apenas a nulidade inominada do art. 195.º, n.º 1, CPC, então o meio de reacção da parte teria de ser a reclamação para o tribunal que cometeu a nulidade (art. 196.º CPC). Isto implicaria necessariamente que a Relação teria de concluir que a parte recorrente não utilizou o meio processual adequado para reagir contra o vício.

Aliás, a orientação de que a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC) foi contruída precisamente para obstar a que a parte tivesse de começar a impugnação da decisão através de uma reclamação dirigida ao tribunal que a proferiu.

MTS

13/11/2025

Jurisprudência 2025 (31)


Audição da parte;
"manifesta desnecessidade"; decisão-surpresa*


1. O sumário de RP 10/2/2025 (5984/24.0T8MAI.P1) é o seguinte:

I - Inexiste fundamento para julgar nula a decisão que absolveu o requerido da instância por força da exceção de caso julgado, sem que previamente o juiz tivesse advertido a requerente de que era essa a sua intenção, na circunstância de a requerente ter anteriormente proposto ação em tudo idêntica.

II - O princípio do contraditório sempre haverá de ser compaginado com a proibição da prática de atos inúteis, sendo que a advertência à requerente para os efeitos assinalados seria insuscetível de alterar o sentido da decisão.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"V - Subsunção jurídica

a - Da nulidade da decisão por violação do contraditório

A apelante argui a nulidade da decisão proferida por esta não ter sido precedida de advertência acerca do sentido da mesma.

O 3.º/3 do C.P.C. preceitua que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que é seja suscetível de influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º do C.P.C..

Dúvidas não há de que o princípio do contraditório é um dos princípios estruturantes do processo civil.

O direito ao exercício do contraditório, entendido como a garantia de que discussão entre as partes se desenvolve de modo dialético, foi alargado pela disposição contida no n.º 3 do art.º 3.º no sentido de prevenir decisões surpresa. Neste segmento normativo estão em causa as questões oficiosamente suscitadas pelo tribunal. Quer se trate de questões de índole processual, quer do mérito da causa, antes de tomar posição, o juiz deve convidar as partes a pronunciarem-se, facultando-lhes a discussão da solução a adotar.

Trata-se de evitar, não propriamente que as partes possam ser apanhadas desprevenidas por uma solução antes não abordada ou perspetivada no processo, mas sim que, mediante a ponderação das razões das partes em contrário, o juiz possa repensar a solução a dar ao caso.

Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito) (…) (Andrade, Manuel, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, 379).

No âmbito de uma conceção ampla do princípio do contraditório, entende-se que existe o direito a uma fiscalização recíproca ao longo de todo o processo, por forma a garantir a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio (cf. Freitas, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui, Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra Editora, p. 8).

Lê-se no ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2000 (DR, II série, de 7 de novembro de 2000): a norma contida no artigo 3.º n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.

O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo (Freitas, José Lebre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 1999, p. 8).

O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões-surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (in ac. do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2017, proc. 28354/16.0YIPRT.P1, Fernando Samões, consultável in http://www.dgsi.pt/, tal como os demais acórdãos que vierem a ser nomeados, salvo indicação diversa).

Tal entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo n.º 3, do art.º 3.º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz - tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 664.º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar (Rego, Carlos Lopes do, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. I, Almedina, p. 32).

Constituem exceção a esta regra, nos termos do citado n.º 3 do art.º 3.º, os casos de manifesta desnecessidade.

Dispensou-se a observância do contraditório nas situações de manifesta desnecessidade” isto é “quando - nomeadamente por se tratar de questões simples e incontroversas - tal audição se configure como verdadeiro ‘ato inútil’(…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela (Freitas, José Lebre de, Rendinha, João e Pinto, Rui, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, p. 33).

Lê-se no ac. da Relação de Guimarães de 19/4/2018 (proc. 75/08.4TBFAF.G1, José Alberto Dias): (…) impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sibi imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa.

Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio (in ac. Relação de Guimarães de 19-4-2018, proc. 533/04.0TMBRG-K.G1, Eugénia Cunha).

Cabe compaginar o princípio do contraditório com o princípio da proibição da prática de atos inúteis previsto no art.º 130.º do C.P.C.. Assim, só deve haver lugar ao exercício do contraditório se este for suscetível de influenciar a decisão do tribunal. De outro modo, será inútil.

Vejamos, então, a aplicação do princípio aos presentes autos, na fase processual em causa.
O juiz de 1.ª instância absolveu o requerido da instância com fundamento na verificação da exceção de caso julgado imediatamente após a entrada da ação em juízo, sem que antes tivesse advertido a requerente de que o iria fazer.

Este procedimento consubstanciará uma violação do princípio do contraditório?

Afigura-se-nos que a resposta a esta questão não poderá deixar de ser negativa.

A requerente sabia ter proposto ação com conteúdo em tudo idêntico aos dos presentes autos, pelo que tinha obrigação de prever que o tribunal poderia vir a decidir no sentido em que o fez.

Afigura-se desajustado e até desenquadrado das exigências legais atinentes ao princípio do contraditório que o juiz tivesse tido que sobrestar na prolação de decisão a fim de advertir a requerente de que, por esta ter anteriormente proposto ação em tudo idêntica à presente, era sua intenção julgar verificada a exceção de caso julgado.

Tampouco obedece a qualquer desígnio processual que houvesse agora que revogar a decisão proferida para que a requerente se pronunciasse a propósito da exceção de caso julgado.

Atente-se em que, mesmo em sede de alegações de recurso, a apelante se pronunciou a respeito da exceção de caso julgado dizendo: não se verifica a exceção do caso julgado; contém, de forma perfeitamente inteligível, os factos que consubstanciam a causa de pedir, o direito aos mesmos aplicável e em que se funda o pedido, que também é absolutamente claro e consonante com a causa de pedir (conclusão 15).

A recorrente nada disse, pois, no que concerne aos requisitos do caso julgado.

Em suma, a apelante não extraiu consequências jurídicas da sua invocação da violação do princípio do contraditório, no sentido de que, se este tivesse sido observado, a decisão teria sido outra. É, pois, forçoso concluir que a irregularidade não influiu no exame ou decisão da causa, requisito imprescindível para que a omissão pudesse produzir nulidade (art.º 195.º/1 do C.P.C.).

Pelo exposto, desatende-se a pretensão da apelante de que a decisão seja declarada nula.

*
b - Da verificação dos requisitos do caso julgado

A exceção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (artigos 580.º e 581.º do C.P.C.).

Nos termos dos artigos 577.º/i) e 578.º do C.P.C. o caso julgado é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso.

O caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, já que nos termos do art.º 621.º do C.P.C. a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga. [...]

Sumaria-se no ac. da Relação de Coimbra de 28-09-2010 (proc. 392/09.6 TBCVL.S1, Jorge Arcanjo): I - A exceção do caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido. II - A autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498.º do Código de Processo Civil (581.º NCPC).

No caso em apreço é evidente que existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir. Inexistia, por isso, fundamento para a prossecução dos autos. Tal violaria, inclusivamente, o princípio da economia processual, vertido no art.º 130.º do C.P.C., segundo o qual não é lícito realizar no processo atos inúteis.

Outro não poderia, por conseguinte, ter sido o sentido da decisão proferida, estando a presente apelação votada ao insucesso.


*3. [Comentário] Não se discorda da solução adoptada no acórdão, dado que o recorrente não pode desconhecer as consequências da propositura de duas acções idênticas. No entanto, não pode deixar de se referir que, com a devida consideração, não é correcto afirmar que 

"A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que é seja suscetível de influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º do C.P.C.".

A ser assim, o que a RP teria de concluir de imediato era que, precisamente por essa razão, não tinha competência para apreciar a referida nulidade processual inominada, dado que esta devia ter sido invocada perante o tribunal recorrido (art. 196.º CPC). Chama-se a atenção para o que se escreveu aqui.

Noutros termos: não é possível cumular a nulidade processual inominada do art. 195.º CPC com a decisão-surpresa que decorre da violação do estabelecido no art. 3.º, n.º 3, CPC.

MTS


12/11/2025

Como se deve interpretar o disposto no art. 830.º, n.º 5, CC?


1. O art. 830.º, n.º 5, CC estabelece, no âmbito de uma acção de execução específica de um contrato-promessa, o seguinte:

"No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal".

A questão que, de forma breve, se pretende elucidar é a seguinte: qual é a função que a excepção de não cumprimento desempenha na norma que consta do art. 830.º, n.º 5, CC?

2. a) Dado que a excepção de não cumprimento (regulada no art. 428.º CC) é uma excepção peremptória (art. 576.º, n,º 3, CPC), poder-se-ia entender que a resposta teria de ser a seguinte: essa excepção deve ser invocada na contestação do réu apresentada na acção de execução específica (art. 574.º, n.º 2, CPC). Trata-se, no entanto, de uma resposta equivocada.

Se a excepção de não cumprimento tivesse de ser alegada na contestação do réu, isso significaria que, a ter alguma relevância essa invocação, o réu teria de terminar a contestação pedindo a sua absolvição do pedido (art. 576.º, n.º 3, CPC). É claro que exigir que o réu invoque a excepção, mas não tenha de formular o correspondente pedido de absolvição, é um formalismo inconsequente. Se se alega a excepção de não cumprimento e não se retira a respectiva consequência (que é a absolvição do pedido), cabe então perguntar para quê é que se invoca a excepção. Já alguma vez se interpretou o disposto no art. 574.º, n.º 2, CPC como impondo ao réu o ónus de invocar uma qualquer excepção dilatória ou peremptória, mas não o ónus de formular o correspondente pedido? É claro que não, porque uma alegação sem consequências é uma alegação inútil.

Assim, para que tudo isto faça algum sentido, a exigência da alegação da excepção de não cumprimento na contestação tem de ser acompanhada da exigência da formulação do respectivo pedido de absolvição quanto ao mérito nessa mesma contestação. Esta conclusão conduz, de imediato, à seguinte pergunta: faz sentido que o réu de uma acção de execução específica possa pedir a sua absolvição do pedido com base na circunstância de o autor ainda não ter realizado a sua contraprestação?

A resposta a esta questão só pode ser negativa. Se se concluísse que o réu de uma acção de execução específica poderia invocar a excepção de não cumprimento, isso implicaria que qualquer autor que instaurasse uma tal acção teria de ter realizado a sua contraprestação antes da propositura da acção (ou, para ser mais rigoroso, teria de a realizar, o mais tardar, até ao encerramento da discussão em 1.ª instância (art. 611.º, n.º 1, CPC)). No fundo, seria como se o que se dispõe no art. 715.º, n.º 1, CPC no âmbito do processo executivo também valesse na acção de execução específica de um contrato-promessa.

A ser assim, então a realização pelo autor da sua prestação sinalagmática seria uma condição da procedência da acção de execução específica por ele proposta. Se, por exemplo, a execução específica respeitasse a um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, o autor comprador teria de pagar o preço acordado antes de propor contra o vendedor a acção de execução específica (ou, pelo menos, teria de liquidar o preço até ao encerramento da discussão em 1.ª instância).

Não é difícil perceber que nada disto faz sentido, porque o autor não pode ser obrigado a realizar a sua prestação sinalagmática antes de obter a execução específica do contrato-promessa. Se assim fosse, a acção de execução específica seria uma verdadeira "auto-execução" do autor sobre ele próprio, porque, antes de obter a procedência da acção de execução específica, já tinha a obrigação de realizar a sua contraprestação.

Além disso, se o autor estivesse obrigado a realizar a sua contraprestação antes da decisão proferida na acção de execução específica, então isso significaria que, em caso de improcedência da acção, o autor passaria a ter um direito à restituição da prestação que, entretanto, tinha realizado à contraparte. Como é conhecido, o regime não é este -- e compreendem-se muito bem as razões pelas quais não pode ser este.

b) Em conclusão: qualquer exigência da alegação da exceptio non adimpleti contractus na contestação do réu que é demandado numa acção de execução específica é desprovida de sentido, dado que não é aceitável nem que se exija a alegação dessa excepção sem que haja o ónus de pedir a correspondente absolvição do pedido, nem que o réu possa pedir esta absolvição por o autor ainda não ter cumprido a contraprestação a que se encontra vinculado. 

3. Com base no exposto, resta interpretar adequadamente o estabelecido no art. 830.º, n.º 5, CC. O que nele se dispõe é, afinal, o seguinte: de modo a evitar que o réu seja condenado na acção de execução específica sem que haja a garantia de que o autor realiza a sua contraprestação, o art. 830.º, n.º 5, CC permite que aquele demandado possa requerer que o autor consigne em depósito essa contraprestação (não -- note-se -- que cumpra a contraprestação).

Do afirmado decorre qual é a função da excepção de não cumprimento no disposto no art. 830.º, n.º 5, CPC: essa função é a de fundamentar o pedido formulado pelo réu de que o autor consigne em depósito a contraprestação a que está obrigado. Quer dizer: o réu pode requerer que o autor consigne em depósito a prestação a que está vinculado, porque, em caso de procedência da acção de execução específica, aquele demandado pode invocar contra aquele demandante a excepção de não cumprimento. É bem claro que o réu não alega a excepção de não cumprimento para obter a absolvição do pedido, mas antes para justificar o pedido de consignação em depósito da contraprestação do autor.

Isto também implica que, se a excepção de não cumprimento serve de fundamento ao pedido do réu de consignação em depósito da prestação do autor, então essa mesma excepção só tem de ser invocada no momento em que se requer essa consignação. Se não for reconhecido que o réu pode invocar contra o autor a excepção de não cumprimento, falta o fundamento para requerer a consignação em depósito da prestação a ser realizada pelo demandante e o requerimento deve ser indeferido.

É nesta base (simples, coerente e compreensível) que deve ser interpretada a referência à excepção de não cumprimento que consta do art. 830.º, n.º 5, CC.

MTS

Paper (531)


-- Stein, Alex, Playing by the Rules of Evidence: A Tribute to Fred Schauer (SSRN 11.2025)

Jurisprudência 2025 (30)


Penhora de bens;
arrendamento; inoponibilidade


1. O sumário de STJ 13/2/2025 (5178/10.2TBCSC-B.L2.S1) é o seguinte:

I. A penhora deve ser entendida como a atividade prévia à venda ou à realização da prestação que consiste na apreensão, pelo Tribunal, de bens do executado ou na colocação à sua ordem de créditos deste valor sobre terceiros e na sua afetação ao pagamento do exequente, destinando-se a individualizar os bens e direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação pecuniária através da ação executiva.

II. É de atribuir à penhora uma função de garantia, ou seja, beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles que não tenham garantia real anterior, sendo que esta garantia pressupõe, necessariamente, uma outra função atribuída à penhora, qual seja, a função conservatória, visando assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens ou direitos sujeitos a penhora, pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor (indisponibilidade jurídica absoluta), outrossim, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto (indisponibilidade jurídica relativa).

III. Tendo em vista que o objeto do direito penhorado não pode deixar de satisfazer o crédito do exequente, mediante a respetiva venda coerciva, não se permitindo tampouco, diminuir o seu valor, importa reconhecer que o direito substantivo civil retira da esfera jurídica do executado o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que, mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução, ou releva para a mesma, conforme decorre da impressão literal, acompanhada da interligação e valoração do preceituado no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida pelo art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março.

 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II. 3.1. Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao sentenciado, impõe-se reconhecer o direito dos Embargantes/AA e BB à manutenção da vigência do ajuizado contrato de arrendamento, enquanto arrendatários do imóvel penhorado, mesmo que a outorga deste tenha ocorrido posteriormente à penhora, repristinando-se o decidido em 1ª Instância?

Cotejado o acórdão recorrido, anotamos que o Tribunal a quo, perante a facticidade demonstrada nos autos, concluiu, no segmento decisório, e para o que aqui interessa, atento o thema decidendum da presente revista, revogar a decisão proferida em 1ª Instância, e, em sua substituição, decidiu julgar totalmente improcedentes os embargos de terceiro.

O aresto escrutinado ao problematizar a questão a apreciar, qual seja, saber se o arrendamento celebrado posteriormente à penhora do respetivo imóvel é oponível ao exequente, sopesando as conclusões formuladas pelas Apelantes/Embargantes/AA e BB, no confronto com a sentença recorrida e com a pretensão jurídica formulada e respetivos fundamentos, sustentou que, se, após a penhora, o executado dispuser, onerar, ou der de arrendamento, o bem penhorado, o negócio jurídico é inoponível no âmbito da execução, não relevando para a mesma, conforme decorre do direito substantivo civil - art.º 819º do Código Civil - que determina a inoponibilidade à execução do arrendamento de bens penhorados, e do art.º 822º do mesmo diploma legal que consagra a penhora, enquanto direito real de garantia, traduzida na apreensão e conservação do bem penhorado para, por meio do produto da sua venda, obter o cumprimento coercivo da obrigação exequenda.

O Tribunal recorrido apreendeu a real conflitualidade subjacente à demanda trazida a Juízo tendo proferido aresto, fazendo apelo a um enquadramento jurídico-normativo posto em crise com a interposição da presente revista, sustentação jurídica que, de resto, adiantamos desde já, acompanhamos.

O nosso ordenamento jurídico, assumindo o princípio segundo o qual o património do devedor é a garantia ge­ral do credor, estabelece que pelo cumprimento de uma obrigação respondem, em regra, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora - art.º 601º do Código Civil - .

A responsabilidade patrimonial do devedor não atribui ao credor a direito de se apropriar dos bens daquele ou de se substituir ao devedor na recuperação dos seus créditos sobre terceiras, isto é, não lhe concede faculdade de se satisfazer diretamente à custa do património do devedor mediante a apropriação dos bens ou a exigência da satisfação dos créditos que pertencem a este sujeito, mas, tão só, concede ao credor a faculdade de executar o património do devedor, isto é, de fazer penhorar bens e direitos deste titular passivo com vista à sua posterior venda ou cobrança - art.º 817º do Código Civil - .

Entendemos a penhora como a atividade prévia à venda ou à realização da prestação que consiste na apreensão, pelo Tribunal, de bens do executado ou na colocação à sua ordem de créditos deste valor sobre terceiros e na sua afetação ao pagamento do exequente.

A penhora destina-se a individualizar os bens e direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação pecuniária através da ação executiva, significando que a penhora só se justifica enquanto a obrigação exequenda subsistir e a execução estiver pen­dente.

Decorre também do direito substantivo civil - art.º 822º do Código Civil - atribuir à penhora uma função de garantia, ou seja, beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles que não tenham garantia real anterior, sendo que esta garantia pressupõe, necessariamente, uma outra função atribuída à penhora, qual seja, a função conservatória, visando assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens ou direitos sujeitos a penhora, pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor (indisponibilidade jurídica absoluta), outrossim, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto (indisponibilidade jurídica relativa).

Donde, se após a penhora, o executado der de arrendamento, o bem penhorado, e assumindo que o objeto do direito penhorado não pode deixar de satisfazer o crédito do exequente, mediante a respetiva venda coerciva, ou, tampouco, pode ser diminuído o seu valor, importa considerar o normativo substantivo civil que, claramente, retira da esfera jurídica do executado o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que, mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução, ou releva para a mesma.

Na verdade, como bem adianta o Tribunal recorrido, “Estatui o art. 819º do Código Civil: “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.”

Esta redação resulta da reforma de 2003, acrescentando-se aos anteriores atos de “disposição” e “oneração” já no artigo consagrados, o contrato de “arrendamento”.

A consagração expressa do contrato de arrendamento no preceito significou assim que o legislador o quis integrar no lote dos atos jurídicos e contratos realizados/outorgados pelo executado, após a penhora, os quais considera inoponíveis na execução.

O que bem se compreende, pois que este negócio tem virtualidade para frustrar ou, ao menos, prejudicar os efeitos que se pretendem para o ato da penhora.”

Em abono do reconhecimento desta orientação, importa realçar que na interpretação das leis, conforme decorre do direito substantivo civil: “o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” - art.º 9º n.º 3 do Código Civil - .

A este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, Volume I, página 16, em anotação ao aludido preceito substantivo civil sustentam que “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios”, destacando-se, por isso, que na exegese da lei, descortinando o respetivo sentido e alcance, não se deverá atender somente à letra da lei, sendo pacificamente aceite que na respetiva interpretação também intervêm elementos lógicos, de ordem sistemática (condizente à ordem jurídica em que se integra a norma jurídica a interpretar, importando a consideração da unidade do sistema jurídico), histórica (reconhecimento e consideração dos acontecimentos históricos que aclaram a criação da lei, concretamente, os trabalhos preparatórios e todo a realidade social que envolveu o seu aparecimento) e racional ou teleológica (a razão de ser da lei sustentada na respetiva justificação e no objetivo pretendido com a sua criação).

A interpretação da lei exige, assim, a consideração do elemento literal que necessariamente encerra o primeiro passo, todavia, importa atender que deverá ser obrigatoriamente acompanhado daqueles enunciados elementos lógicos, que integram “todos os restantes factores a que se pode recorrer para determinar o sentido da norma”, nas palavras de Oliveira Ascensão, in, O Direito Introdução e Teoria Geral, 13ª Edição Refundida, página 407, que afirma ainda, a propósito, “Antes devemos distinguir uma apreensão literal do texto, que é o primeiro e necessário momento de toda interpretação da lei, pois a letra é o ponto de partida. Procede-se já a interpretação, mas a interpretação não fica ainda completa. Há só uma primeira reacção em face da fonte, e não o apuramento do sentido, E ainda que venha a concluir-se que esse sentido é de facto coincidente com a impressão literal, isso só se tomou possível graças a uma tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal”, ibidem, página 406, o que, de resto, se identifica com o pensamento de Baptista Machado, in, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1994, páginas 181 e 182 quando declara “Convém salientar, porém, que o elemento gramatical (“letra da lei”) e o elemento lógico (“espírito da lei”) têm sempre que ser utilizados conjuntamente. Não pode haver, pois, uma modalidade de interpretação gramatical e uma outra lógica; pois é evidente que o enunciado linguístico que é a “letra da lei” é apenas um significante, portador de um sentido (“espírito”) para que nos remete.”

Interiorizados estes ensinamentos, e revertendo ao caso sub iudice, acentuamos que o legislador disse o que queria ao incluir, aditando, no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida pelo art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, aos anteriores atos de “disposição” e “oneração” dos bens penhorados, inoponíveis em relação à execução, o contrato de “arrendamento” que tem por objeto aqueles mesmos bens penhorados.

Ou seja, a impressão literal, acompanhada da interligação e valoração do preceituado no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), impõe o reconhecimento de que, se, após a penhora, o executado der de arrendamento o bem penhorado, o negócio jurídico é inoponível no âmbito da execução, não relevando para a mesma.

E não se diga, salvo o devido respeito por opinião contrária, como sustentam os Recorrentes/Embargantes/AA e BB que, a não ser levada a cabo uma interpretação restritiva da norma contida no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, incorrer-se-á em inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artºs. 65º n.º 1 e 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

A vertente mais significativa do direito a habitação enquanto “direito económico social e cultural” contém-se na sua dimensão positiva, isto é, no direito dos cidadãos às medidas e prestações estaduais adequadas à concretização do objetivo ali enunciado, o direito a obter uma habitação adequada e condigna a realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

Ao contrário, a chamada dimensão negativa do direito a habitação, traduz-se num mero dever de abstenção do Estado e de terceiros em ordem a não praticarem atos que possam prejudicar a efetiva realização daquele direito.

O Tribunal Constitucional vem afirmando, repetidamente, que, no plano desta vertente do direito a habitação não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização daquele direito esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de terceiros (que não o Estado), direitos esses, porventura também constitucionalmente consagrados.

Seja qual for a natureza de direito à habitação, ele não confere ao cidadão um direito imediato a uma prestação efetiva, tendo como único sujeito passivo o Estado - e as regiões autónomas e os municípios - e nunca, ao menos em princípios, os proprietários ou senhorios, para além de que o cidadão só pode exigir o seu cumprimento nas condições e termos definidos pela lei, no caso, impor-se-á o acatamento da lei substantiva civil - art.º 819º do Código Civil - como vimos de discretear. O reconhecimento do direito à habitação não pode implicar que os arrendatários disponham das mesmas, sem qualquer limitação.

De igual modo, não distinguimos como se pode apontar a inconstitucionalidade do art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), quando não interpretado restritivamente, excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, por violação do disposto no art.º 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que textua: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”

Não divisamos, com a interpretação e aplicação da norma que vimos de consignar, qualquer violação de outros direitos pessoais consagrados constitucionalmente (art.º 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

A leitura jurisdicional do art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), com a interpretação dela feita, no sentido de não excluir a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, que, no fundo, coincide com a solução legalmente expressa, não afronta qualquer norma, princípio ou parâmetro constitucional.

Pelo exposto, na improcedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, não reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade bastante no sentido de alterar o destino da demanda, traçado no Tribunal recorrido."


*3. [Conclusões] O STJ decidiu segundo o direito e, portanto, bem.

No entanto, ao contrário do que seria de esperar, isto não é tudo o que se pode dizer sobre o acórdão do STJ. Nas conclusões das suas alegações, o recorrente afirmou o seguinte:

"3) Não obstante o douto acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 2/2021, de 5 de Agosto, se refira a uma situação em que o contrato de arrendamento foi celebrado após a hipoteca mas ainda antes da penhora do locado, a verdade é que as razões que então levaram o Tribunal a decidir pela prevalência do arrendamento habitacional sobre a hipoteca aplicam-se, no essência, também à penhora [...]."

Não pode deixar de se dar razão ao Recorrente. Seria contra a unidade do sistema jurídico que o contrato de arrendamento celebrado após a hipoteca do imóvel houvesse de subsistir e que esse mesmo contrato, quando concluído depois da penhora do imóvel, tivesse de caducar. Recorde-se que, quando haja bens do devedor onerados com uma garantia real, a penhora inicia-se por esses bens (art. 752.º, n.º 1, CPC), pelo que o que vale para bens arrendados depois da penhora tem de valer para bens arrendados depois da hipoteca e que, posteriormente, vão ser bens penhorados.

Nesta base, não se sabe o que se há-de estranhar mais: se a infeliz uniformização de jurisprudência que consta do Ac. STJ 2/2021, se o proferimento de um acórdão que, em termos sistemáticos, contraria essa uniformização.

MTS

11/11/2025

Paper (530)


-- Thapa, Sahil, Repackaging Class Actions (SSRN 07.2025)

Jurisprudência 2025 (29)


Caso julgado formal;
eficácia temporal


1. O sumário de STJ 13/2/2025 (2136/20.2T8VFX-G.L1.S1) é o seguinte: 

I. O caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tal como previsto no art. 620º, 1, do CPC, constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.

II. A delimitação do conteúdo («limites e termos em que julga») da decisão processual implica que se faça uma adequada interpretação do seu âmbito, de acordo com a sua fundamentação.

III. A decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou.

IV. Se a condição se verificar supervenientemente, deixando de ser a decisão proferida imodificável dentro do processo, o art. 621º do CPC permite que o alcance do caso julgado dentro do processo caduque, perdendo a sua eficácia intraprocessual, e se possa proferir nova decisão diversa da proferida, afastando-se assim o art. 625º, 2, do CPC, na situação de caso julgado formal; logo, a partir dessa nova decisão, diversa da anteriormente proferida por força da verificação da condição que foi requisito negativo da decisão originária, não temos caso julgado formal anterior que possa ser oposto (e susceptível de ofensa) a essa decisão nova e às decisões subsequentes que nela radicam, pois é perante essa nova decisão, uma vez transitada, que se passa a exigir imodificabilidade nos termos dos art. 620º, 1, e 621º do CPC.

 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

3.1. O art. 620º, 1, do CPC estatui:

«As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.»

Este caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais:

(i) as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC);

(ii) o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada [V. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2021 (reimp.), “Artigo 620º”, págs. 752-753, “Artigo 621º”, págs. 754-755. Recentemente, não obstante as variantes dos casos concretos, Acs. do STJ de 3/5/2023, processo n.º 1182/20, 17/10/2023, processo n.º 3372/18, e de 28/1/2025, processo n.º 1572/21, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.]

Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida.

Por outro lado, a decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou [Sobre a aplicação da doutrina do art. 621º ao caso julgado formal, v., favoráveis e exemplificativos, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 621º”, ob. cit., pág. 757 (em relação com a pág. 755: “visando a obtenção duma decisão diversa da proferida, quando a condição se verifique, o prazo esteja decorrido ou o facto seja praticado”).]

3.2. Sobre a questão recursiva, o acórdão recorrido fundamentou como se transcreve:

“Em resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, foi produzida uma panóplia de legislação no nosso ordenamento jurídico, de que se destaca o normativo convocado na decisão proferida no âmbito do processo principal, em 28/06/2021, igualmente confirmada nessa mesma data neste apenso de liquidação: isto é, o art. 6º-E/8, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação, conferida pela Lei n° 13-B/2021, de 5 de abril.

Rezava tal preceito legal que «1 – No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo. (…) 8- Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária. (...)”

Independentemente da bondade da aplicação de tal normativo à situação dos autos, que não está em discussão nesta sede recursiva, certo é que tal normativo foi revogado pelo art. 2., al. a), da Lei n.º 31/2023, de 4 de julho.

E foi então que, nesse enquadramento, por despacho proferido em 19/09/2023, o tribunal recorrido, e bem, declarou a cessação da suspensão da venda do prédio descrito sob o n.º 849/19871202, na Conservatória do Registo Predial de ..., sem prejuízo do regime geral constante, designadamente, do disposto no art. 756.º do Código de Processo Civil.

Tal despacho foi antecedido da notificação da devedora insolvente para se pronunciar sobre a cessação da suspensão da venda, em face do disposto no n.º 3 do art. 3.º do CPC, tendo a insolvente, em requerimento de 31/08/2023, requerido um prazo de 30 dias para que fosse apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efetivos e reclamados, alegando que se mostrava pago mais de 80% do montante objeto [de] reclamação de créditos, o que reiterou nos requerimentos de 29/11/2013 e de 30/11/2023, onde então pediu fosse suspenso o leilão em curso.

Ora, cessada a suspensão da venda, por despacho de 19/09/2023, notificado à recorrente em 29/11/2023, e indeferido o pedido de imediata suspensão do leilão em curso com a concessão do requerido prazo de 30 dias, de nenhuma patologia padece o despacho recorrido.

Ali se consignou, e bem, que considerando o disposto no art. 8.º do CIRE, inexistia fundamento legal para o requerido, razão pela qual foi indeferida a solicitada suspensão. E a prolação de tal despacho, que aprecia o pedido da recorrente, declarada que estava já cessada a suspensão da venda, não viola qualquer caso julgado formal tal como o mesmo se encontra definido pela nossa lei adjetiva, ou seja, como a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (artigo 628.º do CPC).

Declarada cessada a suspensão da instância, decorrente do despacho de 28/06/2021, por despacho de 19/09/2023, não fere o caso julgado formado com o primeiro despacho o afirmado no despacho recorrido que nega a pretensão da recorrente de ver suspensa a venda.

Com efeito, diz o aludido art. 620.º do CPC legal que «1 – As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo. 2 – Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º».

Ora, como vimos, o despacho recorrido, proferido em 04/12/2023 (que se limitou a indeferir o pedido de suspensão do leilão em curso) não violou qualquer decisão anterior proferida pelo tribunal (pois que, em momento posterior ao despacho de 28/06/2021, foi proferido o despacho de 10/07/2023 e o de 19/09/2023). Ou seja, aquando do despacho recorrido, já tinha sido proferido um anterior, a declarar cessada a suspensão da instância, declarada pelo despacho de 28/06/2021.

Por conseguinte, o lançamento do leilão eletrónico, ainda que iniciado sem que o despacho da decisão da cessação da suspensão tivesse transitado em julgado, não inquina o despacho recorrido nos termos pretendidos pela recorrente no sentido de violar o invocado caso julgado formal.” [...]

3.3. No contexto da tramitação, o despacho que foi objecto de recurso – indeferimento de suspensão do acto de lançamento de leilão para venda do prédio (art. 164º, 1, CIRE), anunciado pela AI em 26/10/2023 – já não se encontrava condicionado no seu objecto e conteúdo pelo despacho de suspensão da venda do prédio, proferido em 28/6/2021; antes se encontrava legitimado em termos cognitivos e decisórios pelo despacho de cessação da anterior decisão de suspensão da venda, proferido em 19/9/2023, o que fez com que deixasse de estar subsistente no processo a decisão sobre a suspensão da venda que pudesse ser obstáculo às decisões subsequentes, incluindo a venda a cargo do administrador da insolvência.

Logo, a decisão de indeferimento de suspensão da venda, aqui escrutinada, é proferida num arco da tramitação endoprocessual em que não já tem força obrigatória no processo a decisão de 28/6/2021, uma vez que a eficácia desta decisão se tinha esgotado com a prolação do despacho de 19/9/2023, proporcionando eficácia aos demais actos processuais que tiveram como pressuposto a cessação da suspensão de venda e precludindo a ofensa de decisão, que, não obstante ter transitado, cessou os seus efeitos por força de decisão subsequente sobre o mesmo objecto: decisão sobre a venda do prédio apreendido para a massa insolvente e em liquidação.

E por que razão se deve entender que a eficácia de tal decisão de 2021 se esgotara – assim como da decisão de 20/3/2022, tão-só confirmativa –, sendo modificável, motivando que fosse proferida decisão posterior (legítima) sobre a mesma questão?

A delimitação do conteúdo («limites e termos em que julga»: art. 621º) da decisão processual implica que se faça uma adequada interpretação do seu âmbito, de acordo com a sua fundamentação [---]

Assim sendo.

Em rigor, a decisão de 28/6/2021 foi baseada em não estar verificada a condição de superação ou de ultrapassagem da «situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», de acordo com o regime legal transitório da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março», que instituiu então «medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemológica» (v. o respectivo art. 8º, 1). Uma vez preenchida essa condição – a superação da referida situação excepcional causada pela pandemia e suas consequências –, plasmada normativamente na revogação do art. 6.º-E/8 da Lei 1-A/2020 pelo art. 2º, a), da Lei 31/2023 (destinado à «cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, em razão de caducidade, de revogação tácita anterior ou de revogação pela presente lei)», o art. 621º do CPC permite que o alcance do caso julgado dentro do processo caduque e se possa proferir nova decisão diversa da proferida – afastando-se assim o art. 625º, 2, do CPC – para a situação prevista no caso julgado formal.

Com efeito, não foi por acaso que o juiz decisor no processo, desde logo, ordenou, tanto no despacho proferido em 28/6/2021 no processo principal, como no despacho proferido em 20/3/2022 no apenso de liquidação, que se abrisse conclusão “uma vez cessado o regime processual excecional e transitório estabelecido pela Lei nº 1-A/2020, de 19 de março” – ou seja, logo que verificada a condição que não estava preenchida aquando dos despachos proferidos sobre a referida suspensão do acto inerente à liquidação insolvencial.

Logo, a partir dessa nova decisão, diversa da anteriormente proferida por força da verificação da condição que foi requisito negativo da decisão originária, não temos caso julgado formal anterior que possa ser oposto (e susceptível de ofensa) a essa decisão nova e às decisões subsequentes que nela radicam, uma vez que o conteúdo decisório antes mobilizado voltou a estar na disponibilidade decisória do juiz e com novo fundamento [---].

Sendo legítima a nova decisão, a única forma de evitar que, caducada a eficácia da anterior, se estabilizem os seus efeitos no processo, é a impugnação; a ter sucesso, esta impugnação erradicaria do processo os actos emergentes dessa decisão.

Em suma:

(i) perante a decisão proferida em 19/9/2023 (cessação da suspensão da venda), uma vez transitada, é perante esta que se passa a exigir imodificabilidade nos termos dos art. 620º, 1, e 621º do CPC, fazendo esgotar por sucessão aquando da sua prolação a imodificabilidade da decisão proferida em 28/6/2021 (suspensão da venda por aplicação de regime excepcional e transitório);

(ii) não pode a Recorrente invocar ofensa do caso julgado formal constituído pela decisão de 28/6/2021, quando o caso julgado perdera a sua eficácia intraprocessual em 19/9/2023;

(iii) perante a decisão de 19/9/2023 – cessação da suspensão da venda –, a insolvente interessada e inconformada teria que impugnar esta decisão, uma vez notificada em 29/11/2023 – o que não fez –, antes optando por impugnar a decisão (com objecto mais circunscrito) de indeferimento da suspensão do leilão destinado a obter propostas de compra – que aqui se discute –, permitindo que, por aplicação do art. 628º do CPC, tal decisão de 19/9/2023 tivesse já transitado em julgado no momento da interposição do recurso de apelação (arts. 638º, 1, CPC, 9º, 1, CIRE)."

[MTS]