"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/12/2025

Bibliografia (1231)


-- Remédio Marques, J. P., Reivindicação versus demarcação -- violação de caso julgado ("contrário contraditório"), Jurismat 19 (2024), 155

(“contrário contraditório”)

05/12/2025

Legislação (247)


Tramitação electrónica



Retifica a Portaria n.º 350-A/2025/1, de 9 de outubro.

 

Jurisprudência 2025 (47)


Certificados de aforro;
arrolamento; resgate; responsabilidade civil

I. O sumário de RC 18/2/2025 (3972/21.8T8VIS.C1) é o seguinte:

1. Os certificados de aforro são títulos de dívida pública, nominativos e amortizáveis, destinados à captação da poupança familiar, transmissíveis por morte do respectivo titular.

2. O IGCP, E.P.E., ao exercer a sua actividade no âmbito da gestão de contas de certificados de aforro e, em especial, no pedido de resgate de certificados, permitindo a entrega ao seu titular do valor em dinheiro correspondente a esses títulos, com os juros entretanto vencidos, desenvolve uma actividade que é similar à exercida por qualquer Banco, constituindo uma prestação de serviços bancários, sendo-lhe aplicáveis os princípios que regem a segurança e a prudência bancárias.

3. Estando verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil a que alude o art. 483.º do Código Civil – facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade –, o IGCP, E.P.E., responde pelos danos causados a uma pessoa detentora de direito de crédito sobre uma conta de certificados de aforro, se, sabendo, ou não podendo desconhecer, que parte da quantia relativa a uma carteira de certificados de aforro está penhorada à ordem de um processo criminal e concomitantemente totalmente arrolada à ordem de um processo civil, apenas com base na informação prestada por um funcionário judicial, no âmbito do processo criminal – e sem dirigir qualquer pedido ou obter autorização judicial de levantamento do arrolamento decretado no âmbito do processo civil –, permite que o titular da conta de certificados, de modo ilegítimo, resgate a totalidade dos certificados de aforro.

4. Se uma conta de certificados de aforro foi imobilizada por ordem judicial (v.g., arrolamento) em determinada data, aquando do levantamento dessa ordem judicial, deve atender-se não apenas ao valor existente naquele momento temporal, mas sim ao montante actualizado constante da conta de certificados de aforro, incluindo o valor do capital investido e os seus frutos civis, correspondentes à capitalização dos juros.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Erros de julgamento.

(ii) A ré/recorrente veio alegar, outrossim, que o tribunal a quo cometeu os seguintes erros de julgamento.

(a) Inexistência de responsabilidade civil da ré perante a autora, por impossibilidade de estabelecer, designadamente, os requisitos da ilicitude, da culpa e do nexo de causalidade entre o facto e o dano (conclusões T a AA);

(b) Subsidiariamente, ainda que existisse responsabilidade da ré, redução do valor dos danos patrimoniais determinado pelo Tribunal a quo (conclusão BB);

(c)  Também a título subsidiário, ainda que existisse responsabilidade da ré, esta não podia ter sido condenada a indemnizar a autora por putativos danos não patrimoniais ou, caso assim não se entenda, esse montante indemnizatório deve ser inferior a € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros) (conclusões CC a FF).

Passemos, então, a analisar estas questões.

(a) Os certificados de aforro consistem num instrumento financeiro, instituído pelo art. 14.º do DL n.º 43453, de 30-12-1960, integrando, nos termos desse preceito, “títulos da dívida pública nominativos e amortizáveis (…) destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais” – cf., também, o art. 15.º, al. g), do citado diploma.  

Este produto de poupança foi regulado inicialmente pelo Decreto n.º 43454, de 30-12-1960, cujo art. 10.º estatuía “Os certificados de aforro criados pelo artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 43453, desta data, serão nominativos, amortizáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a favor de pessoas singulares”.

O actual regime jurídico dos certificados de aforro consta do DL n.º 122/2002, de 04-05, entretanto alterado pelo DL n.º 47/2008, de 13-03, e DL n.º 79/2024, de 30-10 – sem prejuízo da aplicação dos anteriores diplomas quanto à normação específica das séries de certificados ao abrigo dos quais elas foram emitidas.

No caso apreciado, durante o período em que foram casados, a autora e o seu então marido, BB, subscreveram certificados de aforro da “Série B”, os quais ficaram afectos à conta aforro com o n.º ...86, figurando aquele como titular e a autora como autorizada para movimentação. [...]

A noção e características essenciais destes instrumentos financeiros, que consubstanciam uma das formas que pode assumir a dívida pública directa do Estado – cf. art. 11.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 7/98, de 03-02 (que regula o regime geral de emissão e gestão da dívida pública directa do Estado) –, constam, presentemente, do art. 2.º do DL n.º 122/2002, que mantém a noção e as características essenciais que já constavam dos diplomas que o precederam – Decreto n.º 43454 e DL n.º 172-B/86: “1. Os certificados de aforro são valores escriturais nominativos, reembolsáveis, representativos de dívida da República Portuguesa, denominados em moeda com curso legal em Portugal e destinados à captação da poupança familiar. 2. Os certificados de aforro só podem ser subscritos a favor de pessoas singulares. 3. Os certificados de aforro só são transmissíveis por morte do titular”.

No exercício das atribuições que lhe estão conferidas pelos arts. 6.º e 7.º dos seus Estatutos, aprovados pelo DL n.º 200/2012, de 27-08, o IGCP, E.P.E., em conformidade com o disposto no art. 10.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 122/2002, estabelecerá por instruções, a publicar na 2.ª série do Diário da República, os procedimentos relativos à abertura e movimentação das contas de aforro.

Acompanhando Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume II, 4.ª edição (9.ª reimpressão), 2002, p. 99, os certificados de aforro configuram uma das formas tradicionais de empréstimos públicos, apresentando-se como “títulos vencíveis a médio prazo, destinados em princípio à captação de pequenas poupanças e fortemente pessoalizados”.

Definidas, em traços gerais, as características dos certificados de aforro, o que urge determinar é se a ré, com base na factualidade provada, pode ser responsabilizada civilmente perante a autora. [...]

Dos estatutos do IGCP, E.P.E., decorre que lhe compete, entre outras atribuições previstas no art. 7.º do DL n.º 200/2012, de 27-08, “prestar serviços bancários aos serviços, organismos e entidades sujeitos ao princípio da unidade da tesouraria do Estado”, concretizando o art. 12.º, al. j), que compete ao conselho de administração do IGCP, E.P.E.: “Estabelecer os montantes a cobrar aos interessados pela prestação de serviços conexos com a emissão, subscrição, transmissão e reembolso de valores representativos de dívida pública, bem como pela prestação de serviços bancários”.

Em consonância, o IGCP, E.P.E., ao exercer a sua actividade no âmbito do pedido de resgate dos certificados de aforro, através da qual o IGCP permite a entrega ao titular nominativo de certificados de aforro o valor em dinheiro correspondente aos certificados por ele adquiridos em determinada data, com os juros entretanto vencidos, o réu desenvolve uma actividade que, nesta parte, apresenta similitudes com a exercida pelos serviços de qualquer Banco, constituindo uma prestação de serviços bancários, sendo-lhe aplicáveis os princípios que regem a segurança e a prudência bancárias, como já decorria, aliás, do DL n.º 273/2007, de 30-07 (cf. arts. 5.º, n.º 1, al. g) e 11.º, al. i)).

No âmbito do depósito bancário é extensa a doutrina e a jurisprudência que entende que o banco depositário é responsável pelo pagamento indevido de qualquer quantia que tenha à sua guarda, desde que aja com culpa, cabendo-lhe elidir a presunção do disposto no art. 799.º, n.º 1 do Código Civil. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-04-2012, Proc. n.º 376/2002.E1.S1, “a boa prática bancária prescreve que, na sua gestão interna, os Bancos façam uso das hodiernas e diversificadas ferramentas tecnológicas que a moderna sociedade põe ao seu dispor”.

Exige-se, assim, profissionalismo, idoneidade, competência, zelo e rigor aos empregados bancários no exercício da sua actividade, o que bem se compreende, quer para a preservação da boa imagem dos Bancos, quer para não defraudar a confiança e as expectativas legítimas dos seus clientes, porquanto a frustração dessa confiança geraria insegurança e colocaria em causa todo o exercício da actividade bancária que assenta num modelo de exigência, de rigor e de seriedade. [...]

Estes princípios encontram-se acolhidos, designadamente, nos arts. 73.° e 74.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31-12,  com as alterações introduzidas pelo DL n.º 1/2008, de 03-01 –, onde se prevê que “[a]s instituições de crédito devem assegurar, em todas as atividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência” e que “[o]s administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados.”.

Deste modo, encontrando-se a actividade bancária e creditícia organizada profissionalmente, implicando a movimentação e a gestão de amplos recursos financeiros, a verificação do formalismo das operações bancárias, implica que o controlo de erros e lapsos cometidos pelos seus funcionários não possa ser descurado, constituindo tarefas da sua exclusiva responsabilidade, designadamente através da imposição de práticas rigorosas que atenuem os riscos inerentes à actividade exercida.

Estes princípios, como é bom de ver, são inteiramente válidos para o IGCP., E.P.E., na sua actividade de gestão das certeiras de clientes titulares de certificados de aforro, considerando o exercício de operações relacionadas, nomeadamente, com recebimentos, pagamentos em dinheiro e transferência de fundos ou outros valores escriturais nominativos e reembolsáveis.

Desta forma e no âmbito deste processo ter-se-á de sopesar, com especial enfâse, a responsabilidade do IGCP, densificando o critério geral do bom pai de família que deverá ser, in casu, o critério de um bom profissional da categoria e especialidade do devedor à data da prática do facto, tendo presentes os quadros da responsabilidade civil contratual e extracontratual geral.

Nesta medida, acompanhamos por correctas as seguintes considerações da sentença recorrida:

“A Autora e BB, durante o período em que foram casados, subscreveram certificados de aforro da Série B, os quais ficaram afectos à conta aforro com o nº ...86, figurando aquele como titular e a Autora como autorizada para movimentação.

O casamento em questão foi celebrado em ../../1977, sem convenção antenupcial, pelo que ficou sujeito ao regime de bens supletivo, ou seja, considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, integrando tais certificados de aforro a comunhão conjugal, de acordo com os artigos 1717.º e 1724.º, alínea b) ambos do CC.

Prova-se igualmente que a Autora instaurou, como preliminar da acção de divórcio que propôs contra BB, em 2001, um procedimento cautelar de arrolamento de bens, nomeadamente das quantias depositadas em certificados de aforro, da conta aforrista nº ...86, o qual foi decretado em 23 de Maio de 2001, tendo a Ré sido nomeada pelo tribunal como depositária dessas quantias, nos termos do artigo 426.º, n.º 2 do CPC (cf. facto E), tendo a mesma confirmado ter imobilizado a conta n.º ...86 desde o dia 11.06.2001, remetendo um extrato dessa mesma conta àquela data, de onde resultava o depósito de certificados de aforro no valor de 9.186.176$00, correspondentes a € 45.820,45.

No âmbito do CPC de 1961 o arrolamento estava previsto nos artigos 421.º a 427.º, estatuindo o artigo 424.º, n.º 5 que lhe eram aplicáveis as disposições relativas à penhora (à semelhança do que prescrevem os artigos 403.º a 409.º do CPC vigente), pelo que os poderes e deveres do depositário dos bens arrolados serão os mesmos do depositário dos bens penhorados.

Designado o depositário, as suas obrigações estavam concretizadas no artigo 843.º do CPC de 1961 (actualmente no artigo 760.º), incumbindo-lhe, de acordo com o n.º 1, além dos deveres gerais do depositário, (…) o dever de administrar os bens com a diligência e zelo de um bom pai de família e com a obrigação de prestar contas.” (…).

“Regressando ao caso sub iudice prova-se que a Ré permitiu que fossem levantadas as quantias que estavam arroladas e imobilizadas à ordem de um determinado processo judicial (que a mesma sabia tratar-se do processo n.º 438-A/2001 do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, tal como assente em G. e X.), sem que essa ordem de desbloqueio/autorização lhe tivesse sido dada, assim se revelando a ilicitude do facto (violação de uma ordem emitida por um tribunal).

A Ré é uma pessoa colectiva de direito público, empresarial, equiparada por lei a uma instituição de crédito, pelo que, no desenvolvimento da sua actividade financeira profissional, deve actuar com diligência e zelo acrescidos, exigindo-se que analise a documentação que lhe é dirigida, com responsabilidade e sem ligeireza, o que, no vertente caso, não aconteceu. 

Tal como nos impõe o artigo 487.º, n.º 2 do CC a culpa deve apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

Neste caso, a culpa da Ré deve ser apreciada com o cuidado que se impõe a quem opera no sector bancário, das instituições de crédito, ou seja, segundo o padrão profissional em que a mesma se inclui, no âmbito de uma organização complexa e que se exige tecnicamente habilitada.

Não existe, pois, no nosso juízo, qualquer justificação para que a Ré tenha, em primeiro lugar, auscultado o processo n.º 89/02...., a correr termos num tribunal criminal, quanto à possibilidade de ser levantada a ordem de imobilização dos certificados de aforro, ordem essa que tinha sido emitida no âmbito de outro processo,  a correr termos noutro tribunal, este de natureza cível, tendo, logo nesse momento, incorrido numa falha reveladora de impreparação e incúria, falha essa que resulta de uma instrução interna (cf. facto V), de onde se infere que a Ré encara o Tribunal Judicial de Viseu, como um órgão jurisdicional único, quando podia e devia estar ciente que uma ordem emitida no âmbito de um determinado processo, a correr termos num concreto tribunal, só pode ser levantada/revogada por decisão tomada por esse tribunal (sendo certo que a Ré teria, certamente, experiência anterior relativa a pedidos de penhoras sucessivas, realizadas no âmbito de processos distintos, estando ciente que uma ordem de levantamento de uma dessas penhoras, não poderia significar o levantamento das demais ordens de apreensão).

Depois, conforme se colhe do encadeamento fáctico descrito em T. a Z. a Ré é alertada para o facto da conta de certificados de aforro não estar bloqueada à ordem do processo n.º 89/02...., dado que, em 16.02.2016, este tribunal criminal, lhe pede que identifique o processo à ordem do qual se encontra bloqueada a conta aforro do ali executado, bem como os montantes disponíveis na mesma, ao que a Ré responde tratar-se da conta aforro “imobilizada à ordem do Processo n.º 438-A/2001, na totalidade”, pelo que, neste contexto, agiu de modo precipitado e negligente ao avaliar que, a resposta dada em 16-03-2016, no processo 89/02...., da Instância Local Secção Criminal – Juiz 2, no sentido de que o valor que excede os € 6587,88 poderá ser levantado livremente pelo aforrista titular”, seria extensível a qualquer outro processo que tivesse como interveniente o aforrista.

A ré não diligenciou por compatibilizar as informações de que dispunha e que lhe permitiria fazer uma análise correcta da situação, tendo autorizado a movimentação da conta de aforro de modo imprudente, podendo e devendo actuar de outro modo. (…) A conduta da ré merece, assim, a reprovação do direito (bastando a negligência ou a mera culpa), revelando-nos os factos que a mesma poderia e deveria ter agido de outro modo, assim evitando a verificação de danos.

Apurada a culpa do agente fica o mesmo obrigado a indemnizar o lesado, devendo o montante da indemnização corresponder ao prejuízo causado, exigindo-se, pois, a verificação de um dano (cfr. artigo 562.º do Código Civil).

A obrigação de indemnização supõe um nexo de causalidade entre o facto e o dano, expresso no artigo 563.º do CC.

O dano é a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.

Dispõe o artigo 564.º, n.º 1, do CC que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

Como dá conta Menezes Cordeiro [Tratado de Direito Civil, XII, Contratos em Especial, 2.ª parte, Almedina, 2020, pág. 763-765] o dever de guarda do depositário, cuja diligência deve ser avaliada de acordo com o bom pai de família e é mais exigente nos depósitos profissionais remunerados, implica todas as atuações necessárias para que a restituição possa operar em boa e devida ordem, isto é, com a coisa íntegra. Tratando-se de uma coisa frutífera, os frutos devem ser restituídos [1187.º c]: logo, deve o depositário providenciar para que eles ocorram.”

Trata-se de uma avaliação certeira da factualidade, com a qual se concorda por inteiro, sendo, pois, de concluir pela existência de inequívoca responsabilidade civil da ré, por verificados os pressupostos legais enumerados no art. 483.º do Código Civil – facto ilícito, culpa, nexo de causalidade e dano.

Passemos, então, à questão da fixação do quantum indemnizatório, uma vez que recorrente discorda, quer do montante dos danos patrimoniais, quer do montante dos danos não patrimoniais fixados.

No ordenamento jurídico português, o princípio geral que enforma o sistema indemnizatório é o da reparação natural do dano – as coisas atingidas pelo evento lesivo devem ser repostas com exactidão na situação anterior –, consagrado no art. 562.º do Código Civil: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” . Porém, de acordo com o n.º 1 do art. 566.º do Código Civil, “a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.

Emerge destes dispositivos legais que a obrigação de indemnizar se traduz numa reposição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (restituição natural), sendo que, nos casos dessa restituição não ser possível, ou ser insuficiente ou ser excessiva, a indemnização se concretizará, por sucedâneo, numa quantia monetária.

Nessa fixação rege o princípio da teoria da diferença – “a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” (n.º 2 do art. 566.º do Código Civil) – e, subsidiariamente, o recurso à equidade – “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” (n.º 3 do art. 566.º do Código Civil).

A data mais recente a que se refere o n.º 2 do art. 566.º do Código Civil é, nos termos do art. 611.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a correspondente “à situação existente no momento do encerramento da discussão”.

De entre as mais relevantes e variadas classificações do dano, distinguem-se, prima facie, os danos patrimoniais dos danos não patrimoniais:

A) Ao nível dos danos patrimoniais, a indemnização compreende não só o ressarcimento dos danos emergentes, vistos como os prejuízos causados nos bens ou direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão, mas também a compensação pelos lucros cessantes, entendidos como os ganhos que se frustraram e os benefícios que o lesado deixou de auferir por causa da lesão – art. 564.º, n.º 1 do Código Civil. 

B) A indemnização por danos não patrimoniais fixa-se por recurso à equidade, com observância das circunstâncias especificadas no art. 496.º do Código Civil, não sendo tidos em conta os meros incómodos ou as contrariedades sofridas pelo lesado, devendo a indemnização mostrar-se adequada a contribuir para atenuar e minorar o sofrimento físico e psicológico em que tais danos se traduzem: para calcular a compensação a atribuir por danos não patrimoniais “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, o tribunal decide segundo a equidade, tomando em consideração “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”.

Na situação sob recurso, itera-se, a autora/recorrida peticionou as seguintes indemnizações:

– A título de danos patrimoniais, a quantia de € 40 235,40 (quarenta mil duzentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos) acrescida dos juros vencidos no montante de € 3082,14 (três mil e oitenta e dois euros e catorze cêntimos).

–  A título de danos não patrimoniais a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros).

–  Os juros vincendos sobre essas quantias.

Vejamos.

In casu, à autora foi adjudicada a quantia de € 26 558,16, da verba n.º 78 da relação de bens, verba essa que descrevia os certificados de aforro alvo de arrolamento, à data da imobilização, no montante global de € 45 820,45, da qual a ré, IGCP, E.P.E., era depositária judicial.

Acresce que ficou igualmente provado que, na altura em que foram os certificados foram resgatados, com a devida autorização da ré, o valor global desses títulos de poupança (incorporando o capital inicial e os juros) ascendia a € 73 175,10, por força da remuneração que tiveram ao longo dos anos.

Naturalmente, o dano emergente sofrido pela autora corresponde ao valor da quantia adjudicada – i.e., € 26 558,16 –, acrescido dos respectivos frutos, os quais no seu caso correspondem ao valor peticionado de € 13 677,32, que corresponde a metade da valorização que sofreram, por força do regime de bens a que esse património esta vinculado.

Na verdade, contrariamente ao invocado pela ré na sua contestação, é ostensivo e manifesto que todos os valores constantes da referida conta de certificados de aforro estavam abrangidos pela ordem de arrolamento emitida em 2001, a qual se manteria vigente até à sua revogação/modificação judicial, razão pela qual, estando a IGCP, E.P.E., enquanto depositária daqueles certificados de aforro arrolados, obrigada a restituir o valor do capital investido e os seus frutos civis, correspondente a capitalização dos juros, não restam dúvidas de que existe o necessário nexo causal entre o comportamento ilícito e culposo da ré e o dano final infligido à autora, por ter sido impedida de receber a quantia total a que tinha legalmente direito.

Por conseguinte, a título de danos patrimoniais a ré está obrigada a indemnizar a autora na quantia peticionada de € 40 235,40 (quarenta mil duzentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos) sendo certo, como é bem salientando pelo tribunal a quo“que, embora a Ré actue com mera culpa, as demais circunstâncias do caso, nomeadamente a desproporcionalidade existente entre a situação económica dos interessados e a repercussão que os danos tiveram na situação patrimonial da Autora, segundo um julgamento de equidade, não justificam a fixação da indemnização em valor inferior ao dos danos causados – cf.  artigo 494.º do CC”.

Finalmente, ao valor indicado acrescem os juros de mora vencidos e vincendos, contabilizados desde a interpelação extrajudicial da ré, ocorrida em 18-11-2019 – que corresponde à data em que a ré recebeu a carta de interpelação remetida pela mandatária da autora a pedir o pagamento do quantitativo supra indicado (cf. alínea JJ) dos factos provados) –, à taxa legal em vigor para os juros civis, até integral pagamento, de acordo com os artigos 805.º, n.ºs 1 e 3, a contrario, e 559.º ambos do CC.

A terminar, a ré/recorrente dissente, ainda, da indemnização fixado pelo tribunal a quo a título de danos não patrimoniais que a autora alega ter sofrido em virtude do seu comportamento.

O art. 496.º, n.º 1, do Código Civil prescreve que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. [...]

É hoje consensual o entendimento de que na fixação da indemnização por danos não patrimoniais os tribunais não se devem guiar por critérios miserabilistas; tal compensação deverá, então, ser significativa e não meramente simbólica. Está ultrapassada a época das indemnizações reduzidas para compensar danos não patrimoniais. Importa, no entanto, vincar que indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária. O juiz deve procurar um justo grau de “compensação”.

Nesta esteira, admitindo-se a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, ficou provado, no caso sub judice, que o comportamento do IGCP, E.P.E., ao permitir o resgate da carteira de certificados de aforro na sua totalidade, por parte do ex-marido BB da autora, causou-lhe sofrimento, desgaste emocional e ansiedade. Com efeito, a autora estava convencida que existindo uma ordem judicial de arrolamento dos certificados de aforro da conta n.º ...86, e tendo o IGCP imobilizado essa conta, jamais sofreria qualquer prejuízo, por ter confiado plenamente nas Instituições, razão pela qual, ao ser informada que a referida conta n.º ...86 se encontrava saldada – na senda do resgate da totalidade dos títulos pelo seu ex-marido BB, com a devida autorização da recorrente –, ficou estupefacta e incrédula com o que lhe estava a acontecer, tendo passado noites sem dormir, sem saber o que fazer e teve dificuldades financeiras na sua vida, que ainda hoje perduram.

É assim evidente que o comportamento da recorrente provocou um grave impacto na vida da autora, causando-lhe danos não patrimoniais que revestem a gravidade necessária para serem objecto de indemnização.

Nesta esteira, admitindo-se a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais alegados, recorrendo à equidade e ponderando os padrões de indemnização seguidos pela jurisprudência, julga-se adequada a fixação desse montante indemnizatório no valor de € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros), estabelecido pela 1.ª instância, improcedendo, também nesta parte, o recurso da recorrente.

Quanto aos juros de mora, tem aplicação o Acórdão Uniformizador n.º 4/2002, de 27-06-2002 [Publicado no Diário da República n.º 146/2002, Série I-A de 2002-06-27, pp. 5057 – 5070, que fixou a seguinte jurisprudência: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação"], pelo que sobre a mencionada quantia incidirão juros de mora vincendos desde a data da sentença até integral pagamento, calculados à taxa de juros civis."

[MTS]


04/12/2025

Reflexões sobre a(s) competência(s) do Supremo Tribunal de Justiça

 


[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2025 (46)


Dupla conforme;
requisitos


1. O sumário de STJ 25/2/2025 (330/21.8T8CSC.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Não obsta ao efeito da “dupla conforme” prevista no art.º 671.º n.º 3 do CPC a circunstância de o tribunal da Relação, na apreciação do recurso de apelação, em que confirmou a decisão recorrida quanto à sua fundamentação e dispositivo, ter adicionado, a título de obiter dictum, um outro fundamento para a decisão recorrida.

II. Está fora do âmbito do procedimento previsto no art.º 643.º do CPC a apreciação da aplicação da dispensa da taxa de justiça remanescente prevista no art.º 6.º n.º 7 do RCP.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Reportando-nos ao caso destes autos, dúvidas não existem quanto à admissibilidade geral da revista, quanto ao seu objeto, valor e sucumbência (artigos 671.º n.º 1 e 629.º n.º 1 do CPC).

É sabido, porém, que o n.º 3 do art.º 671.º do CPC consagra o obstáculo à revista comummente designado de “dupla conforme”:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

A jurisprudência do STJ tem densificado o conceito da dupla conforme no sentido de que apenas inexiste dupla conforme quando se esteja perante “uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância” (acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,– sublinhados nossos).

Isto significa que a verificação de fundamentação essencialmente diferente, “não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância.” Ou seja, só deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (acórdão do STJ, de 31.3.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1). Por isso, como se diz no mesmo acórdão (STJ, de 31.3.2022), citando-se Abrantes Geraldes, “a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.

Expostas estas premissas, vejamos então o caso a que se reporta esta reclamação.

A 1.ª instância absolveu o Estado Português por ter considerado que os factos provados, atinentes às diligências praticadas tendo em vista a citação da Ré na ação declarativa instaurada pela ora reclamante contra a identificada sociedade brasileira, não constituíam um ilícito. Não havendo convenções internacionais aplicáveis à citação em causa, o tribunal aplicou as regras de direito interno, isto é, procedeu à citação postal, com aviso de receção, para as moradas que se foi conhecendo serem as da R. aí demandada. Sendo certo que a segunda tentativa de citação postal, para a nova morada conhecida, teve sucesso. As autoridades processuais agiram de acordo com o formalismo imposto pela lei portuguesa, única a que, no caso concreto, deviam obediência. Cabia à A., se pretendia mais tarde executar a sentença, assim obtida, no estrangeiro, adotar um comportamento processual tendente a moldar o ato de citação às peculiaridades próprias da justiça brasileira, para tal alertando o tribunal – o que não fez.

Interposta apelação pela A., a Relação concordou com a sentença recorrida. Para a Relação, não ocorria responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, na medida em que o tribunal em questão praticou os atos de citação que se impunham, face ao ordenamento jurídico aplicável – o português – pelo que não existe ato ilícito, desencadeador de responsabilidade civil. Em suma, a Relação entendeu, em linha com a 1.ª instância, que a citação efetuada não consubstanciou qualquer ato ilícito, pressuposto da responsabilidade que se pretendia assacar ao R./apelado, o que conduzia necessariamente à improcedência da ação. Assim, as considerações adicionais, a que a Relação procedeu no acórdão, acerca da falta de prévia revogação da decisão danosa, são irrelevantes para o efeito da configuração de dupla conforme. A não verificação desse elemento da responsabilidade em causa foi adiantada em termos de obiter dictum, conforme claramente emerge dos termos em que esse tema adicional foi introduzido no acórdão: “Ainda que assim não se entendesse e, por hipótese se considerasse estarmos perante um acto ilícito, sempre faltaria o preenchimento do requisito da prévia revogação…

O fundamento essencial do decaimento da ação, na primeira e na segunda instância, foi a inexistência de facto ilícito, imputável ao Estado no exercício da função jurisdicional.

Ocorre, pois, a dupla conforme, obstativa da revista ordinária, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC.

Ao referido obstáculo à revista ordinária não tolhe a circunstância de, na revista, a reclamante ter invocado a inconstitucionalidade de determinadas normas. Essa é matéria que deverá ser apresentada perante o Tribunal Constitucional, nos termos legais.

Note-se que no que concerne à arguição de inconstitucionalidade de normas que, como se referiu, o tribunal a quo invocou a mero título de obiter dictum, ou seja, que não constituíram o real fundamento (ratio decidendi) da improcedência da apelação, dir-se-á que tal situação não é capaz de sustentar um recurso para o Tribunal Constitucional.

A razão é evidente, como decorre da transcrição das próprias palavras do Tribunal Constitucional (TC 15/2019, de 09.01.2019):

“…a exigência de que a norma objeto do recurso de constitucionalidade tenha sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, encontra a sua razão de ser na instrumentalidade da intervenção do Tribunal Constitucional no processo, o mesmo é dizer, de que a decisão sobre a conformidade constitucional da norma sindicada se revista de utilidade nos autos. «A exigência, de que a norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder refletir-se utilmente no processo. Sendo a referência à norma questionada mero obiter dictum, a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se refletirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 497/99). Com efeito, se a norma objeto do recurso não constituir ratio decidendi da decisão recorrida – isto é, se não integrar o conjunto das suas condições necessárias −, um eventual juízo de inconstitucionalidade seria processualmente inerte, e, nesse exato sentido, inútil. Ora, constitui entendimento sedimentado deste Tribunal que «(…) não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso» (Acórdão n.º 366/96)””.

Se, como a reclamante refere, o Tribunal Constitucional desse razão à recorrente no que se refere às questões de inconstitucionalidade atinentes ao fundamento do acórdão proferido pela Relação a quo, então a recorrente conseguiria que a Relação reapreciasse o caso à luz desse juízo de inconstitucionalidade. E, aí, se a Relação reiterasse, agora a título de ratio decidendi, a formulação do argumento primitivamente chamado a título de obiter dictum, achado estaria o caminho para uma eventual revista ordinária.

Quanto à pretensão formulada pela recorrente/reclamante no que concerne a uma eventual dispensa do pagamento de taxa de justiça remanescente (art.º 6.º n.º 7 do RCP), reitera-se que não cabe no âmbito da reclamação prevista no art.º 643.º do CPC a formulação de juízos ou de decisões atinentes ao regime tributário de procedimentos outros que não os da própria reclamação. Ora, à presente reclamação não se aplica o regime tributário a que se reporta o art.º 6.º n.º 7 do RCP, mas o regime previsto no art.º 7.º, n.ºs 4 e 8 e tabela II anexa ao RCP."

[MTS]

03/12/2025

Jurisprudência 2025 (45)


Identidade de partes;
excepção de caso julgado*

1. O sumário de RE 30/1/2025 (5222/12.9TBSTB.E1) é o seguinte:

I. O que se prevê na norma do n.º 1 do artigo 421º do Código de Processo Civil é a possibilidade de apenas algumas provas – depoimentos e perícias – produzidas num processo poderem ser invocadas noutro processo contra a mesma parte, tendo em vista a prova de factos que hajam sido alegados no processo onde se invoca a valoração de tais provas e que nele sejam objecto de instrução e prova. O que está em causa neste preceito é, pois, o valor extra-processual da prova e não o valor extra-processual dos factos dados como provados noutro processo.

II. Apesar da sua liberdade de julgamento, traduzida na livre apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, a não ser que se conclua que os peritos basearam o seu raciocínio em erro manifesto ou critério legalmente inadmissível.

III. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

IV. O facto de os réus na presente acção terem na acção administrativa, já decidida com trânsito em julgado, a posição de contra-interessados, em face da estrutura própria do processo administrativo, não afasta a verificação do requisito de identidade das partes exigido pelo n.º 2 do artigo 581º do Código de Processo Civil, pois o que releva para este feito é a qualidade jurídica das partes, que é substancialmente idêntica em ambos os processos. Os contra-interessados mais não são do que aqueles que são directamente prejudicados no processo ou que têm um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado (cfr. artigo 57º do CPTA), tendo, assim, idêntica posição à que os réus têm no processo civil, em face do disposto no artigo 30º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

V. Tendo transitado em julgado o acórdão proferido na acção administrativa intentada pelas aqui autoras, que julgou improcedente a acção, onde era invocada a violação do artigo 73º do RGEU pelas obras edificadas pelos aqui réus, ali demandados como contra-interessados, julgando-se não ser a mesma aplicável ao caso, esta decisão passou a constituir caso julgado material, quanto à questão da aplicação do regime do artigo 73º do RGEU às obras em apreço, o que impede que a mesma volte a ser apreciada noutra acção em que intervenham as mesmas partes.

VI. Constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho, só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras que importam a servidão de vistas o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"5. No que se reporta à reapreciação jurídica da causa, importa relembrar que, com a presente acção visavam as AA., em face do pedido formulado na petição inicial, com o esclarecimento efectuado em sede de audiência prévia, obter o reconhecimento, por usucapião, da servidão de vistas inerente à sua janela que deita directamente para o prédio dos RR., e a condenação dos RR. a demolirem as obras efectuadas em violação dos artigos 1362º do Código Civil e 73º do RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951). [...]

6. [...] quanto ao pedido de demolição das obras efectuadas pelos RR., conclui-se que o Tribunal não podia conhecer nos presentes autos da violação da dita construção das normas do artigo 73º do RGEU, por se ter formado caso julgado material em função da decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo no processo n.º 512/10.8... (cfr. artigos 278º, n.º 1, alínea e) 576º, n.º 2, e 577º, alínea i), do Código de Processo Civil), e que a obra edificada não estava em contravenção com o disposto no n.º 2 do artigo 1362º do Código Civil.

A recorrente não põe em causa a constituição, por usucapião, da servidão de vistas, declarada na sentença, mas impugna a decisão quanto ao não conhecimento da questão da violação das obras efectuadas pelos RR., com referência à violação do artigo 73º do RGEU, e entende ocorrer violação das normas dos artigos 1360º e 1362º do Código Civil.

Vejamos cada uma das questões suscitadas.

7. Como se prevê no n.º 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil, as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa. Se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar a litispendência, mas se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção de caso julgado.

Ambas as excepções visam evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (vide artigo 580º, n.º 2, do CPC e, mais detalhadamente (cfr. Miguel Teixeira de SousaEstudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 567 e 574; na jurisprudência, vide, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/1/1994 e de 17/2/1994, in BMJ n.ºs 433, pág. 515 e 434, pág. 580, respectivamente).

Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. artigo 581º, n.º 1, do CPC).

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (artigo 581º, n.º 2, do CPC).

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (cf. artigo 581º, n.º 3, do CPC).

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - consagrando, assim, a conhecida teoria da substanciação (cf. artigo 581º, n.º 4, do CPC).

Ensina Antunes Varela que “para sabermos se há ou não repetição da acção, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem acção) fixado e desenvolvido no artigo 581.°, do CPC, mas também à directriz substancial traçada no n.º 2, do artigo 580.°, do CPC, onde se afirma que a excepção da litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” - vide “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 302.»

8. No caso em apreço, como resulta dos pontos 16 a 19 dos factos provados, BB intentou contra o Município de ..., originariamente Acção Administrativa Comum, na qual se peticionava a condenação da Entidade Demandada “a adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução” no edifício de habitação contiguo ao seu, que correu termos sob o n.º 512/10.8..., a qual veio a ser julgada improcedente por acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, transitado em julgado em 27/01/2022, por se haver concluído, em aplicação da jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal Administrativo que ali se citou, que “…, não obstante entre a obra em causa e cada um dos lados da janela das autoras … não exista a distância de 2 metros, contada do eixo vertical da janela …, não ocorre violação do art. 73º (2ª parte) do RGEU, já que este normativo legal apenas se aplica às janelas das construções novas, e não também às janelas das construções pré-existentes /in casu às janelas da casa das autoras)”.

Como se vê da certidão junta aos autos (máxime do acórdão do TCA a fls. 280), a acção administrativa foi intentada por “BB, por si e ainda em representação da AA”, que são também as AA. nos presentes autos e, embora aquela acção tenha sido instaurada contra o Município de ..., nela foram citados como contra-interessados, além de outros, CC e marido DD [tendo a contra interessada apresentado contestação recorrido da sentença do TAF de ..., de 04/02/2014, que lhe foi desfavorável e que veio a ser revogada pelo acórdão do TCA, na parte impugnada], que são também os RR. na presente acção.

Ora, ao contrário do invocado pela recorrente, não vemos que pelo facto de os aqui RR. terem na acção administrativa a posição de contra-interessados, em face da estrutura própria do processo administrativo, tal afaste a verificação do requisito de identidade das partes exigido pelo n.º 2 do artigo 581º do Código de Processo Civil, pois o que revela para este feito é a qualidade jurídica das partes, que é substancialmente idêntica em ambos os processos. Efectivamente, os contra-interessados mais não são do que aqueles que são directamente prejudicados no processo ou que têm um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado, como decorre do disposto no artigo 57º do CPTA (Código de Processo nos Tribunais Administrativo, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro), onde se estipula que, “[p]ara além da entidade autora do acto impugnado, são obrigatoriamente demandados os contra-interessados a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.”, tendo assim, idêntica posição em relação à que os réus têm no processo civil, como resulta no artigo 30º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Deste modo, os contra-interessados no processo administrativo, tal como os réus no processo civil, são os demandados, por terem interesse em contradizer e/ou serem directamente prejudicados pela pretensão formulada pelo demandante.

9. E também não vemos que haja obstáculo à verificação dos demais requisitos.

No que ao pedido se reporta, na presente acção é pedida a condenação da R. a “demolir as obras efectuadas em violação dos arts. 1362º do Cod. Civil e 73º do RGEU, reconhecendo a servidão de vistas inerente á janela existente no prédio propriedade da A. AA que deita directamente para o prédio da R., deixando uma distância mínima de três metros de separação da edificação em relação á janela.”, enquanto na acção administrativa se pediu a “adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução …, por tal execução violar o artigo 73º do RGEU, devendo ainda a mesma entidade R., ser condenada a não emitir qualquer título, designadamente licença de utilização, enquanto tal ilegalidade não for reparada”.

Daqui decorre que há identidade do pedido em ambos os processos, no que respeita à pretensão material que se pretender exercer respeitante à demolição das obras, não relevando para o efeito que no procedimento administrativo se pretenda que tal pretensão seja executada por via da intervenção da Câmara Municipal, e que no processo civil o seja por determinação directa ao demandado. Em ambos os processos se pretende o mesmo resultado, que é a demolição das obras que se entende serem ilegais, infringindo os direitos das demandantes, embora com configuração diversa.

E também não existem dúvidas que em ambos os processos se pretende alcançar tal fim pedido por via da ilegalidade as ditas obras, invocando-se em ambos a violação das normas do artigo 73º do RGEU. Os factos materiais invocados em ambas as acções, relativos a esta pretensão, são substancialmente idênticos e em ambas se invoca também a violação do preceito constante do artigo 73º do RGEU [onde se prescreve que: “As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.”]

Deste modo, à semelhança do decidido, consideram-se estarem reunidos os requisitos necessários à verificação da excepção de caso julgado, nos termos previstos nos artigos 580º e 581º do Código de Processo Civil.

10. Acresce que, mesmo que se entendesse não ocorrer a dita excepção, designadamente por falta de identidade das partes, sempre se concluiria que a decisão proferida no processo administrativo, que julgou improcedente a acção, por entender não ser aplicável ao caso o artigo 73º do RGEU, se impunha nos presentes autos, maxime às AA., que ali foram demandantes, por via da autoridade do caso julgado, de forma a que o tribunal chamado a decidir a questão, ainda que enquadrada de modo diverso, estava impedido de o fazer.

Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21/03/2013 (proferido no proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1), são essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado: a) A excepção dilatória do caso julgado; e b) a autoridade do caso julgado.

A este respeito escreveu-se o seguinte:

«Importa … averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.

Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.

Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou [Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).

Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.

A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra, de 28/09/2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo (Proc. n.º 392/09.6TBCVL.S1, in www.dgsi.pt), afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário, que importa à presente decisão: I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498° do CPC» (actual artigo 581º). [...]

11. Assim, verificando que no aresto do TCA se julgou improcedente a acção, [na qual também se pretendia a demolição da obra em causa nos presentes autos por violação do artigo 73º do RGEU], por se haver concluído, em aplicação da jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal Administrativo que ali se citou, que “…, não obstante entre a obra em causa e cada um dos lados da janela das autoras … não exista a distância de 2 metros, contada do eixo vertical da janela …, não ocorre violação do art. 73º (2ª parte) do RGEU, já que este normativo legal apenas se aplica às janelas das construções novas, e não também às janelas das construções pré-existentes /in casu às janelas da casa das autoras)”, e tendo o acórdão proferido na acção administrativa transitado em julgado, esta decisão passou a constituir caso julgado material, quanto à questão da aplicação do regime do artigo 73º do RGEU ao caso dos autos (cfr. artigo 619º, n.º 1 e 621º do CPC), o que impede que volte a ser reapreciada noutra acção, seja, por verificação dos requisitos da excepção dilatória de caso julgado, seja pela sua imposição às partes por via da autoridade de caso julgado.

E não se argumente que nos presentes autos o tribunal não é colocado na contingência de reproduzir ou contrariar a decisão antes proferida, pois, para se apreciar na presente acção se as obras em causa implicam a violação da norma do artigo 73º do RGEU, sempre este tribunal teria que decidir que tal preceito era aplicável ao caso dos autos, contrariando, assim, o decidido no acórdão do TCA, proferido no processo 512/10.8BEALM."

*3. [Comentário] O acórdão decidiu bem no que respeita à verificação da exceção de caso julgado.

Menos feliz é a seguinte afirmação:

"[...] Acresce que, mesmo que se entendesse não ocorrer a dita excepção, designadamente por falta de identidade das partes, sempre se concluiria que a decisão proferida no processo administrativo, que julgou improcedente a acção, por entender não ser aplicável ao caso o artigo 73º do RGEU, se impunha nos presentes autos, maxime às AA., que ali foram demandantes, por via da autoridade do caso julgado, de forma a que o tribunal chamado a decidir a questão, ainda que enquadrada de modo diverso, estava impedido de o fazer."

Com a devida consideração, a afirmação é muito duvidosa. Segundo se pode perceber, a RE admite a verificação da autoridade de caso julgado (e não a da excepção de caso julgado) "por falta de identidade das partes" nas duas acções. Como é claro, trata-se de um lapso, porque, ressalvadas as situações em que o caso julgado se estende a terceiros, nenhum terceiro pode ficar vinculado a um caso julgado constituído numa acção em que não tenha sido parte. Portanto, não se pode argumentar que, não se verificando a excepção de caso julgado por falta de identidade de partes, ainda assim podia ocorrer a autoridade de caso julgado.

MTS

02/12/2025

Bibliografia (Índices de revistas) (244)


RDCiv.

-- RDCiv. 71 (2025-1)

-- RDCiv. 71 (2025-2)

-- RDCiv. 71 (2025-3)

-- RDCiv. 71 (2025-4)

Jurisprudência europeia (TJ) (329)



Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.º 1215/2012 — Artigo 25.º, n.º 1 — Pacto atributivo de jurisdição contido num contrato de subcontratação — Cessão de um crédito resultante do contrato — Oponibilidade do pacto atributivo de jurisdição pelo cessionário ao devedor do crédito — Requisitos


TJ 23/10/2025 (C‑682/23, E.B. sp. z o.o./K.P. sp. z o.o.) decidiu o seguinte:

O artigo 25.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

um terceiro, enquanto cessionário de um crédito indemnizatório decorrente do incumprimento de um contrato que inclui uma cláusula atributiva de jurisdição, pode invocar essa cláusula contra o cocontratante inicial, enquanto devedor cedido desse crédito, nas mesmas condições em que a outra parte inicial no contrato a poderia ter invocado contra este último, para efeitos de uma ação de cobrança do referido crédito e sem o consentimento desse devedor, numa situação em que, de acordo com o direito nacional aplicável a esse contrato, conforme interpretado pela jurisprudência nacional, uma cessão de crédito implique uma transferência não só do direito de crédito no património do cessionário, mas também dos direitos associados a esse crédito, incluindo o de invocar a aplicação de um pacto atributivo de jurisdição contido nesse contrato, a menos que as partes iniciais do contrato tenham acordado expressamente a inoponibilidade dessa cláusula a seu respeito em caso de cessão a um terceiro de um crédito decorrente do mesmo contrato.

 

Jurisprudência 2025 (44)


Revisão de sentenças estrangeiras;
âmbito de aplicação; escritura pública


1. O sumário de RL 20/2/2025 (327/25.9YRLSB-6) é o seguinte:

Carece de fundamento legal a pretensão de revisão e confirmação de escrituras públicas lavradas no Brasil sobre reconhecimento de paternidade visto só conterem declarações dos outorgantes.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Prevê o Código de Processo Civil:

Art.º 978º
«1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada. (…)»

Art.º 980º:
«Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.»

No caso concreto as referidas escrituras públicas apenas contém declarações proferidas pelos ora requerentes. Assim, porque nenhuma decisão foi proferida por tribunal ou por notário, a pretensão dos requerentes não tem suporte legal."

[MTS]

01/12/2025

Jurisprudência 2025 (43)


Inquérito judicial;
valor da causa


I. O sumário de RL 25/2/2025 (3260/22.2T8SNT.L1-1) é o seguinte:

1- Quando o inquérito judicial à sociedade tem como fundamento a não apresentação pontual, pela gerência, do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, seguem-se os termos previstos no art.º 67.º do CSC, tal como decorre do estatuído no n.º 3 do art.º 1048.º do CPC.

2- Estando em causa uma sociedade por quotas, ao sócio requerente compete então alegar a sua qualidade de sócio e bem assim que aquele relatório de gestão, contas do exercício e demais elementos de prestação de contas não foram apresentados pela gerência à assembleia geral de sócios, encontrando-se já decorrido o prazo legal para o efeito.

3- Compete depois à sociedade demandada demonstrar que no final de cada exercício apresentou as respetivas contas, sob pena do inquérito prosseguir, não ficando a mesma desonerada da obrigação de apresentar contas e de convocar a aludida assembleia geral no final de cada exercício, pelo facto de ter procedido ao registo da prestação de contas, em conformidade com o regime previsto no Decreto-Lei n.º 8/2007 de 17/01 (IES). São obrigações distintas e uma não tira a outra.

4- Visando o sócio com o pedido de inquérito obter informação sobre o cerne da vida societária, refletida nas suas contas, no exercício legítimo de um direito social, não sendo assim possível apurar os efeitos patrimoniais diretos do exercício desse direito nem a utilidade económica do mesmo para os sócios, deverá fixar-se o valor da ação por equiparação com as situações previstas no âmbito dos interesses imateriais materializada no art.º 303.º do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"i) Do valor da causa:

Pela sentença recorrida foi fixado à causa diferente valor do indicado pelo Autor em sede inicial - de €8.000,00 – e não impugnado pelo Réu na sua contestação, pois que o tribunal a quo entendeu que não foi apresentado qualquer fundamento para o valor assim indicado. Por isso, o tribunal recorrido corrigiu tal montante, fixando à causa o valor de €2.500,00, valor correspondente à quota da sociedade pertencente ao Autor.

Diz o apelante que inexiste fundamento legal para essa correção, tanto mais que se trata de um pedido de apresentação de contas relativas a exercícios de mais de dez anos, devendo assim aplicar-se o disposto na segunda parte do n.º 1 do art.º 297.º do CPC, que alude ao benefício que pela ação se pretende obter, pelo que, o Tribunal a quo deveria ter mantido o valor atribuído pelo Apelante à causa ou convida-lo a aperfeiçoar e fundamentar o valor indicado, nos termos do disposto no art.º 590.º n.º 4, em consonância com o disposto nos arts.º 6.º n.º 1 e 7.º n.º 2, do CPC, atendendo até que, conforme resulta da carta enviada pelo Apelante, este pede esclarecimentos sobre o valor de 125.478,87€, que entregou à sociedade no ano de 2002.

Já nesta instância recursiva foram ouvidas as partes sobre a possibilidade de se fazer uso do consagrado no art.º 303.º do CPC, ao que, como vimos, o apelado se opôs.
Vejamos então.

O art.º 296.º n.º 1 do CPC diz-nos que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, consignando depois o n.º 1 do art.º 297º do mesmo diploma legal que se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.

Daqui se retira que a utilidade económica imediata do pedido, expressa em dinheiro, constitui o critério legal para a determinação do valor da causa, devendo, nos restantes casos, encontra-se o equivalente pecuniário correspondente à utilidade, ao benefício, que o autor da ação visa com ela alcançar, levando-se sempre em linha de conta que a base do pedido é a causa de pedir, que o explica e delimita (ver CPC anotado por Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 601).

Não obstante incidir sobre as partes o dever de indicação do valor da causa, podendo até a sua omissão acarretar consigo algumas consequências legais (arts.º 296.º n.º 1, 297.º n.º 1, 305.º n.º 3, 552.º n.º 1 al. f) e 558.º al. e), do CPC), certo é que é ao juiz que compete fixar em definitivo o “valor processual da causa”.

Com efeito, estipula o art.º 306.º do CPC que «1- Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.  2- O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença. 3- Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641.º.»

No quadro legal indicado, haverá, pois, que ponderar-se o que pretende o Autor com a propositura da presente ação, que visa a realização de um inquérito judicial à sociedade Ré, com vista a prestação de contas que, na alegação do autor, não foram prestadas ao longo dos anos. Estando em causa um processo especial de jurisdição voluntária, o uso de tal meio é a forma que um sócio tem de obter informação sobre a vida societária, sobre o seu regular andamento, tendo assim, como finalidade primeira, isso mesmo, ou seja, o conhecimento. É certo que poderá depois ter-se em vista uma atribuição ou distribuição de lucros, mas não é essa a finalidade primeira da presente ação, que visa apenas, nesta fase, obter informação sobre as contas da sociedade, o que nos impede assim, estamos em crer, de apurar os efeitos patrimoniais diretos da mesma ou a sua utilidade económica para os sócios.

Ora, como vimos, o Autor indicou, como valor da causa, o valor de €8.000,00, o que fez, como o próprio o admite, sem qualquer fundamentação fática para o efeito. Não obstante, tal valor não foi impugnado na contestação, que, por ser assim, foi aceite pelos Réus – cf. Art.º n.º 305.º n.º 4 do CPC.

Tal acordo entre as partes quanto à fixação do valor da causa, como vimos, não vincula o juiz, a quem compete, na verdade, fixar tal valor, não ficando o mesmo dispensado de examinar a objetividade decorrente daquele acordo. Conforme se sustenta no Ac. da RC de 12/10/2021, proc. 147/20.7T8CTB.C1, relatado por Maria João Areias, e com o qual aqui concordamos, (…) “ainda que assim não fosse, independentemente das posições assumidas pelas partes - falta de impugnação do valor atribuído pelo autor, considerando-se que o aceita, apresentação de um novo valor que é aceite pelo autor, manutenção de divergência entre as partes relativamente ao valor da ação -, o juiz terá sempre de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas (artigo 306º, nº1). Ou seja, não se encontrava o juiz dispensado de analisar o valor da causa à luz dos critérios legais previstos nos artigos 297º e ss. do CPC, divergindo do valor proposto pelas partes, caso reconhecesse não corresponder aquele ao resultante de tais critérios legais.”

No nosso caso, em face da ausência de qualquer lógica na indicação do valor da causa, e tendo o juiz que se debruçar sobre tal concreta questão, afigura-se-nos, como dissemos já, que visando-se com a presente ação a obtenção de informação do cerne da vida societária, que se traduz nas suas contas, ainda que as mesmas incidam, naturalmente, sobre direitos de conteúdo patrimonial, o que aqui está em causa são, na verdade, interesses imateriais ligados, em momento anterior e primário, ao exercício daquele legítimo direito de informação. E, por isso, entendemos que tal situação poderá ser equiparada à estabelecida no acima referido art.º 303.º n.º 1 do CPC («1- As ações sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 (…)»).

É, de resto, o entendimento seguido já no acórdão desta seção de 14/01/2025, proferido no proc. 2942/23.6T8VFX.1.L1-1, relatado por Pedro Brighton e disponível na dgsi, ainda que ali estando em causa uma ação de deliberação social, mas que versou também sobre relatórios de contas e contas anuais, assim sumariado em parte «(…) III- Na ação de anulação de deliberação social, onde se pretende anular uma deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de determinado ano, não é possível apurar os efeitos patrimoniais diretos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios, situando-se assim a ação no âmbito dos interesses imateriais. IV- Deste modo, o valor da ação deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (art.º 303º nº 1 do Código de Processo Civil), ou seja, será de fixar à ação o valor de 30.000,01 €».

Também aqui, cumprido que foi o contraditório sobre a questão suscitada, deve valor da presente ação coincidir com o da alçada da Relação, acrescida de um cêntimo (cf. arts.º 303.º n.º 1 do CPC e 44.º n.º 1 da LOSJ) ou seja, o valor de 30.000,01€."

[MTS]