Acção popular;
objecto; "interesses individuais homogéneos"
objecto; "interesses individuais homogéneos"
Sendo de admitir, face à factualidade alegada na petição, que os interesses que a apelante visa proteger, através do pedido que formulou, sejam comuns aos elementos que integram a indicada comunidade, não poderá considerar-se, nesta fase liminar, que a pretensão deduzida se mostre manifestamente improcedente por não estar em causa a defesa de interesses tuteláveis através de uma ação popular, conforme considerou a 1.ª instância, conclusão que se afigura prematura.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"2.2. Apreciação do objeto do recurso
Encontra-se impugnado na apelação o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial, com fundamento em manifesta improcedência da pretensão deduzida, por se ter entendido que a tutela dos interesses invocados pela autora não se mostra admissível no âmbito de uma ação popular.
Consta do despacho recorrido, além do mais, o seguinte:
[…] Não está em causa:- A consagração constitucional e legal do direito de ação popular – artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 1.º da Lei que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, aprovada pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;- O exercício desse direito por associações, mas também por pessoas individuais;- Que a finalidade é a de tutelar direitos relativos à saúde pública, dos consumidores, qualidade de vida, preservação do ambiente e do património cultural, interesses que não são apropriáveis por cada um individualmente.Uma ação popular tem por objeto interesses difusos.No caso, a autora pretende que venham a ser declaradas nulas as cláusulas de um contrato de cessão de exploração comercial relativos a espaços na (…), com o reconhecimento do direito dos AA. fecharem os seus estabelecimentos e condenação da ré no pagamento de indemnização.Ainda que possam estar em causa cláusulas contratuais gerais suscetíveis de ser objeto de ação inibitória (artigo 25.º da LCCG, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro), não se discute aqui, a avaliar pela alegação constante da petição inicial, nem interesses difusos em sentido estrito – situações materiais insuscetíveis de uma apropriação individual, com titularidade indivisível e dimensão irredutivelmente supra-individual, nem interesses individuais homogéneos – interesses passíveis de individualização autónoma, mas que surgem em situações de massa e em termos de perfeita identidade de natureza, nem interesses coletivos – interesses de categoriais ou interesses de classe, protegidos por uma associação de categoria ou classe, sem cuja intervenção tais interesses não podem ser defendidos na sua dimensão grupal.O facto de poderem existir interesses individuais que têm origem numa mesma e única alegada conduta ilícita e que, por essa via, se possa identificar um grupo de pessoas, não basta para que tais interesses possam ser tutelados através da ação popular. Para tanto, é indispensável que, considerados no seu conjunto, esses interesses assumam uma importância de ordem pública que exceda a mera soma ou agregação de um conjunto de interesses individuais pertencentes a uma mesma classe e que, ao mesmo tempo, sejam partilhados de forma homogénea e uniforme pelos membros da classe representada – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Relator Cons. Nuno Ataíde das Neves) de 14 de março de 2024 (…)Ora, estamos perante situação que poderá afetar um número determinado de pessoas – aquelas que mantenham relação com a ré “(…)” e que com a mesma tenham celebrado contrato como o que a autora refere ter celebrado –, mas neste caso podem vir aos autos demandar a ré.Assim, em face do exposto, indefiro liminarmente a petição. [...]
Discordando deste entendimento, a recorrente defende, em síntese, que lhe assiste, na qualidade de representante de classe, o direito de intentar a presente ação popular, para tutela de interesses homogéneos que afetam os autores populares, aderentes, tal como a representante de classe, de contrato com cláusulas previamente elaboradas pela ré; sustenta a apelante que, estando em causa um contrato de adesão que contém cláusulas abusivas pré-definidas pela ré e visando a ação a declaração de nulidade dessas cláusulas, os interesses que pretende defender são comuns a todos os aderentes do contrato, independentemente da eventual existência de particularidades relativas a cada um, encontrando-se preenchidos os requisitos para a admissão da ação popular.
Nas contra-alegações que apresentou, a ré, por seu turno, sustenta que a ação visa tutelar apenas o interesse pessoal, individual e particular da autora, e não interesses individuais homogéneos comuns aos demais lojistas do centro comercial, defendendo a inadmissibilidade da tutela dos interesses da autora através da presente ação popular.
Cumpre apreciar.
O direito de ação popular encontra-se reconhecido na Constituição da República Portuguesa, entre os direitos liberdades e garantias de participação política, no n.º 3 do artigo 52.º, nos termos seguintes: 3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
Regulando, além do mais, o direito de ação popular, a Lei n.º 83/95, de 31-08, define, como estatuí o n.º 1 do seu artigo 1.º, os casos e termos em que é conferido e pode ser exercido o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição. O n.º 2 do citado artigo 1.º, por seu turno, elenca, a título exemplificativo, interesses protegidos pela lei em causa, dispondo que: Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
O artigo 2.º da citada lei estabelece, além do mais, a titularidade do direito de ação popular, dispondo o seguinte: 1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda. 2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição.
Sob a epígrafe Regime especial de representação processual, o artigo 14.º daquela lei dispõe o seguinte: Nos processos de ação popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei. O artigo 15.º, mencionado naquele preceito, prevê e regula o exercício do direito de exclusão por parte de titulares dos interesses em causa na ação popular.
Definindo regras de legitimidade das partes nas ações para a tutela de interesses difusos, o artigo 31.º do Código de Processo Civil dispõe o seguinte: Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei. [...]
Face ao objeto do recurso, impõe-se apreciar se a tutela dos interesses invocados pela autora se mostra admissível no âmbito de uma ação popular e, caso se verifique que é inadmissível, se tal configura fundamento de indeferimento liminar da petição inicial, conforme considerou a 1.ª instância.
A Lei n.º 83/95, de 31-08, no âmbito do exercício da ação popular, prevê, no artigo 13.º, o seguinte regime especial de indeferimento da petição inicial: A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.
A aferição da inadmissibilidade da tutela, no âmbito de uma ação popular, dos interesses invocados pela autora e da consequente manifesta improbabilidade da procedência do pedido, nos termos imputados pela 1.ª instância à petição inicial, impõe a análise da fundamentação em que se baseia a pretensão deduzida pela autora na presente ação, à luz da admissibilidade do exercício do direito de ação popular. [...]
A jurisprudência tem contribuído para a especificação do que são os interesses difusos, para efeitos do exercício do direito de ação popular, conforme amplamente demonstrado nas alegações e nas contra-alegações apresentadas, o que nesta sede se mostra dispensável repetir, indicando-se apenas, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2016 (relator: Oliveira Vasconcelos), proferido no processo n.º 7617/15.7T8PRT.S1 e publicado em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte: I - A ação popular tem como objecto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos), os quais se caraterizam por possuírem uma dimensão individual e supra individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva. II - Os interesses individuais homogéneos são definíveis como situações jurídicas genericamente consideradas, correspondendo aos interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso ou de um interesse colectivo. III - A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela acção se almeje a tutela de um interesse colectivo, releva a proteção de situações individuais dos respectivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma. IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade. V - A legitimidade popular deve ser aferida em função do poder de representação dos titulares do interesse por parte do autor popular e do seu interesse na demanda, sendo que os representados devem todos ter sido atingidos pela violação do mesmo interesse difuso ou estarem em risco de o serem.
Não vem posto em causa na apelação o entendimento, consignado pela 1.ª instância na decisão recorrida e que se encontra estabilizado, de que a ação popular pode ter por objeto, não apenas a tutela de interesses difusos em sentido estrito e de interesses coletivos, mas também de interesses individuais homogéneos, nos termos supra especificados, o que se mostra dispensável reapreciar.
A 1.ª instância considerou que não decorre da petição inicial que a autora pretenda a tutela de interesses difusos em sentido estrito ou de interesses coletivos, nem de interesses individuais homogéneos, o que vem posto em causa na apelação, defendendo a recorrente que a ação visa a tutela de interesses individuais homogéneos de que são titulares os autores populares, na qualidade de aderentes, tal como a representante de classe, de determinado contrato previamente elaborado pela ré, questão que cumpre reapreciar.
Na petição inicial, a autora alega que é uma das muitas pessoas que aderiram e subscreveram um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial na (…), concessionada pela ré, visando com a presente ação obter a declaração de nulidade de cláusulas contratuais gerais constantes desse contrato e de regulamento que vincula os subscritores do contrato, bem como indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da existência de tais cláusulas; sustenta que o contrato foi pré-elaborado pela ré e pela mesma imposto a todos os que quiseram instalar uma loja para a sua atividade naquela marina, por via de uma cessão do direito de utilização, tendo a ré igualmente estabelecido o respetivo regulamento, sendo que as cláusulas que elenca, constantes do contrato e do regulamento, são proibidas, pelos motivos que expõe; acrescenta que os autores populares, se tivessem tido tal possibilidade, teriam recusado a inclusão das indicadas cláusulas no contrato que subscreveram, tendo sofrido danos em resultado das mesmas.
Analisada a factualidade alegada pela autora, verifica-se que é invocado um interesse que se afirma partilhado por um conjunto de pessoas que aderiram e subscreveram um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial na (…), com vista à instalação de uma loja para desenvolveram a respetiva atividade naquela marina; sustenta a autora que o contrato em causa, imposto pela ré a todos os que quiseram instalar uma loja nessa marina, bem como determinado regulamento pela mesma elaborado, contêm cláusulas nulas, pelos motivos que expõe, visando a presente ação obter, a título principal, a declaração de nulidade de tais cláusulas, que afirma suscetíveis de causarem danos aos autores populares.
Face à factualidade alegada pela autora, é de admitir que possa estar em causa a defesa de interesses materiais comuns aos membros de determinada comunidade, constituída pelas pessoas que celebraram com a ré um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial na (…), com vista à exploração de uma loja no local. A alegação constante da petição inicial não permite, por si só e a título liminar, afastar a invocada tutela de interesses individuais homogéneos, comuns aos membros da indicada comunidade, cuja verificação permitirá à apelante representá-los em juízo.
Defende a ré, nas contra-alegações apresentadas, que estão em causa diferentes relações jurídicas, as quais se reportam a situações de facto diversas, não visando a ação a tutela de interesses individuais homogéneos comuns aos demais lojistas do centro comercial, mas apenas do interesse pessoal, individual e particular da autora, o que não se mostra admissível através de uma ação popular.
No entanto, tal não decorre da petição inicial, que não permite aferir da eventual diversidade de interesses entre a autora e os demais autores populares, que pretensamente representa. A factualidade alegada na petição inicial não permite estabelecer diferenciação entre a situação da autora, decorrente da relação jurídica estabelecida com a ré, e a situação dos demais lojistas da marina, dada a invocação de que todos aderiram e subscreveram contrato com o mesmo teor, encontrando-se vinculados ao mesmo regulamento, os quais contêm as cláusulas em apreciação, cuja nulidade pretende seja declarada.
Sendo de admitir, face à factualidade alegada na petição, que os interesses que a apelante visa proteger, através do pedido que formulou, sejam comuns aos elementos que integram a indicada comunidade, não poderá considerar-se, nesta fase liminar, que a pretensão deduzida se mostre manifestamente improcedente por não estar em causa a defesa de interesses tuteláveis através de uma ação popular, conforme considerou a 1.ª instância, conclusão que se afigura prematura.
Porém, tal constatação não impede que venha a considerar-se, em fase posterior da tramitação dos autos, afastada a invocada existência de interesses individuais homogéneos, comuns aos demais lojistas do centro comercial, a tutelar através da pretensão deduzida pela apelante na ação.
Reportando-se ao indeferimento liminar de ação popular, considerou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10-04-2024 (relator: Jorge Arcanjo), proferido no processo n.º 8086/23.3T8LSB.L1.S1 e publicado em www.dgsi.pt, o seguinte: O indeferimento liminar da petição inicial de uma acção popular cível, ao abrigo do artigo 13.º da Lei n.º 38/95, de 31/8, com fundamento em que é “manifestamente improvável a procedência do pedido”, significa que [a] improcedência da pretensão do autor é manifestamente inviável, ou seja, perante a alegação dos factos e razões de direito expostas na petição e a uma averiguação sumária, incide, desde logo, uma pronúncia valorativa antecipatória sobre o mérito, quanto a saber se a pretensão formulada se apresenta viável, com probabilidade de êxito, ou se está irremediavelmente condenada ao insucesso.
No caso presente, não podendo concluir-se, pelos motivos expostos, que a pretensão formulada se apresente manifestamente inviável, designadamente pelos fundamentos constantes do despacho recorrido, impõe-se revogar tal decisão e determinar o prosseguimento da ação."
[MTS]
[MTS]