"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/07/2025

Jurisprudência 2024 (219)


Divórcio sem consentimento; 
casa de morada de família; atribuição provisória


1. O sumário de STJ 26/11/2024 (4188/22.1T8VIS-B.C1.S1) é o seguinte:

I - Os critérios legais para decidir da atribuição provisória da casa de morada de família (art. 931.º, n.º 7, do CPC), bem comum dos cônjuges, até à sua venda ou partilha, nos casos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, convertido em mútuo consentimento, são os mesmos que regem a decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos conjugados dos arts. 1793.º e 1105.º, ambos do CC.

II - Estes critérios fundamentam-se na ponderação de um conjunto de fatores, como as necessidades dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes, entre os quais a jurisprudência inclui, para além dos rendimentos de cada um deles, o estado de saúde dos cônjuges, a idade, a possibilidade de arranjar trabalho, a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros e o comportamento pretérito daqueles no que diz respeito ao cumprimento dos seus deveres conjugais (ac. do STJ de 17-12-2019, proferido no proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1).

III - O conceito de necessidade assume-se como um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas de estabilidade e de segurança das vítimas de violência doméstica.

IV - In casu, a autora padece de depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante 50 anos, conforme consta da acusação do MP e de sentença de condenação transitada em julgado.

V - A cônjuge-mulher, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade.

VI - A unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade - a vida de uma família com história de violência doméstica.

VII - Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua o estatuto de cônjuge mais necessitado ao agressor, adjudicando-lhe o direito de residir na casa de morada de família até à venda ou partilha.

VIII - O direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"8. Regressemos aos factos do caso.

Em primeiro lugar, importa averiguar de forma comparativa a situação patrimonial de cada um dos cônjuges.

A autora aufere uma pensão de reforma de 329, 15 euros mensais (facto provado n.º 10) e o réu tem um rendimento superior a 400 euros a que acresce um valor não apurado de rendimento proveniente de uma atividade empresarial ligada à venda de lenha (facto provado n.º 11).

A autora padece de uma depressão recorrente (facto provado n.º 24).

Após a saída da casa de morada de família, para fugir a ameaças de morte (facto provado n.º 38), a recorrente foi viver para um apartamento de tipologia T1, bem comum dos cônjuges, que estes tinham arrendado à filha (factos provados n.º 5 e 6), enquanto o réu continuou a residir na casa de morada de família cuja atribuição está agora em disputa (facto provado n.º 3).

Abrangendo o conceito de necessidade, em primeiro lugar, os rendimentos líquidos mensais dos cônjuges, temos que, apesar de ambos os cônjuges terem rendimentos baixos, a autora/recorrente apresenta uma situação deficitária na medida em que apenas aufere uma pensão de 329,15 euros, enquanto o réu beneficia de rendimentos superiores a 400 euros, a que acresce um rendimento não apurado decorrente de uma atividade empresarial. São ambos pessoas idosas e a autora padece de uma depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante a constância de um casamento longo (celebrado em ... – facto provado n.º 1). Nos termos da matéria de facto provada, desde o início do casamento que o réu era agressivo com a mulher e que a maltratava física e psicologicamente, inclusive durante a gravidez, para além de lhe bater com um cinto e de a ameaçar várias vezes de morte, tendo sido uma dessas ameaças que a forçou a sair de casa (factos provados n.º 25 e 26).

Nesta factualidade, não procede o entendimento de que o marido se encontra numa situação de maior necessidade do que a autora no que à utilização da casa de morada de família diz respeito. Pelo contrário, mesmo no que se reporta estritamente à situação patrimonial, está provado que a autora aufere menor rendimento mensal (uma pensão de 329, 15 euros), uma vez que o marido ainda tem capacidade de ganho, pois exerce uma atividade empresarial. Por outro lado, o imóvel comum, arrendado à filha, e onde a mãe provisoriamente se encontra alojada (factos provados n.º 5, 6 e 9), não pode ser usado para dizer que a situação patrimonial da autora é melhor. Se o imóvel é bem comum do casal, tanto a mulher como o marido podem habitá-lo, podendo o aqui réu solicitar a denúncia desse contrato de arrendamento (que aliás a filha, entretanto, denunciou com efeitos a janeiro de 2023) para habitar o imóvel, sem depender da boa vontade da filha.

Assim sendo, a situação de necessidade da autora é superior à do réu, quer no plano económico, porque aufere de menores rendimentos, quer no plano psicológico, porque foi vítima de violência doméstica durante cerca de 50 anos e padece de uma depressão recorrente.

Resta analisar, para balancear as posições de ambos os cônjuges, o argumento pragmático em que se baseou a sentença e o acórdão recorrido, segundo o qual, residindo a autora com a filha num apartamento, bem comum do casal, a sua necessidade de habitação estava resolvida, precisando o marido de viver na casa de morada da família porque não se relacionava com a filha a quem o casal tinha arrendado o imóvel.

Ora, este argumento prova demais. Desde logo, porque, como vimos, a casa em que vive a autora é de ambos os cônjuges e qualquer um deles pode viver nela, podendo até o réu rescindir o contrato de arrendamento celebrado com a filha, caso necessite da casa para habitação própria.

Mas vejamos os factos com mais pormenor.

A autora vive numa casa, bem comum do casal, que está arrendada à filha (facto provado n.º 6) e que, portanto, ocupa por tolerância da filha, sem título para tal. Na verdade, a filha é que tem, legalmente, o gozo exclusivo do imóvel. Por outro lado, este imóvel, segundo a factualidade provada, não tem condições para que nele vivam duas pessoas, tendo a filha passado a dormir num colchão na sala para que a mãe possa ocupar o quarto (facto provado n.º 9). Se bem que o interesse da filha, por ser maior de idade e independente financeiramente, não tenha de ser ponderado nesta decisão, compreende-se que a autora não queira colocar a filha nesta situação e que queira viver numa casa mais espaçosa e com melhores condições.

A autora, devido à circunstância de ter menos rendimentos e menor possibilidade de os obter, pois vive de uma pensão de reforma situada no mínimo da escala, enquanto o réu exerce uma atividade empresarial, está mais necessitada da casa de morada de família, não lhe sendo exigível, após ter sido vítima de violência doméstica durante 50 anos, que viva em condições precárias na casa arrendada a uma filha, por mera tolerância desta. Aliás, tendo a filha procedido à declaração de denúncia do contrato de arrendamento com efeitos a janeiro de 2023 (facto provado n.º 12), nada impedirá o réu de utilizar esta casa para sua habitação, não dependendo essa possibilidade do relacionamento com a filha, como entendeu a sentença. Por outras palavras, se essa casa é bem comum do casal, tanto entra na determinação do grau de necessidade da mulher, como do marido. A proximidade maior que a mulher tem em relação a este bem resulta de mera tolerância da filha, arrendatária do imóvel e a única que tem o poder de o fruir, por força desse contrato, entretanto já denunciado pela prórpia arrendatária.

Assim, a cônjuge-mulher, autora na presente ação, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito, por ser mais carenciada e ter uma saúde psíquica frágil (padece de depressão recorrente), de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade enquanto cônjuge mais fraco que carece de proteção.

O conceito de necessidade é assim um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas resultantes de a autora padecer de depressão recorrente e de ter sido durante 50 anos vítima de violência doméstica.

No presente caso, a necessidade da autora, no plano material, é ligeiramente superior em relação à necessidade do marido, e, ainda que assim não se avaliassem os factos, a circunstância de ser vítima de violência doméstica – tipo legal de crime integrado no conceito de criminalidade violenta e que as Nações Unidas consideram ser equivalente à tortura ( cfr. a Declaração de 24 de janeiro de 2008 do Comité das Nações Unidas contra a tortura a propósito o âmbito das obrigações e responsabilidades do Estado no domínio do artigo 2.º da Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes) – cria só por si uma situação de maior necessidade. Com efeito, tem de se considerar, na operação subsunção dos factos na norma, não só as necessidades materiais, mas também as necessidades psíquicas de estabilidade, conforto e segurança, que sempre serão mais bem garantidas pela ocupação da casa de morada de família.

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 11 de maio de 2011, conhecida por Convenção de Istambul, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, constituindo um marco na consciencialização de que a violência de género e a violência doméstica constituem uma grave e intolerável violação dos direitos humanos fundamentais e do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Esta Convenção, que integra o direito interno por força do artigo 8.º, n.º 2, da CRP, impõe aos Estados o dever positivo de proteção das vítimas de violência doméstica e a garantia dos seus direitos humanos fundamentais, não só em matéria criminal, mas também em matéria cível (direitos familiares pessoais e patrimoniais), devendo as normas do Código Civil ser objeto de uma interpretação conforme aos objetivos desta Convenção. A mesma orientação tinha já sido adotada pela Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que consagra medidas de proteção e assistência às vítimas de violência doméstica, adotando uma perspetiva interdisciplinar que cruza vários ramos do direito, como o direito à saúde, à segurança social, à habitação e à estabilidade de emprego.

Tem-se reconhecido que o sistema de proteção que obriga as mulheres vítimas de violência doméstica a sair de casa assume uma repercussão negativa na recuperação psicológica das vítimas em relação aos traumas vividos, bem como cria ruturas no seu projeto de vida. Para fazer face a este resultado, as ordens jurídicas europeias têm evoluído progressivamente de um sistema centrado na retirada da vítima da sua residência para o afastamento do agressor da casa de morada de família, permitindo a proteção da estabilidade da vida das vítimas num momento em que ela está particularmente posta em causa: a denúncia do crime e o pedido de divórcio. Em consequência, a Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, veio alargar a proteção das vítimas de violência doméstica, ampliando a medida de coação prevista no artigo 31.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, de forma a incluir não só a obrigação de o arguido «Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família», mas também a possibilidade de impor ao arguido da obrigação de a abandonar”», estipulando o n.º 2 do preceito que o ali disposto mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.

Embora não estejamos perante um processo-crime, a unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que, pelo contrário, existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade – a vida de uma família com história de violência doméstica. As normas jurídicas não existem isoladamente umas das outras e o processo de aplicação do direito deve preservar a coerência e a unidade da ordem jurídica. Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua esse estatuto de necessidade ao agressor e retire a proteção devida à vítima, que, no caso vertente, até aufere rendimentos inferiores aos do marido.

O Direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica."

[MTS]