"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/09/2022

Jurisprudência uniformizada (57)


Contrato de mútuo; 
prestações; prescrição


-- Ac. STJ 6/2022, de 22/9, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.

II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.

 

Jurisprudência 2022 (29)

 
Divórcio sem mútuo consentimento;
separação de facto; prazo*

1. O sumário de RC 18/1/2022 (373/20.9T8ACB.C1) é o seguinte:

I - Numa acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge as expressões “vida de casal” ou “vida comum de casal”, “não fazer vida de casal” e “organizar a sua vida de forma separada” não constituem conceitos de direito.

II – Na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da acção e a prolação da decisão.

III - A proposição de acção de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Considerou a sentença recorrida que decorria dos factos provados a separação efectiva do casal bem como a intenção de não reatar a vida em comum, demonstrado pela propositura da acção de divórcio. Quanto ao cômputo do prazo previsto no artº 1781 a) do C.C., tendo em conta a data em que julgou verificada a separação do casal e a data de interposição desta acção, considerou que “a decisão material deverá sempre assentar em requisitos materiais (prazo material), não devendo aquela submeter-se a questões processuais, uma vez que a separação de facto por um ano é fundamento do divórcio e não mero fundamento de procedibilidade adjectiva. Aplicando agora o direito ao caso dos autos, atendendo à factualidade dada como provada, verifica-se que a autora e o réu se encontram separados de facto desde data não concretamente apurada de Agosto de 2019, o que significa há mais de um ano a esta parte, havendo ainda da parte da autora o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal, estando assim preenchido na íntegra o circunstancialismo previsto na alínea a) do artigo 1781.º e no n.º 1 do artigo 1782.º do Código Civil.”

A este entendimento, opõe o apelante que o prazo não tinha decorrido à data da propositura da acção, sendo este um requisito prévio e condição de procedência do divórcio.

Alega ainda que a posição do tribunal de primeira instância choca frontalmente com o princípio da estabilidade da instância, tal como plasmado no art.260º do Código do Processo Civil e com o princípio da igualdade das partes, pois que o R. defendeu-se da concreta causa de pedir alegada pela A., ou seja, a separação de facto existente há mais de três anos.

Ora, é facto assente que a separação de facto entre os cônjuges ocorreu apenas no mês de Agosto de 2019 e não em 2017 como alegava a A. e que, por essa via, não decorrera ainda, à data da propositura da acção em 12/02/20, um ano de separação de facto consecutiva dos cônjuges. Se a inexistência deste requisito temporal à data da interposição da acção, obsta de per si ao decretamento do divórcio, depende, no entanto, da solução jurídica a dar à causa que passará sempre pela interpretação do disposto nos artºs 1781 alínea a) e 1782 do C.C.

Efectivamente, entre os fundamentos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, permitidos pelo artigo 1781º do C.C., encontra-se “A separação de facto” inicialmente por três anos consecutivos e que, a partir da entrada em vigor da Lei 61/2008 de 31/10, passou a “um ano consecutivo”, conforme decorre da alínea a) deste preceito legal. O artº 1782 do C.C. veio densificar o conceito de separação de facto como causa de divórcio, esclarecendo que se entende existir separação de facto entre os cônjuges para efeitos daquela alínea, quando “quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.”, eliminando-se deste preceito ao anterior número 2 que determinava a apreciação da culpa dos cônjuges na separação, quando a haja, para efeitos do disposto no então artº 1787 do C.C.

Nesta medida, na redacção introduzida pela Lei 61/2008, para que a separação de facto entre os cônjuges constitua fundamento de divórcio, exige-se a verificação de dois elementos: um de natureza objectiva que consiste na cessação dos deveres conjugais impostos pelo artº 1676 do C.C., de partilha de leito, mesa e habitação, pelo prazo (mínimo) consecutivo de um ano; outro de natureza subjectiva, consistente na intenção de pelo menos um dos cônjuges, de não retomar a vida matrimonial em comum (cfr. decorre do disposto no artº 1782 do C.C.), independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges.

Em, relação ao elemento objectivo - separação de facto consecutiva pelo período de um ano - alega o recorrente que este não se verificava à data da propositura da acção, uma vez que resultou provado apenas que desde Agosto de 2019 os cônjuges não fazem vida em comum, estando a acção condenada ao insucesso ab initio, indicando a seu favor jurisprudência do TRL de 21 de Fevereiro de 2019, proferido no processo nº3/18.9T8SXL.L1-2, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Pedro Martins. [...]

Considerou, no entanto, a decisão recorrida que, tendo em conta o tempo decorrido desde a entrada em juízo da p.i. e a data da decisão, sem que A. e R. tenham retomado a sua vivência, tendo cessado toda a vida em comum entre os cônjuges e não pretendendo a A. retomá-la, se verifica o requisito constante da alínea a) deste preceito. Cita em abono da sua posição, jurisprudência do nosso Supremo Tribunal [Nomeadamente [...] vide Acórdão da Relação de Évora de 27Fev2020, proc. 1055/19.0T8STR.E1 ou Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3Nov2005 proc. 05B2266, ambos disponíveis na Internet no sítio www.dgsi.pt.], a que aderimos, tendo em conta a ratio da alteração introduzida pela Lei 61/2008 de 31/10. [...]

Reconhecendo-se o mérito do raciocínio explanado no Ac. do TRL citado pelo recorrente, não podemos, no entanto, com ele concordar, pelas razões que acima enunciámos e que se prendem com a motivação do legislador. Acresce que, conforme refere a bem fundamentada decisão recorrida, o prazo previsto neste preceito, é um prazo de direito material e não processual, justificando-se assim a aplicação do disposto no artº 611 nº1 do C.P.C., o qual dispõe que “Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições gerais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser aletrada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos (…) que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à decisão existente no momento do encerramento da decisão.”

Não se conhece restrição a que seja considerado como facto constitutivo do direito da A. o prazo decorrido na pendência desta acção, tendo em conta que tendo esta dado entrada em juízo em 12/02/20, a sentença foi proferida em 12/09/21, mais de dois anos decorridos desde a data da separação de facto dos cônjuges, sem que estes tenham retomado, ou haja sequer intenção de retomar, a vivência em comum e decorrendo dos autos, pelo contrário, a ruptura definitiva deste matrimónio. Pois que outra coisa significaria, se não ruptura definitiva do matrimónio, a colocação de uma placa de esferovite, material isolante e um armário, por forma a obstruir a anterior porta de ligação entre dois apartamentos, habitando num a A. e noutro o R., e utilizando, inclusive, portas separadas para acesso aos imóveis, de forma a assegurar que não existe qualquer contacto?

Será então viável e inserido nos objectivos pretendidos pelo legislador com a alteração legislativa levada a cabo em 2008, considerar a manutenção de um vínculo meramente formal entre os cônjuges, apesar de desde pelo menos Agosto de 2019 e há mais de dois anos, existir uma separação de facto entre estes mesmos cônjuges?

Viola a consideração deste prazo no decurso da acção, o princípio da estabilidade da instância plasmado no artº 260 do C.P.C., conforme pretende o recorrente? Não o julgamos igualmente, tendo em conta que não existe efectiva alteração da causa de pedir, mas apenas integração no âmbito desta causa de pedir de factos decorridos também no decurso da acção. No inverso, refira-se que ainda que se verificasse o requisito temporal previsto neste preceito, poderia ainda assim a acção improceder se, no decurso desta fossem trazidos aos autos factos que demonstrassem não se verificar a intenção de não restabelecer a relação matrimonial.

Assim sendo, entendemos ser de considerar para o cômputo do prazo previsto nesta alínea a), o tempo decorrido entre a interposição da acção e a data da decisão que aprecia os fundamentos de divórcio. É esta aliás a posição jurisprudencial mais recente[12], inclusivé do nosso Supremo Tribunal. Como se refere em recente Ac. do STJ de 23/02/2021[13] “sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC.”, actualidade da decisão que não implica qualquer alteração à causa de pedir “à revelia das normas que regem a modificação objetiva da instância (arts. 264.º e 265.º, n.º 1, do CPC) - mas permitida pelo art. 588.º, do CPC -, porquanto se trata de facto alegado pela Autora desde a petição inicial, como elemento da causa de pedir da presente acção”.

 

3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se pode concordar, de forma alguma, com a doutrina defendida no acórdão quanto à relevância atribuída ao decurso do prazo estabelecido no art. 1781.º, al. a), CC durante a pendência da causa.

Admita-se que um autor propõe uma acção de reivindicação com base na aquisição do bem reivindicado através de usucapião. Pergunta-se: seria defensável entender que o prazo de usucapião se pode completar até à "sentença" ou, pelo menos, até ao encerramento da discussão e julgamento? Supõe-se que ninguém daria uma resposta afirmativa.

E porquê? -- cabe perguntar. Pela simples razão de que o direito de acção do autor -- que se encontra consagrado tanto no art. 2.º, n.º 2, CPC, como no art. 817.º CC -- tem de existir no momento da propositura da acção, e não em nenhum momento posterior.

Basta pensar num outro exemplo muito simples: o credor propõe a acção de cumprimento antes de terminar o prazo para o cumprimento da obrigação pelo devedor; pergunta-se: alguém diria que não há problema nenhum, porque esse prazo se vai completar até ao encerramento da discussão?

Por fim, cabe referir que não de descortina como é que uma parcela de um prazo em curso pode ser considerada um facto superveniente para efeitos de aplicação do art. 611.º, n.º 1, CPC. A parcela de um prazo que é, no seu todo, o facto constitutivo de um direito (in casu, do direito ao divórcio) nunca pode ser, em si mesma, um facto constitutivo, nem, muito menos, um facto superveniente.

MTS


22/09/2022

Jurisprudência 2022 (28)


Processo executivo;
acto processual; pagamento voluntário*


I. O sumário de RL 3/2/2022 (2976/21.5T8SNT-A-8) é o seguinte:

1. No direito civil, pode definir-se cumprimento como a realização voluntária do comportamento objecto de uma obrigação, sendo-lhe aplicável o regime substantivo dos actos voluntários.

2. No processo civil, cumprimento não é um acto meramente civil, mas um acto processual dos executados.

3. Actos processuais civis são os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui.

4. No nosso direito civil, é conhecida a distinção entre factos jurídicos stricto sensu, actos jurídicos e negócios jurídicos.

5. No processo jurisdicional, esta classificação não é operativa; os actos processuais são factos voluntários, mas trata-se em tudo de uma vontade genérica: «a simples vontade e consciência de realizar o acto, não se exigindo de modo nenhum que seja dirigida a atingir um determinado efeito e não podendo tão pouco determiná-lo e adequá-lo a seu gosto, porque o efeito já está fixado e predeterminado pela lei».

6. Da entrega de dinheiro feita pelos executados à Sra. Agente de Execução não se deduz, sem qualquer outra declaração, que esta entrega tenha ido feita com o propósito de evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros.

7. Se os executados se enganaram ou erraram na entrega, precisamente porque são irrelevantes os vícios de vontade dos actos processuais (constitutivos ou postulativos), não se pode pela via de recurso ou através de outro remédio, na execução, reparar o erro.


II. Na fundamentação do acórdão refere-se o seguinte:

"Do direito

Resulta assente nos autos que os embargantes na pendência da execução e dos embargos deduzidos entregaram à Sra. Agente de Execução (AE) determinado valor suficiente para o pagamento da quantia exequenda e custas do processo. Perante esta entrega a Sra. AE extinguiu a execução.

Que valor emprestar a este acto?

No direito civil, discute-se qual a natureza jurídica do cumprimento, quanto à sua estrutura: contrato, negócio jurídico, acto extintivo, acto devido, facto jurídico stricto sensu? (Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Lições de Direito das Obrigações, AAFDL, Lisboa, 1975-1976:415 ss).

Seguindo a posição de Pessoa Jorge podemos dizer que o cumprimento é a realização voluntária do comportamento objecto de uma obrigação sendo-lhe aplicável o regime substantivo dos actos -voluntários (ibidem:420).

Acontece que neste caso não estamos perante um ACTO MERAMENTE CIVIL, MAS SIM PERANTE UM ACTO PROCESSUAL DOS EXECUTADOS.

Preceitua o artigo 846.º do Código de Processo Civil (são deste código os artigos ulteriormente citados), sob a epígrafe cessação da execução pelo pagamento voluntário: 1. Em qualquer estado do processo pode o executado ou qualquer outra pessoa fazer cessar a execução, pagando as custas e a dívida.

Depois de efectuados a liquidação da responsabilidade do executado e os pagamentos, a execução extingue-se (artigo 849.º, 1, al. b)).

Recorrendo a uma metáfora, diz-se que «o procedimento é composto por vários anéis concatenados entre si, salvo o primeiro, que, como tal, não tem nenhum anel pressuposto, e o último que não é o pressuposto de outro anel» (Nicola Picardi, Manuale del processo civile, Giuffrè Editore, Milano, 2016:208; igual metáfora em Francesco P. Luiso: «pode-se pensar numa corrente pendurada num suporte: cada anel segura os anéis sucessivos e é seguro pelos precedentes, salvo o primeiro e último», Diritto Processuale Civile, Vol. I, Giuffrè, Milano, 2021: 421-422).

Como se podem definir estes anéis?

Na definição de Enrico Redenti actos processuais civis são os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui (Enrico Redenti, Atti processuali, Enciclopedia del diritto, IV, Giuffré Editore:105.). Esta definição poderá parecer tautológica, mas dá o mote para abordar o ponto.
 
O Capítulo I, do Título I do Livro II do Código de Processo Civil, compõe-se de 72 artigos (artigos 130.º-202.º), dedicados à disciplina dos actos processuais, em geral. As secções II, III e IV são intituladas, respectivamente, Actos das partes (artigos 144.º-149.º), Actos dos magistrados (artigos 150.º-156.º), e Actos da secretaria (artigos 157.º-162.º).

Sem que tal corresponda a qualquer visão privatística, a disciplina positiva toma em consideração, em primeiro lugar, os actos das partes, sem cujo impulso inicial não há processo e que condicionam a actividade do juiz (ne procedat iudex ex officio - artigo 3.º, 1), para depois tratar dos actos dos magistrados, designadamente da forma da sentença (152.º e 153.º), dos deveres de motivação (154.º) e de cumprimento dos prazos para as decisões (156.º), seguindo para os actos da secretaria (157.º-162.º), e, depois, para a publicidade e acesso ao processo (163.º-171.º), e para a comunicação dos actos (172.º185.º), culminando na disciplina das nulidades dos actos (186.º-202.º).

Basta percorrer estes artigos para se perceber que o legislador agrupou os actos processuais em atenção aos sujeitos que os praticam manifestando uma preocupação sistemática em adoptar um modelo adaptável (nem sempre bem) a todos os processos, isto é, quer ao processo declarativo, quer ao executivo, quer ainda aos processos especiais.

Porém, o Código de Processo Civil não tem uma definição do que deva entender-se por acto de processo, ou, melhor, o legislador limita-se a falar de atos processuais, expressão com que encima o Título I do Livro II.

Como refere Paula Costa e Silva, da disciplina positiva «apenas podemos dizer com alguma segurança que, para o legislador, no acto processual está sempre implícita uma ligação entre o acto e o processo» (Paula Costa e Silva, Acto e Proceso, op. cit:189).

Resulta que a construção do conceito de acto processual tem de ser feita praeter legem.

No nosso direito civil, é conhecida a distinção entre factos jurídicos stricto sensu, actos jurídicos e negócios jurídicos.

No processo jurisdicional, esta classificação não é operativa. Justamente porque o processo consiste numa série de actos concatenados e conjugados entre si, tendo em vista determinado fim, todos os actos devem obedecer a uma regulamentação formal «que absorve e anula em si qualquer factor ou elemento, seja ele subjectivo ou objectivo» (Girolamo Monteleone, Manuale di Diritto Processuale Civile, Vol. I, Settima edizione, Wolters Kluwer-Cedam, Vicenza, 2015:276.).

Não quer isto dizer que os actos processuais não sejam factos voluntários. Todavia, trata-se de uma vontade em tudo genérica :«a simples vontade e consciência de realizar o acto, não se exigindo de modo nenhum que seja dirigida a atingir um determinado efeito e não podendo tão pouco determiná-lo e adequá-lo a seu gosto, porque o efeito já está fixado e predeterminado pela lei» (Enrico Tullio Liebman, Manuale di Diritto Processuale Civile, Principi, sesta edizione, Giuffrè editore, Milano, 2002:206).

Salvatore Satta, para quem o acto se identifica com o processo, afirma, por sua vez, que se os actos processuais são todos actos voluntários «a consequência processual (constitutiva, modificativa, etc. do processo) é de todo independente da vontade nele manifestada, e pelo contrário esta vontade não tem em geral nenhum particular relevo» (Salvatore Satta/Carmine Punzi, Diritto Processuale Civile, 12.ª ed., Cedam, Padova, 1996: 237). É, aliás, comum a opinião que nega, ao acto processual, o relevo de eventuais vícios da vontade (Chiara Besso, Il processo civile e le sue alternative, nozioni generali, quarta edizione, G. Giappichelli Editore, Torino, 2019:192).

Apesar de a lei processual não atribuir efeitos ao acto por referência à vontade dos seus autores não se quer dizer, pelo contrário, que os actos não possam ser interpretados. Ora nada no processo nos permite dizer que a entrega de dinheiro feita pelos embargantes à Sra. Agente de Execução tenha sido feita com o propósito de evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros (males maiores).

Se foi essa a intenção os embargantes deviam tê-la acautelado no momento da entrega, o que não foi feito, ou então seguir uma outra via processual, no momento próprio, para alcançar tal desiderato.

Por outro lado, se os executados se enganaram ou erraram na entrega, precisamente porque são irrelevantes os vícios de vontade dos actos processuais (constitutivos ou postulativos), não se pode pela via de recurso ou através de outro remédio nesta execução reparar o erro.

Ao se decidir deste modo não se está bem entendido a limitar o direito de defesa dos recorrentes, mas sim a aplicar o que deriva da lei e da melhor doutrina."


III. [Comentário] As peças processuais transcritas no acórdão nem sempre são muito claras, mas o que a RL teve de decidir foi o seguinte: os executados/embargantes entregaram ao agente de execução um cheque numa determinada quantia; o agente de execução considerou que o cheque constituía o pagamento voluntário da dívida exequenda e extinguiu a execução; os executados/embargantes defenderam que a entrega do cheque não se destinava a pagar a dívida exequenda e pretendiam a continuação dos embargos.

A RL confirmou a decisão recorrida de extinção da instância executiva.


[MTS]


21/09/2022

Jurisprudência 2022 (27)


Processo de inventário;
tornas; execução


1. O sumário de RL 3/2/2022 (2253/14.8TBFUN-B.L1-6) é o seguinte:

I.– A execução especial que incide sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas que não cumpriu com o seu pagamento é o modo que é conferido ao credor das tornas de fazer valer o seu direito às mesmas, em substituição da execução comum.

II.– A decisão recorrida ao admitir os herdeiros a possibilidade de, perante as propostas apresentadas por terceiros compradores, licitarem nos termos do artº 820º nº 5 do CPC, assumiu que os herdeiros possuem o estatuto de exequentes nos autos, pois são estes os credores que se apresentam no âmbito da execução especial que decorre do artº 1378º nº 3 do CPC/95.

III.– Face a tal estatuto a dispensa do depósito do preço, à semelhança da licitação dos credores sem que assumam a qualidade de proponentes, resulta das normas adjectivas aplicáveis à venda judicial por força do artº 815º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Antes de abordarmos o objecto do recurso em concreto importa ter presente que os presentes autos de inventário foram intentados a 1 de junho de 2000, pelo que quanto aos tramites processuais aplicáveis no âmbito do processo especial de inventário haverá que considerar o regime do Código de Porcesso Civil de 1961 (aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de dezembro de 1961), na versão subsequente à Reforma de 1995 (operada pelo Decreto-Lei nº 329/95, de 12 de dezembro). [...]

Logo, quanto à parte adjectiva que se prende com o processo de inventário todas as normas mencionadas são relativas ao CPC/95, aplicável aos presentes autos.

A questão a decidir tem na sua génese a licitação pelo interessado M... em bens que excedem a sua quota e, logo, a obrigação constituída de pagamentos de tornas aos demais interessados/herdeiros. [...]

Vigorando in casu o CPC/95 é no âmbito deste que haverá que aferir a forma como se processam os autos quando ocorre excesso de bens licitados. Assim, em primeiro lugar é a secretaria que, organizando o mapa da partilha, vai informar no processo a circunstância de que os bens licitados excedem a quota do respectivo interessado, conforme decorre dos art.º 1375.º e 1376.º do C.P.C.

Os interessados a quem haja de caber tornas são então notificados para requererem a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas, concedendo-lhes assim o art.º 1377.º n.º 1 do C.P.C. o direito de optar por uma das duas situações como forma de preencherem o seu quinhão: receber tornas ou a adjudicação das verbas licitadas em excesso pelo devedor de tornas.

Se a opção for pelo pagamento das tornas, seguem-se os procedimentos previstos no art.º 1378.º do C.P.C.

Logo, dispõe o art. 1377º, nº 1, do CPC, na versão aqui considerada, que os «interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas».

Mais se lê, no nº 2 e nº 3 do citado preceito, que, «[s]e algum interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, a qualquer dos notificados [interessados a quem hajam de caber tornas] é permitido requerer que as verbas em excesso ou algumas que lhe sejam adjudicados pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão», e podendo o licitante «escolher, de entre as verbas em que licitou as necessárias para preencher a sua quota».

Tal como nos diz Lopes Cardoso, in. Partilhas Judiciais, Vol. II, pág. 413: “… tornas haverá sempre que alguém licite em mais bens do que tem direito, ou quando, por virtude da composição dos lotes haja excesso da aludida quota.”

Deste regime resulta que o devedor de tornas, a pedido do credor das tornas que opta por as receber, é notificado pelo tribunal para as pagar ou depositar, na medida em que o valor dos bens que licitou excedem a sua quota hereditária.

Não procedendo o devedor das tornas ao seu pagamento ou depósito, tem ainda assim o credor das tornas novamente duas opções ao seu dispor, podendo requerer: (i) a adjudicação dos bens adjudicados em excesso ao devedor para preenchimento da sua quota, procedendo logo ao depósito das tornas que excedem o seu valor; (ii) a venda dos bens adjudicados ao devedor no processo de inventário, para que as tornas sejam pagas a partir do produto da venda de tais bens.

Com efeito, prescreve o nº 1 do art. 1378º que «[r]eclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que já de as pagar, para as depositar», acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que «[n]ão sendo efetuado o depósito, podem os requerentes pedir que das verbas destinadas ao devedor lhes sejam adjudicadas, pelo valor constante da informação prevista no artigo 1376.º, as que escolherem e sejam necessárias para preenchimento das suas quotas, contante que depositem imediatamente a importância das tornas que, por virtude da adjudicação, tenham de pagar. (…)».

E, nos termos do nº 3 do citado artigo 1378º, «[p]odem também os requerentes pedir que, transitada em julgado a sentença, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas».

No caso vertente foi este último o caminho seguido pelos recorrentes, que após terem sido notificados do mapa informativo, onde consta o excesso de licitação e o pagamento de tornas pelo recorrido, solicitam a notificação deste para proceder ao depósito dos valores devidos a cada um dos herdeiros a título de tornas. Face ao incumprimento por parte do licitante e devedor solicitaram os interessados a venda dos bens licitados em excesso.

Escreve a este propósito Lopes Cardoso (in ob cit. págs. 452-453): «Está aqui a criação de um novo, privativo e prático, processo executivo, embora especial.

Regra geral, o direito definido executa-se com base em título idóneo a esse fim (…), mediante formalismo próprio.

No caso considerado tudo é diferente, pois o credor das tornas limita-se a pedir, em simples requerimento, o que no nº 3 do art. 1378.º se lhe consente. Então, formulado tal pedido e transitada que seja a sentença homologatórias das partilhas, procede-se à venda, no próprio processo de inventário dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para pagamento do seu débito ao requerente, isto sem haver necessidade de lhe instaurar qualquer processo executivo, de o citar para o efeito de nomear bens à penhora.».

O legislador veio consagrar uma forma de execução especial mais expedita e fácil, que apenas incide sobre os bens adjudicados em excesso ao devedor de tornas, a ter lugar no âmbito do processo de inventário, facilitando ao interessado com direito às tornas a satisfação do seu crédito e evitando o recurso ao processo executivo comum.

Tem sido entendido que esta execução especial que incide sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas que não cumpriu com o seu pagamento é o modo que é conferido ao credor das tornas de fazer valer o seu direito às mesmas, em substituição da execução comum, estando-lhe por isso vedado o recurso à mesma, designadamente para que se faça pagar da dívida de tornas por outros bens que não aqueles que foram partilhados no âmbito do processo de inventário.

Neste sentido, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2007 no proc. 53-D/1998.C1 in. www.dgsi.pt ao referir: “Em suma, a cobrança coerciva, não só das tornas mas também dos juros devidos pela demora no pagamento das tornas reclamadas, deve ser efectivada nos termos do n.º3 do art. 1378º do CPC, só podendo a venda incidir sobre bens adjudicados ao devedor de tornas e realizar-se no processo de inventário. Sempre vedado, pois, ao credor de tornas e juros instaurar uma execução por apenso ao inventário e penhorar outros bens do devedor que advieram a este por título diverso da adjudicação em inventário.”

Também foi esta a orientação seguida pelo Acórdão da Relação do Porto proferida a 9/05/2019 no proc. Nº 798.18.0T8PNF.P1, ao referir que:« Não podemos esquecer que o processo de inventário se destina a pôr termo à comunhão hereditária, pelo que surgindo o crédito de tornas no âmbito da partilha do património da herança, a sua cobrança encontra-se limitada pelos bens ou direitos que compõem a herança. O crédito de tornas dos AA. resulta da composição deficitária do seu quinhão hereditário e a dívida de tornas da R. também é a que resulta do seu quinhão preenchido em excesso, pelo que só os bens que lhe foram adjudicados no processo de inventário é que podem responder pela dívida de tornas.

Tal interpretação é não só a que melhor vai ao encontro do previsto do art.º 1378.º do C.P.C. que não constitui apenas uma norma de direito processual como considerou a sentença recorrida, mas antes estabelece o regime a que está sujeito o cumprimento da dívida de tornas, mas também a que se coaduna com a circunstância da herança constituir um património autónomo.

Como é pacífico, a herança indivisa tem a natureza jurídica de património autónomo sendo constituída por uma universalidade de bens, sendo que cada um dos chamados à sucessão é titular de uma quota que incide sobre essa mesma universalidade e não sobre quaisquer bens específicos – só com a realização da partilha e repartição dos bens se concretiza tal direito.

Conforme resulta dos art.º 2068.º e 2097.º do C.Civil, pelas dívidas da herança apenas responde o património que a integra e já não o património de cada herdeiro.

No art.º 2071.º do C.Civil vem contemplada a regra da responsabilidade limitada do herdeiro pelos encargos da herança, na sequência da consideração da mesma como um património autónomo, na consagração do princípio de que só os bens da herança respondem pelos encargos hereditários.

Mesmo após a realização da partilha, cada um dos herdeiros só responde pelos encargos que sejam devidos na proporção da quota que lhe caiba na herança, como estabelece o art.º 2098.º n.º 1 do C.Civil, a menos que os próprios herdeiros deliberem outra coisa. A regra é a limitação da responsabilidade do herdeiro aos bens que recebe da herança. (…) [a] dívida de tornas constitui-se no âmbito e por causa da partilha do património hereditário, considerando-se que a razão de ser que leva o legislador a confinar aos bens da herança a garantia pelas dívidas ou encargos dela, tem neste âmbito igual pertinência, fundamentando o entendimento de que a dívida de tornas está limitada na sua garantia patrimonial ao património da herança recebido pelo devedor de tornas, o que também encontra acolhimento no regime previsto no art.º 1378.º n.º 3 do C.P.C.»

Porém, a propósito desta temática e perante tal decisão do Acórdão da Relação do Porto, decidiu-se no Acórdão do STJ, proferido no mesmo proc. nº 798.18.0T8PNF.P1.S1, datado de 23/01/2020 (ECLI in https://jurisprudencia.csm.org.pt) que:«(…) afigura-se que a orientação assumida pela Relação parte do pressuposto erróneo de considerar que, porque a dívida de tornas se constitui “no âmbito e por causa da partilha do património hereditário”, lhe é extensível, sem mais, o princípio da limitação da garantia patrimonial vigente para as dívidas e os encargos da herança.».

Prosseguindo «O crédito de tornas é um crédito que resulta de uma actividade (a licitação) exercida, com finalidades aquisitivas, pelo herdeiro que arrematou os bens pelo valor que considerou adequado. A esse crédito corresponde, do lado passivo, uma dívida própria do herdeiro licitante, contraída mediante a intervenção da sua vontade no acto de licitação, dívida à qual se aplicam as regras gerais da responsabilidade obrigacional, designadamente em matéria de prescrição (cfr. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1980, pág. 431) e de responsabilidade patrimonial do devedor.».

Ora, também aqui se discute a questão de os recorrentes, perante a ausência de pagamento de tornas por parte do recorrido, terem feito uso do procedimento executivo, incidental e simplificado, que se encontrava previsto no nº 3 do art.1378º do antigo CPC (procedimento que actualmente se encontra previsto no nº 2 do art. 1122º do CPC, na redacção da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro), em nada altera a natureza do crédito de tornas e da correspondente dívida.

Como bem se frisa no Acórdão do STJ a que vimos fazendo referência «(a) função desse procedimento circunscreve-se ao processo de inventário, sem afectar nem o conteúdo nem o objecto do direito de crédito dos aqui AA., pelo que, na parte em que o mesmo não foi satisfeito respondem todos os bens do devedor(…)». Prosseguindo ainda que «[e]sta orientação é aquela que se entende ser compatível com o facto de o crédito de tornas resultar do reconhecimento pela sentença homologatória da partilha, sendo o procedimento executivo do referido nº 3 do art. 1376º do antigo CPC um procedimento incidental e simplificado que não preclude a possibilidade de lançar mão da execução comum nem dos meios de conservação da garantia patrimonial(…). Por outras palavras, o facto de os bens terem sido licitados por um determinado valor e de os credores da herança não terem pedido a sua adjudicação, assim como o facto de os bens terem sido vendidos por valor inferior ao da licitação, são vicissitudes que não afectam o reconhecimento de, com a homologação da partilha, se ter constituído a favor dos herdeiros um crédito que segue as regras gerais do direito substantivo.».

Tal solução, transportada para a questão que ora nos ocupa, significa que o crédito dos recorrentes sobre o recorrido obedece às regras gerais de direito, pelo que tendo o interessado M... licitado todos os bens da herança deixada por óbito do Pai, S…, falecido em 16/05/2000, deve nomeadamente aos demais filhos ( bem como à interessada viúva) o valor das respectivas tornas, neste caso dos herdeiros M... e J... o valor global de 1.963.156,84 € (981.578,42+981.578,42 €).

Foi com base nesta dívida que os ora interessados requereram a venda dos bens e foi na qualidade de herdeiros e admitidos como exequentes, nos termos do artº 820º nº5 do CPC, que os mesmos manifestaram vontade de adquirir o bem e admitidos nesses termos licitaram as verbas nº 1 e 2, respectivamente. Tendo, o recorrente M..., nessa execução licitado o bem da verba nº 1, pelo preço de 385.000,00 €, inferior às tornas a que tem direito, no valor de 981.578,47 €. E a exequente J... licitado o bem constante da verba nº 2, pelo preço de 400.000,00 €, também inferior às tornas a que tem direito, no valor de 981.578,47 €.

Entendem os recorrentes que não lhes está vedado invocar a compensação por forma a isentá-los do depósito dos preços pelos quais adquiriram os mencionados bens pela execução. A questão, porém, não se prende apenas com uma eventual compensação, mas sim a forma como deve ser encarada quer a dívida, quer a forma como é executada e a solução do litígio passar por esta questão essencial.

O Tribunal recorrido sustenta o indeferimento da dispensa de pagamento do depósito do preço no seguinte: «Embora os credores de tornas não sejam os únicos interessados dos presentes autos de inventário, não tendo o interessado M... estado presente da diligência de abertura de propostas por carta fechada, ainda que o mesmo viesse a manifestar concordância com o requerido, não poderia ser alvo de deferimento. Qualquer interessado em adquirir os bens colocados à venda mediante propostas por carta fechada, terá de se submeter às mesmas regras legais existentes, e para adquirir os bens, terá, naturalmente, de pagar o respetivo valor. A partir do momento em que os bens são colocados à venda naquela modalidade, qualquer interessado poderá apresentar propostas, em cumprimento das regras legais estabelecidas e terá a possibilidade de adquirir os bens, consoante as propostas que forem aceites e consoante o resultado das licitações que ocorram (que, no caso concreto, foram abertas à luz do artigo 820.º, n.º 5, do CPC).

Há que evitar que os interessados do processo de inventário, mediante acordo entre si, possam afastar qualquer hipótese de outros interessado poderem adquirir os bens, como tão bem explicou a propoente S…, Lda., na parte final da diligência realizada a 29.06.2021. E esta mesma proponente justificou plenamente o interesse na posição que manifestou, já que, conforme decorre do requerimento que apresentou, mantém interesse na aquisição, e esperança que tal possa vir a acontecer, perante a eventualidade de não ser pago o preço na sequência da notificação para o efeito (a que se reporta o artigo 824.º, n.º 2, do CPC), de a venda ficar sem efeito e de o bem ser adquirido pelo proponente que tiver apresentado a proposta de valor imediatamente inferior (possibilidade prevista no artigo 825.º, n.º 1, al. a) do CPC).

Importa, assim, garantir o cumprimento das regras legais, independentemente de quem pretenda adquirir os bens em causa (de ser ou não credor de tornas, nos presentes autos de inventário), havendo que assegurar, em qualquer caso, o pagamento do preço, conforme impõe o artigo 824.º, n.º 2, do CPC. Destarte, indefere-se o requerido por R…, M... e J..., não podendo os mesmos beneficiar de compensação nos autos (que redundaria em prejuízo da posição dos demais proponentes, sendo inadmissível à luz 853 nº 2 Código Civil), pelo que, em qualquer caso, para que possam adquirir os bens colocados à venda, sempre terá o respetivo preço de ser pago, nos termos previstos no artigo 824.º, n.º 2, do CPC, sob pena de vir a aplicar o disposto no artigo 825.º do CPC.».

A decisão recorrida labora em erro na sua apreciação quando alude que está em causa a defesa de todos os interessados na venda, pois ao admitir os herdeiros a possibilidade de, perante as propostas apresentadas por terceiros compradores, licitarem nos termos do artº 820º nº 5 do CPC, assumiu que os herdeiros possuem o estatuto de exequentes nos autos, pois são estes os credores que se apresentam no âmbito da execução especial que decorre do artº 1378º nº 3 do CPC/95.

Não vislumbramos que aos herdeiros tenha sido permitido licitar, nos termos em que foi admitido aquando da abertura de propostas, mas se entenda que os mesmos não podem beneficiar do demais regime aplicável aos exequentes, em nome de um princípio de impossibilidade de frustração dos interesses dos demais compradores, princípio esse que não está a coberto do previsto no âmbito do artº 853º nº 2 do CC, relativo à exclusão da compensação. Pois é certo que não é admitida a compensação, se houver prejuízo de direitos de terceiro, constituídos antes de os créditos se tornarem compensáveis, ou se o devedor a ela tiver renunciado. In casu, efectuada uma venda judicial ao abrigo de um procedimento executivo, a natureza ou génese de tal procedimento não afasta as normas que presidem a tal venda, mormente a qualidade e estatuto de exequentes, figurando estes como os herdeiros a quem são devidas tornas pelo herdeiro devedor, assumindo este a posição de executado.

Logo, não está tanto em causa a eventual compensação em termos gerais e previstos na lei substantiva, ainda que em termos dogmáticos a situação se reconduza a tal figura, o que ocorre é que a dispensa do depósito do preço, à semelhança da licitação dos credores sem que assumam a qualidade de proponentes, resulta das normas adjectivas aplicáveis à venda judicial.

Assim, como bem frisam os recorrentes, tal prerrogativa assiste aos exequentes/herdeiros por força do artº 815º do CPC. Pois, nos termos de tal preceito o exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir.

Importa referir que tal decisão em nada prejudica o herdeiro devedor que face ao valor acrescido que decorre da licitação dos herdeiros credores vê a sua dívida diminuída, não assistindo ao proponente, terceiro em relação aos herdeiros do inventário, qualquer direito constituído, assim, como esse direito não existe ou se sobrepõe no caso de venda judicial ocorrida em qualquer processo executivo, em que ao exequente assiste o direito de licitar nos bens levados à venda judicial e por conseguinte, ficar dispensando do depósito do preço pelo qual exerce tal direito.

Do exposto, conclui-se pela procedência da pretensão recursória, declarando-se que os recorrentes ficam dispensados do pagamento dos bens pelos quais licitaram, nos termos do artº 815º nº 1 do CPC, revogando-se, assim, o despacho recorrido."

[MTS]


20/09/2022

Bibliografia (Índices de revistas) (211)


RDCiv.


 -- RDCiv. 68 (2022-4)


Bibliografia (1037)

-- Axel Adrian / Michael Kohlhase / Stephanie Evert / Martin Zwickel (Eds.), Digitalisierung von Zivilprozess und Rechtsdurchsetzung (Duncker & Humblot: Berlin 2022)


Jurisprudência 2022 (26)


Taxa de justiça;
comprovativo; integração de lacuna


1. O sumário de RP 10/1/2022 (1087/21.8T8STS.P1) é o seguinte:

I - Não tendo a secretaria recusado a petição inicial por falta de comprovação do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário com a consequente distribuição da acção, e, não prevendo a lei a solução a adoptar nestes casos, deve recorrer-se a analogia para integrar a respectiva lacuna (artigo 10.º, nº 2 do CCivil).

II - A nova redação, decorrente do disposto no DL 97/2019, de 26/07, conferida ao artigo 560.º do CPCivil, apenas prevê a recusa nas situações em que não seja obrigatória a constituição de mandatário, razão pela qual não pode ser aplicado às situações em que seja obrigatória aquela constituição.

III – Deverá, por conseguinte, recorrer-se ao previsto para a ausência de pagamento de taxa de justiça com a contestação com as devidas adaptações (cfr. artigo 570.º do CPCivil), antes de se recusar o recebimento da petição inicial.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Tal como supra se referiu é apenas uma a questão que cumpre apreciar e decidir:

a)- saber se existe, ou não, fundamento para a recusa do recebimento da petição inicial.

Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento que no caso em apreço estava verificada a facti species dos artigos 552.º, nº 7 e 558.º, nº 1 al. al. f) do CPCivil, ou seja, de que com a petição inicial não foi comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça nem a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo.

É contra este entendimento que se insurge a recorrente.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

Preceitua o artigo 552.º, nº 7 do CPCivil sob a epígrafe “Requisitos da petição inicial” que:

(…) 7 - O autor deve, com a apresentação da petição inicial, comprovar o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º. (…)

Por sua vez o artigo 558.º, nº 1 al. f) do mesmo diploma legal sob a epígrafe “Recusa da petição pela secretaria” estatui que:

1 - São fundamentos de rejeição da petição inicial os seguintes factos: (…)

f) Não tenha sido comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário, exceto no caso previsto no n.º 9 do artigo 552.º (…).

Portanto, a falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário e daquele que comprova o pagamento da taxa de justiça tem por consequência, fora dos casos previstos no nº 9 do artigo 552.º a possibilidade da secretaria recusar a petição inicial [artigo 558.º, nº 1 al. f)].

Do acto de recusa cabe reclamação para o juiz e da decisão deste que confirme a recusa cabe recurso para a Relação, nos termos previstos no artigo 559.º do CPCivil.

Não sendo a petição recusada pela secretaria e fora dos casos previstos no nº 9 do artigo 552.º, a falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário e do que comprova o pagamento da taxa de justiça tem por consequência que deve ser recusada a distribuição da petição (cfr. artigo 207.º, 1 do CPCivil).

Acontece que, no caso concreto, a petição não foi recusada pela secretaria, nem foi rejeitada a sua distribuição.

Quid iuris?

Como supra já se referiu, nesta situação, o tribunal recorrido recusou o recebimento da petição.

Não cremos, todavia, respeitando-se entendimento diferente, que essa seja a decisão correcta.

Com efeito, a dinâmica subjacente ao processo civil atual privilegia soluções materialmente justas, sem desequilíbrio entre as partes e com benefício para aquelas decisões que atinjam o desiderato último do processo, qual seja a justa composição dos litígios, sendo que, o acesso ao direito e aos tribunais é um direito constitucionalmente consagrado, com mecanismos próprios para ser posto em prática, não podendo a lei ordinária conflituar com tal princípio.

Por esse motivo, a proposta adoptada pela primeira instância parece-nos não ser de aceitar, pois que, não resolve a situação e apenas obrigaria a Autora a propor nova ação e, além disso, estimula a prática de novos atos processuais, novos articulados, novos actos de citação, etc., com evidente desperdício de meios e de tempo, o que também é proibido pelo artigo 130.º CPCivil.

A recorrente defende aqui a aplicação, por analogia, do disposto no artigo 560.º do CPCivil.

Este normativo sob a epígrafe “Benefício concedido ao autor” tem a seguinte redacção:

“Quando se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, a parte não esteja patrocinada e a petição inicial seja apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, o autor pode apresentar outra petição ou juntar o documento a que se refere a primeira parte do disposto na alínea f) do artigo 558.º, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a ação proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo”.

Ora, a nova redação, decorrente do disposto no DL 97/2019, de 26/07, conferida a este normativo torna o mesmo imprestável para a situação dos autos, posto que ali se refere poder ser apresentada nova petição inicial – em caso de recusa da primeira-nas situações aí previstas: causa em que não seja obrigatória a constituição de mandatário (o que não é o presente caso).

Aliás, diga-se, em abono da verdade, que a aludida alteração legislativa tem suscitado bastante controvérsia, mormente, ao nível do princípio da igualdade das partes, destacando-se, neste concreto particular, o doutrinado por Miguel Teixeira de Sousa [A (muito estranha) nova redacção do art. 560.º CPC : “- Admitir-se a sanação do fundamento da rejeição ou do indeferimento liminar da petição inicial apenas quando o autor não esteja representado por mandatário judicial; nesta hipótese, a discriminação verifica-se entre autores que litigam em nome próprio (que beneficiam de um regime de sanação) e autores representados por advogados (que não beneficiam de um idêntico regime); - Admitir-se a sanação do fundamento da rejeição ou do indeferimento liminar da petição inicial apenas quando o autor, não representado por advogado, não a tenha entregue por via electrónica; nesta situação, a discriminação ocorre entre autores não representados por advogado que não tenham apresentado a petição inicial por via electrónica (que beneficiam da sanação do vício) e autores que, também não estando representados por advogado, tenham entregue a petição por essa via (que não beneficiam dessa sanação); - Excluir-se a sanação do fundamento da rejeição ou do indeferimento liminar da petição inicial, mas admitir-se a sanação de um idêntico vício quando se verifique em relação à contestação (e a um possível pedido reconvencional) do réu; nesta hipótese, a discriminação verifica-se entre autores (que não beneficiam de um regime de sanação quando estiverem representados por advogado) e réus (que beneficiam sempre desse regime).”

Como assim, devemos centrar-nos, nas soluções que a lei dita para situações concretas semelhantes (recurso à analogia), num esforço de integração da lacuna legal para o caso (cfr. artigo 10.º, n.º 2 do CCivil).

Nesta senda, o artigo 570.º CPCivil, na ausência de pagamento da taxa de justiça prevista para a contestação, não impõe, desde logo, a sua rejeição, mas sim o pagamento de multas, razão pela qual e pela mesma ordem de razões o sistema normativo preceituaria caso tivesse previsto o mesmo problema para a petição inicial.

De modo que, na ausência daquele pagamento ou da junção do comprovativo da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, deverá proceder-se à notificação do demandante, nos termos do artigo 570.º, n.ºs 3 e 4: a secretaria notifica o autor para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido com acréscimo de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC. Caso o não faça, ocorre a solução da segunda parte do nº 5: o juiz profere despacho convidando o autor a proceder ao pagamento, em 10 dias, da taxa de justiça omitida e da multa aplicada, acrescida de multa de igual valor ao da taxa de justiça inicial, com o limite mínimo de 5 UC e máximo de 15 UC.

Se o autor nada fizer, então é que é de ponderar se o efeito será o de aguardarem os autos que o faça, sem prejuízo do prazo de deserção da instância, ou eventualmente, o desentranhamento da petição inicial, com absolvição do réu da instância.

Diante do exposto, não devia a Sra. Juiz ter recusado o recebimento da petição com aquele fundamento, devendo antes ter seguido o procedimento supra aludido e que se encontra plasmada para a contestação.

Aliás, no caso em apreço, não tendo a secretaria recusado, desde logo, o recebimento da petição, e tendo a Autora solicitado a apensação a estes autos da providencia cautelar de suspensão desta deliberação a correr termos sob o nº 879/21.2T8STS, do Juízo de Comércio de Santo Tirso–J3 e dado nota de forma expressa, na parte final do articulado inicial, da junção do comprovativo de pedido de apoio, o juízo de valor do julgador deveria ter sido mais cauteloso, ou seja, considerando insuficiente a mera junção do documento comprovativo do formulado pedido de apoio judiciário, deveria ter dado uma oportunidade à Autora, concedendo-lhe um prazo para demonstrar nos autos, a concessão daquele apoio. [Veja-se a este propósito a síntese formulada no acórdão da Relação de Lisboa de 20/4/2010, proferido no âmbito do processo 6612/09.0TVLSB.L1-1, segundo a qual “[...] - Não recusando a secretaria o recebimento da petição inicial, deverá o juiz conceder um prazo ao autor, para demonstrar nos autos a concessão de apoio judiciário, emanado dos serviços competentes para o efeito”.]

[MTS]


19/09/2022

Jurisprudência 2022 (25)


Petição inicial; 
ineptidão; efeitos*


1. O sumário de RP 10/1/2022 (865/21.2T8AMT.P1) é o seguinte:

I - Gera o vício da ineptidão da petição inicial a falta de densificação ou concretização de factos essenciais em que se possa ancorar a pretensão deduzida.

II - Não estando desenhado o real núcleo factual essencial integrador da causa petendi, mas mera presunção ou, mesmo, suposição/dedução do sujeito ativo, esta não surge caraterizada, ocorrendo a sua falta.

III - E a falta de causa de pedir gera ineptidão da petição inicial e nulidade de todo o processo, exceção dilatória, de conhecimento oficioso a conduzir à absolvição do Réu da instância (al. a), do nº2, do art. 186º, al. b), do nº1, do art. 278º, nº2, do art. 576º e al. b), do art. 577º, todos do CPC).

IV - Contudo, na ineptidão da petição inicial, ante a verificação de manifesta inviabilidade da pretensão formulada, visando aquela exceção dilatória tutelar interesses do sujeito passivo que beneficiado sai com uma decisão de absolvição do pedido (na medida em que impedirá a repetição da causa por força do caso julgado), o desfecho da causa é de mérito, com a desejada e imposta, prevalência da substância sobre a forma, consagrada no nº3, do art. 278º, do CPC.

V - E a entender-se estar, apenas, insuficientemente densificada a causa de pedir, vício suscetível de sanação, ainda assim, inútil seria despacho de aperfeiçoamento na situação de inviabilidade da pretensão formulada, pois nenhuma utilidade acrescentaria à apreciação de mérito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Começaremos por analisar a questão da ineptidão da petição inicial e se, na procedência de tal exceção dilatória, é de anular todo o processo e de absolver a Ré da instância-

Aferindo-se tal exceção pelo próprio requerimento inicial, deste resulta vir formulado pedido de suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota.

A requerida, na defesa que apresenta, invoca que a Requerente não alegou factos suscetíveis de fundamentarem o referido pedido, não vindo alegados factos constitutivos do direito, pelo que falta a causa de pedir do que, contra si, vem pedido, sendo que o que deu origem ao registo foi um ato não seu mas, sim, do ex-marido da Autora.

Cumpre, pois, analisar da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

Estatui o artigo 186.º (que reproduz, sem alterações o anterior art. 193º), que tem a epígrafe Ineptidão da petição inicial que:

“1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição do Réu da instância e tal exceção é de conhecimento oficioso do tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b).

Assim, se faltar ou for ininteligível seja o pedido seja a causa de pedir, se houver contradição insanável do pedido com a causa de pedir ou se ocorrer uma cumulação de pedidos substancial ou intrinsecamente incompatíveis ou inconciliáveis entre si, ou se houver contradição entre as causas de pedir, a petição é inepta, o que provoca a nulidade de todo o processo (art. 186º, nº1), sendo esta uma das causas que determinam a absolvição do réu da instância (arts, 557º, b) e 576º, 2), a decretar no despacho saneador (art. 595º, 1, a)), se antes não tiver sido indeferida liminarmente a petição, se houver despacho liminar (art.590º, 1)[...].

Como refere Alberto dos Reis, se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, se se serviu “da linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretende obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. [Alberto dos Reis, Comentários ao Código de Processo Civil, 2º, 364.]” [...] 

Como bem refere o mencionado autor, “podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou factos, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir” [Ibidem, pág. 371].

Mais desenvolve “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a ação naufraga” [Ibidem, pág 372] (situação de manifesta inviabilidade).

O nº 4 do indicado artigo 581.º define a causa de pedir como sendo o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido, precisando que a causa de pedir nas ações de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito jurídico pretendido. [...]

Vista a Doutrina, analisemos, agora, a Jurisprudência.

Esta tem vindo a considerar que a petição inicial é inepta, por falta de causa de pedir, quando o Autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível a sua pretensão.

A ineptidão da petição inicial supõe que o A. não haja definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da pretensão que formula, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível. A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendiomite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes. [Acórdão do STJ de 26/3/2015, Processo 6500/07.4TBBRG.G2.S2, in dgsi.net].

No referido Acórdão do STJ, relatado pelo Ilustre Conselheiro Lopes do Rego, escreve-se, “a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa … nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial).

É que, neste caso, movemo-nos já no plano, não do vício de ineptidão da petição, mas da insuficiente alegação de um facto concretizador dos factos essenciais efectivamente alegados, podendo tal insuficiência de concretização factual (mesmo que não haja sido oportunamente detectada, em termos de originar a formulação de um convite ao aperfeiçoamento, na fase de saneamento) ser ainda suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução, nos termos do nº3 do art. 264º do velho CPC, vigente na data da realização da audiência nos presentes autos.

E, como é evidente, se tal falta de densificação ou concretização adequada dos factos substantivamente relevantes, - de que depende, afinal, a procedência da pretensão do A. - nem mesmo assim se puder ter por suprida, a consequência de tal insuficiência da matéria de facto processualmente adquirida não será a anulação de todo o processo, mas antes a improcedência, em termos de juízo de mérito, da própria acção, por o A. não ter logrado, afinal, apesar das amplas possibilidades processuais de que beneficiou, alegar e provar cabalmente todos os elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado…

Ora, no caso dos autos, a originária insuficiência de alegação … nunca tornaria a petição inepta, sendo tal insuficiência de densificação factual suprível durante o processo, nos termos em que está admitida a aquisição processual de factos concretizadores dos que integram o núcleo essencial da causa de pedir invocada pelo A. – e conduzindo uma irremediável insuficiência da matéria de facto, caso o A. não tenha aproveitado as oportunidades que a lei de processo lhe confere para suprir durante o processo tal originária deficiência na densificação factual dos factos substantivamente relevantes que alegou na petição, não à absolvição da instância do R., mas à improcedência da acção, por insuficiência do acervo factual constitutivo do direito por ele invocado. Importa, por outro lado, realçar que – independentemente de tal preclusão – a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa, notada no acórdão recorrido (e de algum modo acentuada pelo decidido pelo STJ no Ac.de 19/2/13, ao apagar da matéria de facto provada a conclusão de que a parcela física em litígio fazia parte do prédio reivindicado pelos AA.) , nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial)”.

Verificando-se exceção dilatória sanável, o juiz deve convidar a parte a suprir a falta ou, em determinadas situações, acionar, mesmo oficiosamente, os mecanismos de suprimento (arts. 6º, nº2 e 590º, nº2 a)). E sendo insanável ou não trazendo a diligência aventada qualquer utilidade para a apreciação do mérito da causa, deve haver absolvição da instância, a não ser que, atento o disposto no nº3, prevaleça a apreciação do mérito da causa, o que deve suceder quando, destinando-se o requisito formal a tutelar exclusivamente o interesse de uma parte, a decisão de mérito lhe seja integralmente favorável e não haja qualquer outro obstáculo à apreciação de mérito[14].

Com efeito, estatui este nº 3 do art. 278º,

“3 - As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”.

E, na verdade, consagra tal preceito o princípio da prevalência da decisão de mérito, pressupondo distinção entre pressupostos processuais dispensáveis e não dispensáveis, de modo que, a não se encontrar preenchido um pressuposto processual destinado a proteger interesses das partes, importa verificar se o conhecimento de mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a proteção que resultaria do preenchimento do pressuposto e, em caso afirmativo, a decisão que prevalece, a proferir, é a de mérito, sendo esta a situação dos autos, adianta-se. [...]

Neste conspecto, se, apesar da ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, se verificar manifesta inviabilidade da pretensão formulada, visando aquela exceção dilatória tutelar interesses do sujeito passivo que sai beneficiado com uma decisão de absolvição do pedido, na medida em que impedirá a repetição da causa por força do caso julgado, prevalente sendo a substancia sobre a forma, cabe proferir decisão de fundo [v. Ac. RP de 21-2-18, proc, 604/17 [...]].

In casu, pede a Requerente a suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota. E alegando a “revogação da doação” invoca, também deliberação social.

Entendeu o Tribunal a quo que vem alegado no requerimento inicial a existência de uma deliberação de revogação da doação da quota à Requerente contendo, por isso, a causa de pedir.

Ora, assim não acontece, pois que foi alegada no requerimento inicial a “revogação de doação” e o registo, efetivado, do ato (cfr. designadamente arts. 12º e 13º, do requerimento inicial) e bem resulta do registo, afirmado naquele requerimento, que o que lhe deu origem foi um ato praticado pelo doador (o sujeito ativo), com intervenção da Senhora Notária. Não foi alegada uma real e efetiva deliberação da Requerida – cfr. designadamente art. 14º, do referido requerimento, bem traduzindo este a mera suposição em que a Requerente laborou, confirmada no artigo 8º, da resposta (“tinha de presumir que se tratava de deliberação social”). Assim, sequer especificada vem qualquer deliberação nos seus termos, tempo, âmbito e conteúdo, antes conclui a requerente por de “capciosa artimanha” do seu ex-cônjuge se tratar (cfr. art. 22º, do mencionado requerimento inicial).

Sustenta a Requerida faltar causa de pedir, pois que o pedido formulado pela recorrente na providência cautelar de suspensão de deliberações sociais se consubstancia na “suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota” e essa menção está suportada em ato de E… (figurando este no registo do ato praticado por notário como o sujeito ativo).

E, na verdade, não vem invocada real, efetiva, específica, concreta deliberação, faltando a causa de pedir.

Bem se defende a requerida invocando falta de factos suscetíveis de fundamentarem o pedido, não vindo alegados factos constitutivos do direito a suspensão de concreta e específica deliberação social, pelo que falta a causa de pedir do que, contra si, vem pedido, sendo que, como foi alegado e resulta do próprio registo invocado, o que deu origem ao mesmo foi um ato ( de “revogação de doação” efetuada) do ex-marido da Autora (doador), praticado por escritura pública, sendo que ele mesmo nem parte é nos autos, e não uma concreta deliberação da requerida.

Efetivamente, a Requerente não alega quaisquer factos concretos, suscetíveis de consubstanciar uma causa de pedir quanto à Requerida, antes invoca uma dedução, uma suposição, um juízo conclusivo que efetuou.

Na verdade, não alega concreta deliberação antes vem mesmo, até, sustentar a falta de conhecimento, pela requerida, da “revogação da doação” e a falta de consentimento no ato, por parte desta, certo sendo que nada tendo a requerida doado, nenhuma doação tinha para revogar.

Tendo a causa de pedir de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias reais, concretas e individualizadas, verifica-se que tal, no caso dos presentes Autos, manifestamente, não sucede, apenas vindo invocada a revogação da doação (a praticar, necessariamente, pelo doador) sendo à Requerente, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito – art. 5º do CPC.

Assim, e não tendo a Requerente alegado, quanto à Requerida, quaisquer factos específicos, concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão do requerimento inicial o que, nos termos do disposto art. 186º, nº1, al. a) do CPC, acarretaria nulidade de todo o processo, exceção dilatória a obstar ao conhecimento do mérito da causa e a dar lugar à absolvição do sujeito passivo da instância (cf. arts. 576º, nº 1 e 2 e 577º, al. b) do CPC).

*

De qualquer modo, ainda que se não considerasse a petição inicial inepta, sempre, como vimos, a pretensão formulada seria inviável, pois que, do próprio registo aludido, bem resulta que o que deu “origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota da sociedade requerida” foi um ato praticado pelo ex-marido da Requerente.

E ainda que se entendesse que apenas, não está suficientemente densificada a causa de pedir, despacho de aperfeiçoamento, no sentido de ser completada, nenhuma utilidade teria face ao que resulta do próprio registo invocado e, mesmo, atenta a posição assumida pela requerente, na resposta que apresentou às exceções em causa, a qual, afirma não ter a sociedade tido conhecimento da escritura de revogação da doação nem consentido a transmissão da quota. Desse modo, como a própria Requerida sustenta, nenhuma deliberação esteve na base do registo em causa, pois que se deliberação tivesse havido a sociedade requerida não podia deixar de dela ter conhecimento (por tomada em assembleia geral sua).

Ora, pedindo a Requerente seja decretada a suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota da sociedade requerida e bem resultando dos autos que o que deu origem ao referido registo foi a escritura pública de “Distrate de Doação, junta como doc. nº7, com a oposição, tendo sido a Exma Senhora Notária quem requereu e foi responsável pelo registo do ato, como do próprio registo consta (cfr. f.p. nº2), nenhuma concreta/específica deliberação social foi alegada e nenhuma esteve na base da referida apresentação, nunca podendo deixar de se verificar falta de causa de pedir.

Estamos, pois, perante o vício de ineptidão, já que não obstante a alusão a deliberação social, se verifica ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, carecendo, em bom rigor, aos autos de um objeto inteligível já que na base do registo em causa (cfr. pretensão deduzida) se não encontra, como desse próprio registo resulta, uma deliberação social da Requerida.

Assim, e por se verificar nulidade de todo o processo, por falta de causa de pedir, a gerar ineptidão do requerimento inicial, na procedência da referida exceção dilatória, anulado teria de ser todo o processo e a Requerida absolvida da instância, nos termos da al. b), do nº1, do art. 278º, nº2, do art. 576º e da al. b), do art. 577º, todos do CPC.

Porém, como referido, sempre a pretensão é manifestamente inviável, o que resulta evidente do confronto do pedido com o registo nele referido. Na verdade, o que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota foi, como dele consta, um ato praticado perante a referida Senhora Notária que lavrou a mencionada escritura pública de “Distrate de Doação”, no Cartório Notarial sito na Rua … nº …, ….-… Porto, outorgada em 2 de Fevereiro de 2021 e em que figura como outorgante E… (o sujeito ativo no registo).

Assim, e face ao estatuído no nº3, do artigo 278º, do CPC, que privilegia a substância à forma, sempre a providência, manifestamente improcedente (dado na base do registo nenhuma deliberação social da requerida estar), tem de ser indeferida, não sendo de ordenar."


*3. [Comentário] Não se suscitam nenhumas dúvidas sobre a ineptidão da petição inicial.

O que, salvo o devido respeito, pode considerar-se duvidoso é que, com base no disposto no art. 278.º, n.º 3, CPC, se entenda que uma petição inicial inepta pode conduzir ao indeferimento do que nela é pedido ou requerido. Aliás, não é sem razão que o art. 590.º, n.º 1, CPC distingue entre a manifesta improcedência e a ocorrência de excepções dilatórias insupríveis (como é a nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial).

MTS