Processo de execução;
dívidas do casal; incidente de comunicabilidade*
1. O sumário de RG 18/12/2024 (901/24.0T8GMR-B.G1) é o seguinte;
I - O incidente de comunicabilidade, previsto nos arts. 741 e 742 do CPC, constitui o meio processual adequado a permitir o prosseguimento da execução por uma dívida comum do casal também contra o cônjuge do executado, quando apenas este figura do título como devedor.
II - Se o incidente for procedente, qualificando-se a dívida como comum do casal, ocorre um alargamento da eficácia subjetiva do título que inicialmente serviu de base à execução, passando a haver uma situação de litisconsórcio necessário superveniente entre o executado (inicial) e o seu cônjuge.
III - Em decorrência, a execução prossegue, em primeira linha, sobre os bens comuns e, subsidiariamente, sobre os bens próprios de qualquer um dos devedores.
IV - Não pode ser qualificada como comum do casal uma dívida constituída depois de o facto que determina a dissolução do casamento produzir os efeitos patrimoniais.
V - A assinatura aposta, para valer como aval, num formulário de livrança que, nesse momento – o da subscrição e entrega a outrem –, não está preenchido quanto aos seus elementos (valor, data de emissão, local e data de pagamento), mas que poderá vir a sê-lo, em determinadas circunstâncias, de acordo com critérios previamente definidos entre o portador (credor) e os potenciais vinculados cambiariamente, sejam estes o subscritor/emitente (devedor) e os avalistas (garantes), não vale, em termos técnico-jurídicos, como aval, mas como subscrição para aval.
VI - No hiato compreendido entre a subscrição para aval e o ato de preenchimento, o portador tem uma mera expetativa de aquisição do direito de crédito cambiário, a qual é equiparada à do credor sob condição suspensiva.
VII - Se da interpretação da convenção de preenchimento resultar que a vontade das partes foi no sentido de a produção dos efeitos decorrentes da verificação do evento condicionante do preenchimento não retroagir a momento anterior, designadamente ao da subscrição para aval, o crédito do portador sobre o avalista apenas se constitui quando o título se forma qua tale.
VIII - Em tais circunstâncias, o património comum do casal que foi constituído pelo avalista executado e pela requerida no incidente de comunicabilidade não responde pela dívida resultante do aval, se no momento do preenchimento da livrança já estavam cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, ainda que por facto ulterior à subscrição para aval.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"1).1. [...].
Em jeito de enquadramento, começamos por dizer que a questão surge nesta sede incidental uma vez que o Recorrido alegou, no requerimento executivo, que a dívida exequenda, apesar de ter sido contraída apenas pelo executado – o único dos (ex-)cônjuges que, em conformidade, consta do título como devedor e que, por isso, é também o único que tem legitimidade passiva inicial para a ação executiva, ut art. 53/1 do CPC –, é comunicável ao património comum do casal que foi constituído por este e pela Recorrente, pelo que, nos termos do direito substantivo, tendo vigorado no casamento o regime supletivo da comunhão de adquiridos, respondem por ela, em primeira linha, os bens comuns e, subsidiariamente, na falta ou insuficiência daqueles, os bens próprios de cada um dos (ex-) cônjuges (art. 1695/1 do Código Civil).
O meio processual adequado a pôr termo a este desfasamento entre o regime processual – que apenas permite a propositura da ação executiva contra o (ex-)cônjuge que consta como devedor do título – e o regime substantivo – nos termos do qual, alegadamente, ambos os (ex-cônjuges) são responsáveis pelo pagamento da dívida – é, precisamente, o denominado incidente de comunicabilidade da dívida constante de título diverso de sentença, previsto nos arts. 741 e 742 do CPC vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06. É através dele que o legislador dá “expressão processual” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 627) ao regime substantivo da responsabilidade por dívidas comuns, o qual contém solução quer para o caso de o regime de bens comportar uma massa de bens comuns, como sucede nos regimes legais ou convencionais de comunhão (art. 1695/1 do Código Civil), quer para o caso de o regime de bens ser o da separação (art. 1695/2 do Código Civil). Compreende-se, por esta razão, que se afirme (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil cit., p. 627) que, ao contrário do regime previsto no art. 740 do CPC, a observar nas hipóteses de execução movida contra um dos cônjuges (por dívida própria) em que sejam penhorados bens comuns – e que, por isso, apenas faz sentido se existir um património comum –, o incidente de comunicabilidade da dívida “é aplicável qualquer que seja o regime de bens do casamento.”
1).2. O incidente em questão pode ser suscitado tanto pelo exequente (art. 741 do CPC) como pelo cônjuge executado (art. 742 do CPC), interessados em alegar a comunicabilidade da dívida, contra o cônjuge do executado.
É pressuposto comum às duas hipóteses que a dívida conste de título diverso de sentença (art. 741/1 e 742/1). Significa isto, a contrario, que se o título executivo for uma sentença, não deve ser admitida, em sede executiva, a alegação da comunicabilidade. Nesse caso, sendo a dívida comum, restará ao credor a possibilidade de propor nova ação declarativa contra o cônjuge não condenado, tendente a demonstrar a comunicabilidade da dívida (RG 9.05.2019, 204/16.4T8CHV-D.G1, António Barroca Penha) e ao cônjuge condenado a de reclamar, no momento da partilha, a compensação devida ao seu património próprio pelo pagamento de uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges (cf. art. 1689/1 do Código Civil).
Compreende-se esta limitação quando se considere que qualquer um dos interessados já poderia ter suscitado a questão da comunicabilidade da dívida na prévia ação declarativa, conseguindo nela a obtenção de título executivo contra ambos os cônjuges: o credor demandando não apenas o devedor, mas também o seu cônjuge (art. 34/3 do CPC); o devedor, demandado isoladamente, mediante a intervenção principal provocada do seu cônjuge suportada na alegação e prova dos pressupostos da comunicabilidade da dívida (art. 316 do CPC). Sendo esta a ratio da limitação, foi já entendido que, não obstante a letra da lei, “se os termos do processo declarativo não permitirem ou não se compaginarem com este incidente, como sucede no inventário, a comunicabilidade pode ser admitida na execução, mesmo que o título executivo seja a sentença, neste caso a homologatória da partilha” (RC 3.12.2019, 342/09.0TBCTB-J.C1, Carlos Moreira).
É também pressuposto comum às duas hipóteses que a execução tenha sido “movida apenas contra um dos cônjuges”, o que está em conformidade com a própria razão de ser do incidente, que mais não visa, nos termos já referidos, que o alargamento do âmbito subjetivo do título executivo (Maria José Capelo, “Os pressupostos processuais gerais na ação executiva”, Themis, ano IV, n.º 7, 2003, pp. 79-104), de modo a conferir legitimidade passiva subsequente ao cônjuge do executado.
1).3. Centrando a atenção nos termos do incidente quando suscitado pelo exequente, resulta da parte final do n.º 1 do art. 741 do CPC que o pedido de comunicabilidade da dívida pode ser formulado num de dois momentos: ou no próprio requerimento executivo ou subsequentemente à apresentação deste, até ao início das diligências para venda e execução, sendo que, neste caso, deve constar de requerimento autónomo, a autuar por apenso. Conforme explicam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 627), “não se trata de conceder ao exequente uma opção quanto ao momento de alegação da comunicabilidade da dívida, mas antes de permitir a sua alegação superveniente (em relação ao momento da apresentação do requerimento executivo) quando o exequente tenha tido um conhecimento superveniente dessa comunicabilidade (nomeadamente, porque só durante a execução o exequente se apercebeu de que o executado era casado).”
No requerimento com dê origem ao incidente, o exequente tem o ónus de alegar, de forma substanciada, os factos de que depende a qualificação da dívida como comum – v.g., factos que permitam suportar um juízo valorativo no sentido de a dívida ter constituído um “encargo normal da vida familiar”, ter sido contraída “em proveito comum”, estar “nos limites dos seus [do cônjuge] poderes de administração” ou ter sido contraída no “exercício do comércio” –, assim observando a regra geral que consta do art. 5.º/1 do CPC.
A este propósito, é de notar que, como é entendimento jurisprudencial unânime, “[o] proveito comum do casal não se presume, tendo o autor de o provar, alegando e comprovando os factos que o traduzem” (STJ 12.07.2005, 05B1710, Ferreira Girão); trata-se de “uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito, consistindo a primeira em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida, enquanto a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída no interesse comum do casal, preenchendo o conceito legal”, pelo que, assim sendo, “a expressão legal proveito comum traduz-se num conceito de natureza jurídica a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino” (STJ 11.11.2008, 0B3302, Alves Velho; RC 21.10.2014, 582/12.4TBCTB-A.C1, Arlindo Oliveira).
Na sequência, o cônjuge do executado é citado para, no prazo de 20 dias, declarar se aceita a comunicabilidade da dívida, baseado no fundamento alegado, com a cominação de que, se nada disser, a dívida será considerada comum, sem prejuízo da oposição que contra ela venha a deduzir (art. 741/2).
Uma vez citado, o cônjuge do executado pode tomar uma de várias atitudes: (i) nada declarar, o que tem como consequência, por força de uma confissão ficta, a qualificação da dívida como comum, assim se constituindo “automaticamente um título executivo extrajudicial contra o cônjuge, que passa, com base nele, a ser também executado” (Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, 2017, pp. 259-260); (ii) declarar que aceita a comunicabilidade da dívida, o que produz o efeito referido e, ademais, valendo como confissão expressa feita à parte contrária, tem efeitos externos (arts. 352, 355/3 e 358/2 do Código Civil) (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., pp. 259-260); (iii) impugnar a comunicabilidade da dívida, o que se admite que possa fazer também em oposição à execução (Marco de Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 365) ou, tacitamente, através de um pedido de separação de bens comuns que, entretanto, tenham sido penhorados (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., p. 260).
Na última hipótese, que foi a ocorrida no caso que nos ocupa, seguem-se os termos gerais dos incidentes da instância (arts. 292 a 295 do CPC). Se, a final, a dívida for qualificada como comum, os efeitos serão semelhantes aos previstos na primeira hipótese: a execução prosseguirá também contra o cônjuge, que adquire, por esta via, o estatuto de executado, assim ficando composto um litisconsórcio necessário superveniente (Rui Pinto, A Ação Executiva, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2020, p. 528). A execução deverá prosseguir, em primeira linha, sobre os bens comuns e, subsidiariamente, sobre os bens próprios de qualquer um dos cônjuges. Se antes da qualificação tiverem sido penhorados bens próprios do executado inicial, este poderá requerer a respetiva substituição por bens comuns.
Note-se que a decisão final, que apenas produz efeitos dentro do processo quanto à qualificação da dívida, por força da regra geral da 1.ª parte do n.º 2 do art. 91 do CPC, não constitui, só por si, título executivo, posto que nada declara quanto à existência e valor da obrigação exequenda. Daí que seja entendido que, nestes casos, passa a haver um complexo documental (Rui Pinto, idem), formado pelo título executivo diverso de sentença apresentado pelo exequente e pela decisão judicial de comunicação da dívida ao cônjuge não executado (inicial) e, inerentemente, de extensão da responsabilidade subjetiva pela dívida. No mesmo sentido, na jurisprudência, RG 20.04.2020, 5281/17.8T8GMR-B.G1, José Alberto Moreira Dias. De modo aproximado, Nuno Andrade Pissarra (“O incidente de comunicabilidade de dívidas conjugais”, O Direito, ano 146.º (2014), III, pp. 737‑787), escreve que “[a] decisão do incidente não forma um novo título executivo contra o cônjuge do executado, antes alarga a eficácia subjetiva do título que inicialmente serviu de base à execução. O facto constitutivo da dívida comum encontramo‑lo no título inicial e a decisão do incidente nunca é condenatória.”
Estas considerações permitem-nos uma primeira conclusão: o incidente tem início com o requerimento (inserido no requerimento executivo ou apresentado autonomamente) do exequente e, em caso de procedência, culmina com a decisão de qualificação da dívida como comum. Não sendo esta, portanto, uma pré-existência, afigura-se impróprio, salvo o devido respeito, que é elevado, que o tribunal, na decisão, em lugar de julgar procedente o incidente de comunicabilidade, julgue improcedente o “incidente de impugnação da comunicabilidade.” Este trata-se, porém, de um mero pormenor, que não prejudica em nada a interpretação da decisão recorrida e a compreensão do seu sentido decisório (a qualificação da dívida como comum."
*3. [Comentário] Por razões evidentes só se deu relevância ao aspecto processual do incidente de comunicabilidade da dívida, mas o (bom) acórdão da RG tem interesse em muitos outros aspectos.
MTS
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