"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/09/2022

Jurisprudência 2022 (29)

 
Divórcio sem mútuo consentimento;
separação de facto; prazo*

1. O sumário de RC 18/1/2022 (373/20.9T8ACB.C1) é o seguinte:

I - Numa acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge as expressões “vida de casal” ou “vida comum de casal”, “não fazer vida de casal” e “organizar a sua vida de forma separada” não constituem conceitos de direito.

II – Na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da acção e a prolação da decisão.

III - A proposição de acção de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Considerou a sentença recorrida que decorria dos factos provados a separação efectiva do casal bem como a intenção de não reatar a vida em comum, demonstrado pela propositura da acção de divórcio. Quanto ao cômputo do prazo previsto no artº 1781 a) do C.C., tendo em conta a data em que julgou verificada a separação do casal e a data de interposição desta acção, considerou que “a decisão material deverá sempre assentar em requisitos materiais (prazo material), não devendo aquela submeter-se a questões processuais, uma vez que a separação de facto por um ano é fundamento do divórcio e não mero fundamento de procedibilidade adjectiva. Aplicando agora o direito ao caso dos autos, atendendo à factualidade dada como provada, verifica-se que a autora e o réu se encontram separados de facto desde data não concretamente apurada de Agosto de 2019, o que significa há mais de um ano a esta parte, havendo ainda da parte da autora o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal, estando assim preenchido na íntegra o circunstancialismo previsto na alínea a) do artigo 1781.º e no n.º 1 do artigo 1782.º do Código Civil.”

A este entendimento, opõe o apelante que o prazo não tinha decorrido à data da propositura da acção, sendo este um requisito prévio e condição de procedência do divórcio.

Alega ainda que a posição do tribunal de primeira instância choca frontalmente com o princípio da estabilidade da instância, tal como plasmado no art.260º do Código do Processo Civil e com o princípio da igualdade das partes, pois que o R. defendeu-se da concreta causa de pedir alegada pela A., ou seja, a separação de facto existente há mais de três anos.

Ora, é facto assente que a separação de facto entre os cônjuges ocorreu apenas no mês de Agosto de 2019 e não em 2017 como alegava a A. e que, por essa via, não decorrera ainda, à data da propositura da acção em 12/02/20, um ano de separação de facto consecutiva dos cônjuges. Se a inexistência deste requisito temporal à data da interposição da acção, obsta de per si ao decretamento do divórcio, depende, no entanto, da solução jurídica a dar à causa que passará sempre pela interpretação do disposto nos artºs 1781 alínea a) e 1782 do C.C.

Efectivamente, entre os fundamentos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, permitidos pelo artigo 1781º do C.C., encontra-se “A separação de facto” inicialmente por três anos consecutivos e que, a partir da entrada em vigor da Lei 61/2008 de 31/10, passou a “um ano consecutivo”, conforme decorre da alínea a) deste preceito legal. O artº 1782 do C.C. veio densificar o conceito de separação de facto como causa de divórcio, esclarecendo que se entende existir separação de facto entre os cônjuges para efeitos daquela alínea, quando “quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.”, eliminando-se deste preceito ao anterior número 2 que determinava a apreciação da culpa dos cônjuges na separação, quando a haja, para efeitos do disposto no então artº 1787 do C.C.

Nesta medida, na redacção introduzida pela Lei 61/2008, para que a separação de facto entre os cônjuges constitua fundamento de divórcio, exige-se a verificação de dois elementos: um de natureza objectiva que consiste na cessação dos deveres conjugais impostos pelo artº 1676 do C.C., de partilha de leito, mesa e habitação, pelo prazo (mínimo) consecutivo de um ano; outro de natureza subjectiva, consistente na intenção de pelo menos um dos cônjuges, de não retomar a vida matrimonial em comum (cfr. decorre do disposto no artº 1782 do C.C.), independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges.

Em, relação ao elemento objectivo - separação de facto consecutiva pelo período de um ano - alega o recorrente que este não se verificava à data da propositura da acção, uma vez que resultou provado apenas que desde Agosto de 2019 os cônjuges não fazem vida em comum, estando a acção condenada ao insucesso ab initio, indicando a seu favor jurisprudência do TRL de 21 de Fevereiro de 2019, proferido no processo nº3/18.9T8SXL.L1-2, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Pedro Martins. [...]

Considerou, no entanto, a decisão recorrida que, tendo em conta o tempo decorrido desde a entrada em juízo da p.i. e a data da decisão, sem que A. e R. tenham retomado a sua vivência, tendo cessado toda a vida em comum entre os cônjuges e não pretendendo a A. retomá-la, se verifica o requisito constante da alínea a) deste preceito. Cita em abono da sua posição, jurisprudência do nosso Supremo Tribunal [Nomeadamente [...] vide Acórdão da Relação de Évora de 27Fev2020, proc. 1055/19.0T8STR.E1 ou Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3Nov2005 proc. 05B2266, ambos disponíveis na Internet no sítio www.dgsi.pt.], a que aderimos, tendo em conta a ratio da alteração introduzida pela Lei 61/2008 de 31/10. [...]

Reconhecendo-se o mérito do raciocínio explanado no Ac. do TRL citado pelo recorrente, não podemos, no entanto, com ele concordar, pelas razões que acima enunciámos e que se prendem com a motivação do legislador. Acresce que, conforme refere a bem fundamentada decisão recorrida, o prazo previsto neste preceito, é um prazo de direito material e não processual, justificando-se assim a aplicação do disposto no artº 611 nº1 do C.P.C., o qual dispõe que “Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições gerais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser aletrada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos (…) que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à decisão existente no momento do encerramento da decisão.”

Não se conhece restrição a que seja considerado como facto constitutivo do direito da A. o prazo decorrido na pendência desta acção, tendo em conta que tendo esta dado entrada em juízo em 12/02/20, a sentença foi proferida em 12/09/21, mais de dois anos decorridos desde a data da separação de facto dos cônjuges, sem que estes tenham retomado, ou haja sequer intenção de retomar, a vivência em comum e decorrendo dos autos, pelo contrário, a ruptura definitiva deste matrimónio. Pois que outra coisa significaria, se não ruptura definitiva do matrimónio, a colocação de uma placa de esferovite, material isolante e um armário, por forma a obstruir a anterior porta de ligação entre dois apartamentos, habitando num a A. e noutro o R., e utilizando, inclusive, portas separadas para acesso aos imóveis, de forma a assegurar que não existe qualquer contacto?

Será então viável e inserido nos objectivos pretendidos pelo legislador com a alteração legislativa levada a cabo em 2008, considerar a manutenção de um vínculo meramente formal entre os cônjuges, apesar de desde pelo menos Agosto de 2019 e há mais de dois anos, existir uma separação de facto entre estes mesmos cônjuges?

Viola a consideração deste prazo no decurso da acção, o princípio da estabilidade da instância plasmado no artº 260 do C.P.C., conforme pretende o recorrente? Não o julgamos igualmente, tendo em conta que não existe efectiva alteração da causa de pedir, mas apenas integração no âmbito desta causa de pedir de factos decorridos também no decurso da acção. No inverso, refira-se que ainda que se verificasse o requisito temporal previsto neste preceito, poderia ainda assim a acção improceder se, no decurso desta fossem trazidos aos autos factos que demonstrassem não se verificar a intenção de não restabelecer a relação matrimonial.

Assim sendo, entendemos ser de considerar para o cômputo do prazo previsto nesta alínea a), o tempo decorrido entre a interposição da acção e a data da decisão que aprecia os fundamentos de divórcio. É esta aliás a posição jurisprudencial mais recente[12], inclusivé do nosso Supremo Tribunal. Como se refere em recente Ac. do STJ de 23/02/2021[13] “sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC.”, actualidade da decisão que não implica qualquer alteração à causa de pedir “à revelia das normas que regem a modificação objetiva da instância (arts. 264.º e 265.º, n.º 1, do CPC) - mas permitida pelo art. 588.º, do CPC -, porquanto se trata de facto alegado pela Autora desde a petição inicial, como elemento da causa de pedir da presente acção”.

 

3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se pode concordar, de forma alguma, com a doutrina defendida no acórdão quanto à relevância atribuída ao decurso do prazo estabelecido no art. 1781.º, al. a), CC durante a pendência da causa.

Admita-se que um autor propõe uma acção de reivindicação com base na aquisição do bem reivindicado através de usucapião. Pergunta-se: seria defensável entender que o prazo de usucapião se pode completar até à "sentença" ou, pelo menos, até ao encerramento da discussão e julgamento? Supõe-se que ninguém daria uma resposta afirmativa.

E porquê? -- cabe perguntar. Pela simples razão de que o direito de acção do autor -- que se encontra consagrado tanto no art. 2.º, n.º 2, CPC, como no art. 817.º CC -- tem de existir no momento da propositura da acção, e não em nenhum momento posterior.

Basta pensar num outro exemplo muito simples: o credor propõe a acção de cumprimento antes de terminar o prazo para o cumprimento da obrigação pelo devedor; pergunta-se: alguém diria que não há problema nenhum, porque esse prazo se vai completar até ao encerramento da discussão?

Por fim, cabe referir que não de descortina como é que uma parcela de um prazo em curso pode ser considerada um facto superveniente para efeitos de aplicação do art. 611.º, n.º 1, CPC. A parcela de um prazo que é, no seu todo, o facto constitutivo de um direito (in casu, do direito ao divórcio) nunca pode ser, em si mesma, um facto constitutivo, nem, muito menos, um facto superveniente.

MTS