"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/09/2022

Jurisprudência 2022 (28)


Processo executivo;
acto processual; pagamento voluntário*


I. O sumário de RL 3/2/2022 (2976/21.5T8SNT-A-8) é o seguinte:

1. No direito civil, pode definir-se cumprimento como a realização voluntária do comportamento objecto de uma obrigação, sendo-lhe aplicável o regime substantivo dos actos voluntários.

2. No processo civil, cumprimento não é um acto meramente civil, mas um acto processual dos executados.

3. Actos processuais civis são os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui.

4. No nosso direito civil, é conhecida a distinção entre factos jurídicos stricto sensu, actos jurídicos e negócios jurídicos.

5. No processo jurisdicional, esta classificação não é operativa; os actos processuais são factos voluntários, mas trata-se em tudo de uma vontade genérica: «a simples vontade e consciência de realizar o acto, não se exigindo de modo nenhum que seja dirigida a atingir um determinado efeito e não podendo tão pouco determiná-lo e adequá-lo a seu gosto, porque o efeito já está fixado e predeterminado pela lei».

6. Da entrega de dinheiro feita pelos executados à Sra. Agente de Execução não se deduz, sem qualquer outra declaração, que esta entrega tenha ido feita com o propósito de evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros.

7. Se os executados se enganaram ou erraram na entrega, precisamente porque são irrelevantes os vícios de vontade dos actos processuais (constitutivos ou postulativos), não se pode pela via de recurso ou através de outro remédio, na execução, reparar o erro.


II. Na fundamentação do acórdão refere-se o seguinte:

"Do direito

Resulta assente nos autos que os embargantes na pendência da execução e dos embargos deduzidos entregaram à Sra. Agente de Execução (AE) determinado valor suficiente para o pagamento da quantia exequenda e custas do processo. Perante esta entrega a Sra. AE extinguiu a execução.

Que valor emprestar a este acto?

No direito civil, discute-se qual a natureza jurídica do cumprimento, quanto à sua estrutura: contrato, negócio jurídico, acto extintivo, acto devido, facto jurídico stricto sensu? (Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Lições de Direito das Obrigações, AAFDL, Lisboa, 1975-1976:415 ss).

Seguindo a posição de Pessoa Jorge podemos dizer que o cumprimento é a realização voluntária do comportamento objecto de uma obrigação sendo-lhe aplicável o regime substantivo dos actos -voluntários (ibidem:420).

Acontece que neste caso não estamos perante um ACTO MERAMENTE CIVIL, MAS SIM PERANTE UM ACTO PROCESSUAL DOS EXECUTADOS.

Preceitua o artigo 846.º do Código de Processo Civil (são deste código os artigos ulteriormente citados), sob a epígrafe cessação da execução pelo pagamento voluntário: 1. Em qualquer estado do processo pode o executado ou qualquer outra pessoa fazer cessar a execução, pagando as custas e a dívida.

Depois de efectuados a liquidação da responsabilidade do executado e os pagamentos, a execução extingue-se (artigo 849.º, 1, al. b)).

Recorrendo a uma metáfora, diz-se que «o procedimento é composto por vários anéis concatenados entre si, salvo o primeiro, que, como tal, não tem nenhum anel pressuposto, e o último que não é o pressuposto de outro anel» (Nicola Picardi, Manuale del processo civile, Giuffrè Editore, Milano, 2016:208; igual metáfora em Francesco P. Luiso: «pode-se pensar numa corrente pendurada num suporte: cada anel segura os anéis sucessivos e é seguro pelos precedentes, salvo o primeiro e último», Diritto Processuale Civile, Vol. I, Giuffrè, Milano, 2021: 421-422).

Como se podem definir estes anéis?

Na definição de Enrico Redenti actos processuais civis são os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui (Enrico Redenti, Atti processuali, Enciclopedia del diritto, IV, Giuffré Editore:105.). Esta definição poderá parecer tautológica, mas dá o mote para abordar o ponto.
 
O Capítulo I, do Título I do Livro II do Código de Processo Civil, compõe-se de 72 artigos (artigos 130.º-202.º), dedicados à disciplina dos actos processuais, em geral. As secções II, III e IV são intituladas, respectivamente, Actos das partes (artigos 144.º-149.º), Actos dos magistrados (artigos 150.º-156.º), e Actos da secretaria (artigos 157.º-162.º).

Sem que tal corresponda a qualquer visão privatística, a disciplina positiva toma em consideração, em primeiro lugar, os actos das partes, sem cujo impulso inicial não há processo e que condicionam a actividade do juiz (ne procedat iudex ex officio - artigo 3.º, 1), para depois tratar dos actos dos magistrados, designadamente da forma da sentença (152.º e 153.º), dos deveres de motivação (154.º) e de cumprimento dos prazos para as decisões (156.º), seguindo para os actos da secretaria (157.º-162.º), e, depois, para a publicidade e acesso ao processo (163.º-171.º), e para a comunicação dos actos (172.º185.º), culminando na disciplina das nulidades dos actos (186.º-202.º).

Basta percorrer estes artigos para se perceber que o legislador agrupou os actos processuais em atenção aos sujeitos que os praticam manifestando uma preocupação sistemática em adoptar um modelo adaptável (nem sempre bem) a todos os processos, isto é, quer ao processo declarativo, quer ao executivo, quer ainda aos processos especiais.

Porém, o Código de Processo Civil não tem uma definição do que deva entender-se por acto de processo, ou, melhor, o legislador limita-se a falar de atos processuais, expressão com que encima o Título I do Livro II.

Como refere Paula Costa e Silva, da disciplina positiva «apenas podemos dizer com alguma segurança que, para o legislador, no acto processual está sempre implícita uma ligação entre o acto e o processo» (Paula Costa e Silva, Acto e Proceso, op. cit:189).

Resulta que a construção do conceito de acto processual tem de ser feita praeter legem.

No nosso direito civil, é conhecida a distinção entre factos jurídicos stricto sensu, actos jurídicos e negócios jurídicos.

No processo jurisdicional, esta classificação não é operativa. Justamente porque o processo consiste numa série de actos concatenados e conjugados entre si, tendo em vista determinado fim, todos os actos devem obedecer a uma regulamentação formal «que absorve e anula em si qualquer factor ou elemento, seja ele subjectivo ou objectivo» (Girolamo Monteleone, Manuale di Diritto Processuale Civile, Vol. I, Settima edizione, Wolters Kluwer-Cedam, Vicenza, 2015:276.).

Não quer isto dizer que os actos processuais não sejam factos voluntários. Todavia, trata-se de uma vontade em tudo genérica :«a simples vontade e consciência de realizar o acto, não se exigindo de modo nenhum que seja dirigida a atingir um determinado efeito e não podendo tão pouco determiná-lo e adequá-lo a seu gosto, porque o efeito já está fixado e predeterminado pela lei» (Enrico Tullio Liebman, Manuale di Diritto Processuale Civile, Principi, sesta edizione, Giuffrè editore, Milano, 2002:206).

Salvatore Satta, para quem o acto se identifica com o processo, afirma, por sua vez, que se os actos processuais são todos actos voluntários «a consequência processual (constitutiva, modificativa, etc. do processo) é de todo independente da vontade nele manifestada, e pelo contrário esta vontade não tem em geral nenhum particular relevo» (Salvatore Satta/Carmine Punzi, Diritto Processuale Civile, 12.ª ed., Cedam, Padova, 1996: 237). É, aliás, comum a opinião que nega, ao acto processual, o relevo de eventuais vícios da vontade (Chiara Besso, Il processo civile e le sue alternative, nozioni generali, quarta edizione, G. Giappichelli Editore, Torino, 2019:192).

Apesar de a lei processual não atribuir efeitos ao acto por referência à vontade dos seus autores não se quer dizer, pelo contrário, que os actos não possam ser interpretados. Ora nada no processo nos permite dizer que a entrega de dinheiro feita pelos embargantes à Sra. Agente de Execução tenha sido feita com o propósito de evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros (males maiores).

Se foi essa a intenção os embargantes deviam tê-la acautelado no momento da entrega, o que não foi feito, ou então seguir uma outra via processual, no momento próprio, para alcançar tal desiderato.

Por outro lado, se os executados se enganaram ou erraram na entrega, precisamente porque são irrelevantes os vícios de vontade dos actos processuais (constitutivos ou postulativos), não se pode pela via de recurso ou através de outro remédio nesta execução reparar o erro.

Ao se decidir deste modo não se está bem entendido a limitar o direito de defesa dos recorrentes, mas sim a aplicar o que deriva da lei e da melhor doutrina."


III. [Comentário] As peças processuais transcritas no acórdão nem sempre são muito claras, mas o que a RL teve de decidir foi o seguinte: os executados/embargantes entregaram ao agente de execução um cheque numa determinada quantia; o agente de execução considerou que o cheque constituía o pagamento voluntário da dívida exequenda e extinguiu a execução; os executados/embargantes defenderam que a entrega do cheque não se destinava a pagar a dívida exequenda e pretendiam a continuação dos embargos.

A RL confirmou a decisão recorrida de extinção da instância executiva.


[MTS]