"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/09/2025

Jurisprudência 2024 (227)


Invalidade do contrato;
título executivo; autoridade de caso julgado


1. O sumário de RC 26/11/2024 (835/22.3T8ANS-A.C1) é o seguinte:

I – Um “protocolo” invocado como contrato de arrendamento comercial em ação de despejo e ali considerado inválido – por, à época, tais contratos de arrendamento terem, obrigatoriamente, de ser celebrados mediante escritura pública, o que não ocorreu – não pode constituir título executivo válido e eficaz numa posterior execução, entre as mesmas partes, para pagamento de quantia certa, por a nulidade anteriormente declarada ocasionar a inexistência de título executivo.

II – Em tal situação, a autoridade do caso julgado formado na ação de despejo impede que se discuta, de novo, na execução, a questão da validade do “protocolo” como contrato de arrendamento.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Se a exequente/embargada dispõe de título executivo, como tal se devendo considerar o “Protocolo” celebrado entre as ora partes, que constitui um contrato de arrendamento.

Como resulta do relatório [...], o título executivo invocado pela exequente/embargada na execução é, precisamente o “Protocolo”, que na acção de despejo acima assinalado se destinava a fazer prova do contato de arrendamento, (cf. itens 2.º e 3.º, dos factos dados como provados na sentença aqui em recurso e item 1.º, dos factos dados como provados na sentença proferida na supra citada acção de despejo) que, ali, foi declarado nulo, por inobservância da forma legal.

Na sentença ora recorrida considerou-se, igualmente, que o designado “Protocolo” não obstante revista todas as qualidades para poder ser considerado como um contrato de arrendamento comercial, não pode constituir título executivo válido e eficaz, porquanto, à época, tais contratos de arrendamento tinham, obrigatoriamente, de ser celebrados mediante escritura pública, o que não se verificou, o que acarreta a respectiva nulidade, do que resulta inexistir título executivo, com a consequente extinção da execução, nos termos do disposto nos artigos 729.º, a) e 732.º, n.º 4, ambos do CPC.

Recorrendo, a exequente/embargada Diocese de Leiria Fátima, continua a pugnar no sentido de que se considere que o referido “Protocolo”, não obstante a não celebração de escritura pública, deve ser considerado como contrato de arrendamento, reunindo as condições para valer como título executivo, o que, assim, deve ser declarado, com o consequente prosseguimento da execução.

Contra-alegando, a executada/embargante A..., pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que tal “Protocolo” não reveste as características de título executivo o que, desde logo, resulta do facto de na aludida sentença de despejo, transitada em julgado, já ter sido declara a nulidade de tal “protocolo”, por falta da forma legal, pelo que não se pode, agora, de novo, discutir tal questão.

Daqui resulta, pois, que se impõe a análise da eficácia do decidido naquela acção de despejo, quanto a esta questão, designadamente se, se em virtude da designada “autoridade do caso julgado” já não se poderá, nestes embargos, discutir a validade/nulidade do designado “Protocolo” com a vista a aferir se o mesmo pode valer ou não como título executivo. 

Como sabido, visa a “exceção de caso julgado” evitar que o órgão jurisdicional contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior; garantindo assim aos particulares o mínimo de certeza e de segurança jurídicas indispensáveis à vida de relação, razão pela qual o que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem a decisão já proferida, não julgando a questão de novo.

Garante-se, portanto, a impossibilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica, uma vez que a finalidade dum processo não se esgota na definição do direito/justiça do caso concreto, tendo também em vista conferir certeza/segurança jurídicas e paz social, essenciais à vida em sociedade; certeza/segurança jurídicas e paz social que nunca aconteceriam se, proferida uma decisão, esgotada a possibilidade de interpor recurso de tal decisão, a parte vencida pudesse suscitar nova e sucessivamente a questão antes decidida.

Há pois caso julgado quando se repete uma causa, sendo que há a “repetição da causa” quando há identidade de sujeitos, identidade do pedido e também da causa de pedir (cfr. art. 581.º/1 do CPC).

Identidade de sujeitos que reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas ações sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Identidade da causa de pedir que existe quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, identidade que tem de ser procurada não relativamente às demandas formuladas, mas na questão fundamental levantada nas duas ações; pelo que, tendo a nossa lei adotado a chamada teoria da substanciação, se exige sempre a indicação do título ou facto jurídico em que se baseia o direito do autor.

Identidade do pedido que tem de ser apreciada não só em relação ao que se pede nas duas ações mas também em relação ao que se alega a respeito da questão fundamental que comanda o pedido das ações.

E se, quanto à identidade de sujeitos, nenhumas especiais dificuldades normalmente se suscitam, não é sempre com a mesma facilidade que se percebe a identidade nos elementos objetivos (causa de pedir e pedido).

Assim, a propósito dos limites objetivos do caso julgado, não será demais referir que desde há muito que a conceção/sistema restrito do caso julgado se foi impondo quer na doutrina quer na jurisprudência, ou seja, hoje, não é sustentável dizer que qualquer fundamento fica pelo trânsito em julgado indiscutível (sistema amplo do caso julgado), devendo antes ser dito, como regra, que só a decisão tem foros de indiscutibilidade, sendo tudo o mais (todos os seus fundamentos) discutível (sistema restrito).

Porém, o que se diz como regra (só ter a sentença força de caso julgado na parte decisória e não nos motivos) é algo que não tem uma rigidez absoluta, distinguindo-se, tendo como ponto de partida tal regra (própria dum sistema restritivo puro), hipóteses em que os fundamentos têm força de caso julgado e hipóteses em que não têm [A dificuldade – como refere o Prof. Castro Mendes, in Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 121 e ss. – está “em estabelecer a distinção em bases científicas sem empurrar a questão para uma casuísmo necessariamente arbitrário”.].

Verdadeiramente, hoje, em termos de limites objetivos do caso julgado, impera a ideia pragmática do “in medio virtus” [Efetivamente, a conceção/sistema restrito (da sentença só ter força de caso julgado na parte decisiva e não nos fundamentos) leva a conclusões duvidosas e em última análise insatisfatórias (como resulta dos inúmeros exemplos citados por Castro Mendes, obra citada, pág. 143).]: o sistema restritivo adotado acaba por ser apenas “pseudo-restritivo” ou, mais exatamente, um sistema intermédio [Como observou – há mais de 50 anos, mas com inteira atualidade – o Prof. Castro Mendes (obra citada, pág. 133), mesmo aqueles (Dias Ferreira) que diziam que “a sentença só tem força de caso julgado na parte decisiva e não nos motivos, considerandos ou enunciações”, não deixavam de acrescentar “excepto quando os considerandos estejam relacionados com a decisão por forma que com ela formem um todo indivisível”. Do mesmo modo a jurisprudência que “aceita a regra segundo a qual o caso julgado não se alarga aos fundamentos da decisão”, logo acrescentado “que o CPC admite a decisão implícita, como consequência necessária do julgamento expressamente proferido e já transitado, constituindo problema de interpretação da sentença saber se nela há um fundamento implícito”.].

Efetivamente, de modos diversos e com mais ou menos nuances (de linguagem), diz-se repetidamente que a decisão e fundamentos constituem um todo único; que toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), pelo que o respetivo caso julgado se encontra sempre referenciado a certos fundamentos; que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respetivos fundamentos; enfim, que não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo; que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão [Seguimos de perto Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 578.].

 “Em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão; mais exatamente, os fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial; não são vinculativos quando desligados da respetiva decisão. Mas valem (os fundamentos) enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta [Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579/80.]”. [...]

Mais ainda, os fundamentos podem possuir um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e um outro objeto; conexões que podem ser, designadamente, de prejudicialidade, o que significa, por ex., que, se numa compra e venda o comprador obtém a redução do preço atendendo aos defeitos da coisa, não pode questionar a validade do contrato em ação em que o vendedor requeira que ele lhe pague a quantia em dívida. [...]

É, na síntese clássica, a regra do “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debetat”.

E é chegado a este ponto da compreensão dos limites objetivos do caso julgado – nos meandros das situações incompatíveis, de prejudicialidade e do chamado efeito preclusivo – que emerge a “figura” da autoridade de caso julgado e os exemplos de escola (e jurisprudenciais) da verificação da “autoridade de caso julgado”.

Como exceção dilatória, visa o caso julgado (material) prevenir, como já se referiu, a possibilidade de prolação de decisões judiciais contraditórias com o mesmo objeto (efeito impeditivo e função negativa); como autoridade de caso julgado, garante a vinculação dos órgãos jurisdicionais e o acatamento pelos particulares de uma decisão anterior (efeito vinculativo e função positiva).

Quando o objeto processual antecedente é repetido no objeto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como exceção de caso julgado no processo posterior; quando o objeto processual anterior funciona como condição para a apreciação do objeto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo instaurado em 2.º lugar [...].

Daí que a exceção do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; enquanto, naturalmente, a autoridade do caso julgado dispensa tal tríplice identidade [...].

Porém, tal dispensa não significa um não confinamento da “figura” do alcance e da autoridade do caso julgado àquelas situações em que a sentença reconhece, no todo ou em parte, um concreto direito do A., assim fazendo precludir todos os meios de defesa do R., os concretamente deduzidos e até os abstratamente dedutíveis com base em direito próprio; ou àquelas situações em que a sentença, ao reconhecer um direito, constitui um pressuposto ou condição de julgamento de um outro objeto ou prejudica/exclui a invocação de direitos contraditórios e incompatíveis [...]

No caso em apreço, não obstante serem diferentes os fins visados em cada um dos processos em questão: resolução do contrato de arrendamento com base na falta do pagamento de rendas e consequências daí resultantes e exigência do pagamento de tais rendas e demais quantias devidas, com base na celebração do dito “Protocolo”, erigido em título executivo, respectivamente, visando a requerida, nestes autos, persistir na invocação de tal “Protocolo” como título executivo válido, na prática, estamos no âmbito da mesma questão: validade/invalidade do referido “Protocolo”.

Como já se referiu, entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão e a pretensão delimitada a causa de pedir, estabelecendo-se entra ambas uma relação de implicação mútua [Miguel Teixeira de Sousa, BMJ 325, pág. 106.]

Daí o dizer-se, como também já se referiu, que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado” [Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 693]; ou, por outras palavras, que a eficácia do caso julgado apenas cobre a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do A., concretizada no pedido e limitada através da respetiva causa de pedir; ou, ainda, que o que adquire o valor de caso julgado é o silogismo/raciocínio judiciário no seu todo, que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão.

Como acima já se referiu e se reitera, o que está em causa nestes autos é apurar se a exequente/embargada detém ou não, título executivo válido que sustente a execução que intentou contra a executada/embargante, consubstanciado no mencionado “Protocolo”.

Ora, analisando, no que tal questão respeita, a matéria de facto dada como provada em ambas as acções em comparação e decisão proferida, tal questão já se mostra decidida, no sentido de que, efectivamente, foi declarada a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre a Diocese de Leiria Fátima e o B..., a que as partes deram o nome de protocolo. Protocolo, este, que é o invocado em ambas as acções, pelo que, nos termos expostos, não se pode, agora, de novo, discutir judicialmente tal questão.

A ordem jurídica já se pronunciou quanto a tal, em termos que vinculam as ora partes, por força da autoridade de caso julgado formado em resultado da prolação da sentença proferida nos autos de despejo supra referidos.

O que mais se reforça, atento a que a exequente/embargada nada refere, de novo, quanto a tal, na execução.

Impõe-se, pois, embora por diferente fundamentação jurídica, manter a decisão recorrida e julgar improcedente a apelação."

[MTS]