"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2025

Jurisprudência 2024 (221)


Prova; poder inquisitório do tribunal;
juízo de conveniência e oportunidade*


I. O sumário de RL 26/11/2024 (1079/24.5T8FNC-A.L1-1) é o seguinte:

1- O princípio do inquisitório, previsto na lei processual como “incumbência” do juiz do processo, define-se como um “dever”. O legislador previu a liberdade de o juiz na sua actuação oficiosa, ainda que haja condicionado a liberdade de uso desses poderes instrutórios a uma concreta finalidade - o poder oficioso é usado para atingir os fins do processo expressamente contemplados no art.º 411º do Código de Processo Civil. Essa liberdade seria posta em causa se houvesse uma vinculação geral e ilimitada do uso desse poder/dever à audiência prévia das partes.

2- A decisão do juiz de, no uso dos seus poderes instrutórios, ordenar a produção de prova pericial, não fica subtraída à sindicância das partes, sendo a interposição de recurso a via própria para reagir a uma decisão que possa consubstanciar uma actuação injustificadamente perturbadora da regular tramitação processual ou que se revele despida de fundamento, designadamente, por a prova ordenada não ter qualquer relevância à luz dos factos objecto de julgamento, respeitar a factos que ao tribunal não é lícito conhecer, ou, no limite, por corresponder a prova ilegal.

3- A prova pericial tem como finalidade a percepção ou apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui.

4- Não obstante o carácter urgente do processo de insolvência, esta circunstância, por si só, não é fundamento para não admitir a realização da perícia neste processo, uma vez que o andamento célere do processo não deve colocar em causa o princípio da busca e descoberta da verdade material e da justa composição do litígio.

5- Todavia, a perícia apenas poderá ter lugar quando resulte dos elementos carreados para os autos que a mesma é indispensável, imprescindível para estabelecer ou infirmar a realidade do facto carecido de prova com relevo para a decisão a proferir.

6- Tendo sido requerida a insolvência de uma sociedade por quotas com fundamento no facto de a mesma ter deixado de cumprir plano de insolvência anterior, não dispor de bens ou rendimentos que lhe permitam pagar as dívidas e encontrar-se em situação de incumprimento generalizado, circunstâncias que a requerida se limitou a impugnar, dizendo que é proprietária de dois imóveis, os quais se encontram hipotecados à requerente, não há fundamento que permita considerar como necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio a realização de perícia tendo como objecto e sem qualquer outra fundamentação, apurar se o activo da requerida é superior ao passivo.


II. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:

"A signatária não acompanha o sentido decisório do acórdão, ou a sua fundamentação, na parte em que se afirma que “a perícia, com o objecto fixado, não se pode considerar uma diligência necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. A entender-se de modo diverso, ter-se-ia que considerar esta diligência necessária em todos os processos de insolvência para apurar se o passivo é superior ao activo, ou vice-versa. Nada tendo sido indicado no despacho e nada resultando dos autos que permita que se conclua, neste caso em particular, pela necessidade de recorrer a pessoa com conhecimentos técnicos especiais que o julgador não possua, não é possível afirmar, com segurança e objectividade, que a perícia é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é lícito conhecer”.

Se tal argumento poderia ser potencialmente relevante enquanto suporte de indeferimento de uma perícia requerida pelas partes, não o será, na opinião da signatária, quando em causa está uma perícia ordenada oficiosamente pelo julgador.

A prova pericial será impertinente “se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa (…) Para admissão da prova pericial não se exige que a mesma seja o único meio disponível para a demonstração de determinado facto (isto é, que deva ser rejeitada desde que a prova do mesmo possa ser feita por outros meios alternativos); poderá ser apenas a prova preferencial, face ao objecto do litígio” – Acórdão do TR Guimarães de 23.01.2020, processo n.º 5588/19.8T8VNF-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, citado no despacho recorrido.

Se uma determinada diligência tem a aptidão abstrata para provar factos relevantes para a decisão da causa, ou é potencialmente relevante para apurar esses factos, ela é pertinente, pelo que, na situação concreta, restaria apreciar a possibilidade de a afirmada desnecessidade objetiva ser bastante para suportar a revogação do despacho recorrido.

No que a este conspecto respeita, considero, no caso concreto, que o juízo subjetivo de necessidade da prova para justa composição do litígio ou apuramento da verdade material está excluído da margem de sindicabilidade deste tribunal, na exata medida em que não são ultrapassados quaisquer limites de legalidade (como sucederia, v.g., se o juiz ordenasse oficiosamente a inquirição de uma testemunha para prova de um facto provado por documento autêntico), não está em causa a sua admissibilidade processual, nem pode considerar-se que existe objetiva desadequação da prova em questão para demonstrar a factualidade controvertida.

Citando Nuno Lemos Jorge [“Os Poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, Revista Julgar, n.º 3, pág. 76], “(…) [A] desnecessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio só em casos extremos poderá constituir, autonomamente, um fundamento seguro para o recurso da decisão. Só o tribunal sabe da sua necessidade de esclarecimento”.

É verdade que o objeto da perícia proposto pelo juiz, no essencial, transcreve o texto da lei. Contudo, sendo o propósito da prova a avaliação do ativo e o seu confronto com o passivo, não haverá um particular elenco de expressões alternativas que possam ser utilizadas para indicação daquela que será a incidência da perícia, tendo sido expressamente concedido às partes o direito de propor a ampliação ou alteração do objeto proposto.

Ainda que o resultado probatório a alcançar, no particular contexto do processo de insolvência, possa ser obtido por outra via, não pode daí extrair-se um indício de desnecessidade ou de impertinência da prova, quando esta tem por objeto questões de facto que integram a causa de pedir e que, em simultâneo, contendem com factos que suportam exceções arguidas pela requerida.

Se a signatária concorda que o fundamento invocado para realização da diligência poderá ser usado em todos os processos de insolvência em que se imponha apurar se o passivo é superior ao ativo, já não adere à conclusão de que esse argumento possa suportar um juízo de desnecessidade da diligência passível de questionar o juízo de necessidade afirmado pelo julgador, que não está limitado no uso de poderes instrutórios a uma diretriz de indispensabilidade ou imprescindibilidade do concreto meio de prova de que entende carecer para formar, com segurança, o seu juízo.

Em suma, na opinião da signatária, não existindo objetiva violação das regras de que a lei, ou específicas exigências de justiça e equidade, fazem depender o recurso aos poderes instrutórios do juiz, não poderia ser coartado o uso do poder oficioso de ordenar a realização de diligência que, no seu juízo subjetivo, o mesmo considerou como necessária.

No que respeita à violação do princípio constitucional da confiança (questão que não ficaria prejudicada caso fosse seguida a posição da signatária), a defesa pela apelante de uma violação do princípio da confiança sustentada na fundada expectativa de que os requerimentos probatórios se encontravam definitivamente estabilizados, situação inesperadamente subvertida pela determinação oficiosa de realização de uma diligência probatória, traduz a concretização da surpresa, da imprevisibilidade ou da natureza inesperada da determinação do julgador, mas essa surpresa, fundada em poderes conferidos por lei, não atinge a dignidade constitucional apontada, não podendo falar-se em ofensa ao princípio da confiança quanto está em causa um ato norteado por objetivos de apuramento de verdade e compreendido no uso regular dos poderes do julgador, sem qualquer cariz de arbitrariedade ou ofensa de direitos das partes, que não se confundem com as suas subjetivas expectativas. Nessa medida, concluiria pela inexistência de uma atuação lesiva do princípio da proteção da confiança."

*III. [Comentário] Está-se mais próximo do voto de vencido do que da maioria que fez vencimento. Como o exercício do poder inquisitório atribuído pelo art. 411.º CPC pressupõe um juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo tribunal, o controlo desse exercício por um tribunal de recurso só é possível em caso de ilegalidade (art. 630.º, n.º 1, CPC). Como não se vislumbra nenhuma ilegalidade na decisão do tribunal a quo, o recurso nem sequer devia ter sido admitido.

MTS