"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/09/2025

Jurisprudência 2024 (229)


Processo de inventário; articulado superveniente;
remessa das partes para os meios comuns


I. O sumário de RG 18/12/2024 (49/23.5T8VNC-A.G1) é o seguinte: 

1 - Tendo o cabeça de casal declarado a inexistência de testamento efetuado pelo inventariado, a afirmação da sua existência e a sua junção aos autos de inventário por outro interessado é ainda possível após o decurso do prazo para impugnação daquelas declarações, atento o disposto no art.º 568.º, alínea d), do C. P. Civil.

2 - Apresentado o testamento, se for questionada a capacidade do testador, a apreciação dessa questão permite a aplicação do disposto no art.º 1092.º do C. P. Civil e não o disposto no art.º 1093.º do mesmo diploma.

3 - Não pretendendo qualquer dos interessados questionar a validade desse testamento, como expressamente afirmaram, não podem os autos de inventário prosseguir sem que tal testamento seja considerado.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as de saber se pode ordenar-se a remessa dos interessados para os meios comuns tendo em vista a apreciação da questão relativa à validade / invalidade do testamento, intimando-se as partes a propor a ação respetiva e, na ausência de tal propositura, determinar o prosseguimento dos autos sem que o testamento junto e realizado por um dos inventariados seja considerado nos termos da partilha a realizar.

III - Do objeto do recurso:

A apreciação da questão suscitada nestes autos de recurso de apelação exige que este Tribunal reflita sobre duas questões prévias.

A primeira prende-se com natureza do despacho proferido em 06/03/2024 e que motivou a apresentação da apelação.

Ao determinar o prosseguimento dos autos, este despacho, embora de forma claramente implícita, fez cessar a suspensão da instância determinada por despacho de 02/12/2023, tendo ainda esclarecido em que termos é que tal prosseguimento se faria, desconsiderando o testamento apresentado pela interessada recorrente. [...]

A segunda questão prévia que cumpre esclarecer é que o Tribunal a quo não se pronunciou diretamente sobre a questão da tempestividade da apresentação do testamento e, com esta, sobre a tempestividade da impugnação das declarações do cabeça de casal (este declarou que o inventariado não tinha deixado testamento e a interessada recorrente veio alegar, para além do prazo de impugnação daquelas declarações, que este existia, juntando-o e alegando factos relativos à tempestividade da sua junção, sobre os quais nenhum despacho recaiu).

Porém, a partir do momento em que o Tribunal entendeu como relevante para estes autos a existência do testamento, remetendo as partes para os meios comuns e suspendendo a instância, ainda que a termo, para que se apreciasse a sua validade / invalidade, também de forma implícita e embora sem qualquer fundamentação estava a atende-lo para a tramitação destes autos. [...]

É inequívoco que, quando foi apresentado, já havia decorrido o prazo para que a interessada EE apresentasse impugnação às declarações apresentadas pelo cabeça de casal na parte em que este declarou inexistir testamento outorgado pelo inventariado (art.º 1104.º, n.º 1, alíneas c), do C. P. Civil).

É também inequívoco que a falta de impugnação das suas declarações tem hoje, no processo de inventário, efeito preclusivo.

Uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar uma única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, em face dos factos alegados no requerimento inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, incluindo a pronúncia sobre as suas declarações e sobre os documentos apresentados. Tal corresponde a um verdadeiro ónus e não uma mera faculdade”, nas palavras de António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 603. Neste sentido, vide também o recente Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 16/05/2024, da Juiz Desembargadora Fernanda Proença Fernandes, proc. 172/22.3T8CBT-A.G1, in www.dgsi.pt 

Dir-se-ia assim que a requerente EE não estava já em tempo quando colocou em causa as declarações do cabeça de casal quanto à inexistência de testamento realizado pelo inventariado.

No entanto, resulta da lei que este efeito preclusivo tem como exceções o disposto no art.º 568.º do C. P. Civil. Ora, a inexistência de testamento apenas pode ser demonstrada por documento escrito, ou seja, por certidão emitida pela Conservatória dos Registo Centrais, pois que a esta compete organizar um índice geral de testamentos, por ordem alfabética dos nomes dos testadores, com base nas fichas recebidas dos Cartórios (art.º 188.º, n.º 1, alínea a), do DL 207/95, de 14/08, com acesso on line nos termos da Portaria 182/2017, de 31/05). [...]

A aplicação do regime do disposto no art.º 588.º do C. P. Civil resulta do regime do art.º 549.º, n.º 1, do mesmo diploma e é expressamente admitida por António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 606. 

Assim, a alegação deste novo facto constitutivo do direito da reclamante seria ainda admissível se este fosse de conhecimento superveniente, como esta alegou.

O cabeça de casal insurgiu-se contra esta alegação, afirmando que esta deveria ter encetado as buscas para localizar o testamento mais cedo. Esta afirmação não colhe, pois que, desde o início destes autos, se apresentou ele próprio como cabeça de casal, sendo suas as declarações que deram início a estes autos e, assim, era a ele que competia ter efetuado essa busca e não à interessada EE, ainda que seja ela a única beneficiária do testamento.

O regime da admissibilidade do articulado superveniente permitiria pois, se de outra forma não pudesse ser considerado, que a interessada apresentasse o testamento outorgado pelo inventariado, dessa forma infirmando as declarações do cabeça de casal quanto à sua inexistência.

Aqui chegados, centremo-nos na questão efetivamente em discussão.

Existe fundamento para remeter as partes para os meios comuns, prosseguindo os autos como se o testamento não existisse?

A decisão proferida não tem qualquer sustentação jurídica.

Em primeiro lugar, porque não se verificavam os pressupostos do art.º 1093.º do C. P. Civil.

Alegando uma das interessadas que existia um testamento que a tornava herdeira da quota disponível da herança do inventariado e afirmando o cabeça de casal a sua invalidade por falta de capacidade daquele testador, a dimensão dos direitos sucessórios de cada um dos herdeiros deste inventariado dependia da validade ou invalidade daquele testamento.

E, assim, a norma aplicável é o art.º 1092.º do C. P. Civil e não o art.º 1093.º do mesmo diploma que foi convocado.

Dispõe a primeira norma citada que se na pendência do inventário se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos interesses diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, deve o juiz determinar a suspensão da instância.

A remessa para os meios comuns está reservada, apenas, para outras questões prejudiciais que não respeitem à admissibilidade do processo de inventário ou à definição de direitos dos interessados na partilha, como resulta expressamente do art.º 1093.º do C. P. Civil.

Como dizem António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 576, relativamente a este art.º 1092.º do C. P. Civil, “a conexão com o art.º 1093.º permite concluir que qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados diretos na partilha terá de ser decidida no próprio processo, não podendo os interessados ser remetidos para os meios comuns. A lei apenas concede a possibilidade de suspensão da instância do inventário, aguardando o que, com eventuais reflexos na resolução de tais questões, esteja sob discussão noutra ação pendente”. 

Ora, a questão da validade ou invalidade do testamento reporta-se à definição dos direitos interessados na partilha (saber se há ou não que considerar que a quota disponível da herança do inventariado pertence à interessada EE). A ação que versa sobre a anulação do testamento é precisamente um dos exemplos dados pelos autores citados para o preenchimento da alínea b) do n.º 1 do art.º 1092.º do C. P. Civil.

Assim, apenas se poderia ter perspetivado a possibilidade de suspensão da instância e não a remessa das partes para os meios comuns.

Mas ainda que assim não fosse, uma segunda razão imporia decisão diversa daquela que foi tomada, quanto ao prosseguimento dos autos.

Admitamos que se consideraria correta a remessa das partes para os meios comuns, sabendo o Tribunal que nem o cabeça de casal, nem a reclamante pretendiam instaurar, nos meios comuns, a ação em que se discutiria a validade / invalidade do testamento.

Ora, estando junto o testamento, tendo o Tribunal determinado o prosseguimento dos autos, por decisão que não foi colocada em crise por qualquer das partes, tal prosseguimento implica necessariamente que os autos prossigam considerando o testamento que foi efetuado pelo inventariado e que não foi anulado por falta de capacidade do testador, a partir do momento em que foi já declarado que os interessados que beneficiariam dessa anulação não têm interesse em obtê-la.

Não tem nos autos aplicação o disposto no art.º 1105.º, n.5, do C. P. Civil, pois que não está em causa uma reclamação quanto aos bens a partilhar. Só aqui é que, quando as partes são remetidas para os meios comuns relativamente à existência de determinados bens, a partilha prossegue quanto aos demais bens, excluindo-se aqueles sobre os que há discussão.

Pensamos que foi este o raciocínio feito no despacho aclarador, sem consistência lógica ou jurídica, pois que não sendo discutida nos meios comuns a invalidade do testamento, este tem naturalmente que se pressupor válido (e não pode ser, sem mais, excluído do inventário).

Não tendo sido colocada em causa a decisão que declarou a suspensão da instância e determinou a sua cessação (ainda que implícita), pois que nenhuma das partes reagiu quanto a tal decisão, apenas há que apreciar se os autos devem prosseguir e em que termos, não podendo a decisão deixar de ser afirmativa, perante a posição assumida pelo cabeça de casal de não pretender impugnar em ação autónoma o testamento realizado pelo inventariado.

E, prosseguindo, sem que seja proposta ação visando questionar a capacidade do testador, os autos terão de prosseguir pressupondo o testamento realizado pelo inventariado e tempestivamente apresentado nos autos."

[MTS]