Sociedade unipessoal;
óbito do sócio; mandato forense
I. O sumário de RL 3/12/2024 (2402/23.5T8VNG.L1-7) é o seguinte:
1. O óbito do sócio de uma sociedade unipessoal não tem efeitos sobre a instância integrada pela sociedade (e não pelo seu sócio único).
2. O óbito do gerente de uma sociedade unipessoal não tem efeitos sobre o contrato de mandato forense nem sobre a procuração outorgada pela sociedade.
3. O óbito do gerente de uma sociedade unipessoal pode colocar um problema de representação da sociedade em juízo, a ser resolvido nos quadros do art.º 25.º do Cód. Proc. Civil.
4. A iniciativa da regularização da representação da sociedade em juízo, quando não exista quem a represente, é oficiosa, por força do disposto no n.º 2 do art.º 6.º do Cód. Proc. Civil.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Efeitos da morte do sócio único
Pelo Decreto-Lei n.º 257/96, de 31 de dezembro, foi introduzido no Código das Sociedades Comerciais o regime das sociedades unipessoais por quotas (arts. 270.º-A a 270.º‑G). Estabelece o art.º 270.º-G do Cód. Soc. Comerciais que [à]s sociedades unipessoais por quotas aplicam-se as normas que regulam as sociedades por quotas, salvo as que pressupõem a pluralidade de sócios.
Resulta da ressalva final desta norma – e da natureza da sociedade unipessoal – que a este tipo de sociedades não é aplicável o disposto nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Soc. Comerciais (transmissão da quota por morte). Este regime pressupõe a pluralidade de sócios.
Em caso de morte do sócio único, vale, sim, imediatamente, o regime da transmissão de direitos previsto no Código Civil respeitante ao “chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam” – art.º 2024.º e segs. do Cód. Civil. Sendo vários os chamados à sucessão mortis causa, releva, ainda, subsequentemente, o disposto no art.º 222.º e segs. do Cód. Soc. Comerciais (direitos e obrigações inerentes a quota indivisa).
Afigura-se-nos, pois, assentar num equívoco a convocação na decisão apelada da, assim apelidada, triple option (art.º 225.º do Cód. Soc. Comerciais). Por força da unipessoalidade na detenção da totalidade das participações sociais, em caso de morte do sócio único, inexiste outro caminho que não seja a simples vocação sucessória – sendo que, por exemplo, uma eventual dissolução voluntária resultará já de uma ulterior decisão do sucessor.
A sociedade parte na ação não é o objeto mediato da relação material controvertida, mas sim um seu sujeito – no caso, o sujeito passivo. Este objeto também não é, no vaso, integrado pelas respetivas participações sociais. O mesmo é dizer que a transmissão das participações sociais na pendência da instância, seja inter vivos, seja mortis causa, não constitui uma transmissão “da coisa ou direito em litígio” (art. 356.º do Cód. Proc. Civil).
Da personificação do ente coletivo resulta que o óbito do titular das participações sociais na pendência da causa (na qual não seja demandante nem demandado) mais não é do que o óbito de um terceiro, relativamente à instância processual, por ele não integrada. Podemos, pois, concluir que a morte do sócio único não tem nenhuma repercussão sobre a instância processual.
1. Efeitos sobre a representação da sociedade em juízo
Convém sublinhar que na decisão apelada se entrecruzam duas questões distintas, devendo estas ser apartadas. Referimo-nos à representação da sociedade em juízo (art.º 25.º do Cód. Proc. Civil) e à regularidade do mandato forense (art.º 48.º do Cód. Proc. Civil).
Por um lado, perante a morte de uma pessoa física relacionada com o ente coletivo, podemos enfrentar um problema de representação da sociedade em juízo (e fora dele). Por força do n.º 1 do art.º 25.º do Cód. Proc. Civil, “as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem”. Acrescenta o seu n.º 2 que, “[s]endo demandada (…) sociedade que não tenha quem a represente (…), o juiz da causa designa representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respetiva representação em juízo”.
No entanto, em rigor, apenas releva aqui a morte do gerente, e não a morte do sócio único. São estas qualidades diferentes, podendo caber a pessoas diferentes (art.º 270.º-E, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais).
Assim, se, no caso dos autos tiver falecido uma pessoa relacionada com a ré, apenas haverá inicialmente que apurar se era, ou não, gerente da sociedade – e já não, num primeiro momento, se era o detentor das participações sociais. Apenas no caso de o falecido ser o gerente (único), será o óbito processualmente relevante.
Num segundo momento, constatando-se que o gerente falecido era também o sócio único, esta coincidência já assumirá relevância sucedânea, não por força da titularidade das participações sociais, mas sim por força do deferimento da gerência ope legis previsto no art.º 253.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Haverá, então, que respeitar o regime previsto no art.º 25.º do Cód. Proc. Civil, acima referido, referente à representação em juízo da sociedade (que não tenha quem a represente).
2. Efeitos sobre o patrocínio forense
Por outro lado, como segundo e distinto problema a enfrentar, podemos questionar-nos sobre os efeitos do óbito do gerente sobre os contratos em que a sociedade seja parte, quer de natureza estritamente patrimonial, como os contratos de fornecimentos de bens e serviços, quer de natureza intuitu personae, como os contratos de trabalho ou de mandato. Na resposta a dar a esta questão, e no que para o caso releva, recuperamos aqui o que acima adiantámos – a morte do sócio único não tem nenhuma repercussão sobre a instância processual – e acrescentamos agora que a morte do gerente também a não tem, em matéria de subsistência do contrato de mandato forense (art. 40.º e segs. do Cód. Proc. Civil).
Conforme se sintetiza no Ac. do TRE de 25-09-2008 (2011/08-2), num aresto desenvolvido sobre a cessação das funções de administrador, mas que se aplica sem ressalvas ao termo das funções de gerente, incluindo por morte:
“I – Outorgada procuração forense por administradores de sociedades que, entretanto, cessaram tais funções, tal instrumento mantém-se válido e regular, nada impedindo a sua posterior utilização para legitimar o patrocínio do(s) advogado(s) a favor de quem ela foi outorgada.II – Com efeito, a relação que lhe serve de base não é o contrato de administração entre o titular do órgão e a sociedade, mas o contrato de mandato e só cessando este é que se extingue a procuração.III – Enquanto o mandato é um contrato pelo qual alguém se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outrem, a procuração é o ato unilateral pelo qual alguém atribui a outrem poderes representativos, legitimando-o à prática de atos em seu nome e para produzirem efeitos na sua esfera jurídica.IV – A procuração é assim um meio ou instrumento de execução do mandato.V – Por força da representação orgânica, a vontade manifestada pelos administradores é a vontade da sociedade e não a deles próprios, como representantes da sociedade; logo, tal vontade subsiste válida, eficaz e regular, ainda que eles cessem, por qualquer motivo, as respetivas funções”.
Deste raciocínio se estrai, ainda, serem absolutamente improcedentes as considerações desenvolvidas pelo tribunal a quo em torno da anterior renúncia da gerente que, em representação da sociedade, havia outorgado o mantado forense e constituído procuradores os atuais patronos da ré. A este respeito, na decisão recorrida pode ler-se:
“No entanto, estabelece o art.º 265.º, 1, do CC que entre outras, a procuração extingue-se quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base.
“Ora, no caso dos autos e atento a que houve uma renúncia à gerência da sociedade, já não sendo a outorgante da procuração inicial a legal representante da sociedade Ré, sendo que já nem sócia é, parece claro que a procuração outorgada por esta ao advogado signatário da petição inicial, se extinguirá uma vez que a relação jurídica em causa nestes autos e que serviu de base à outorga da referida procuração cessou”.
O raciocínio desenvolvido pelo tribunal a quo assenta num manifesto equívoco. A relação jurídica que serviu de base à outorga da procuração não foi a relação de gerência ou representação orgânica da sociedade – intercedente entre esta e a gerente que renunciou. A relação jurídica que serviu de base à outorga da procuração foi, sim, o contrato de mandato forense (arts. 4.º, n.º 2, e 5.º da Lei n.º 10/2024, de 19 de janeiro, e 67.º do EOA) – ou mandatos (art. 1160.º do Cód. Civil). Ora, este contrato – entre a mandante sociedade e os mandatários advogados – não cessou, designadamente, por caducidade, não se mostrando preenchida nenhuma das alíneas previstas no art. 1174.º do Cód. Civil."
[MTS]
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