Indeferimento liminar;
contraditório; decisão-surpresa*
I. O sumário de RL 3/12/2024 (9984/22.7T8SNT.L1-7) é o seguinte:
1. A circunstância de uma decisão poder ou dever ser proferida liminarmente, isto é, antes da citação do demandado, não obsta a que o tribunal ouça o demandante, parte contra a qual decide, sobre a questão objeto da sua pronúncia, na satisfação do disposto no n.º 3 do art.º 3.º do Cód. Proc. Civil.
2. A “manifesta desnecessidade” (art.º 3.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) de oferecimento do contraditório prévio à decisão de uma questão com influência “no exame ou na decisão da causa” é de verificação (ocorrência) absolutamente excecional.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2. Prolação de uma decisão-surpresa, em concreto
No caso dos autos, verificamos que o tribunal a quo não convidou o exequente a, querendo, se pronunciar sobre a questão que levou à extinção da execução. Não obstante, estamos perante uma matéria complexa, que se desenvolve por vários níveis.
Por um lado, pode ser discutido se o vício invocado é de conhecimento oficioso. Por outro lado, não é líquido que o procedimento de injunção nunca pode visar a cobrança de créditos ressarcitórios. Finalmente, não é seguro que o uso indevido do procedimento de injunção quanto a um dos créditos determine a extinção da execução relativamente aos restantes créditos. Se a apreciação da primeira questão referida se pode considerar abrangida pela ressalva prevista no n.º 3 do art.º 3.º do Cód. Proc. Civil – “salvo caso de manifesta desnecessidade” –, o mesmo já não será de dizer da apreciação das restantes.
2.1. Recurso à injunção para o exercício de responsabilidade civil contratual
Quanto à segunda questão enunciada, cobra aqui relevo notar que o poderoso e (quase) incontroverso entendimento de acordo com o qual os “procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos” previstos no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, não são apropriados à formulação de pedidos de indemnização (responsabilidade civil contratual) cede, com estrondo, sob uma leve pressão da realidade jurídica. Com efeito, é incontroverso, parece-nos, que o pedido de pagamento de juros moratórios – e não apenas remuneratórios contratualmente estipulados – é admissível nestes procedimentos. Ora o juro moratório não é coisa diferente de uma indemnização (responsabilidade civil contratual) pelo dano resultante do atraso culposo no cumprimento da obrigação – isto é, por uma forma de incumprimento pontual da obrigação. Se assim não se entender, isto é, se se obrigar o credor a instaurar uma diferente ação para reclamar uma indemnização pelo mero atraso no cumprimento da a obrigação – pedindo o pagamento de juros moratórios –, de pouco servirão, na prática, os referidos procedimentos.
Somos, pois, obrigados a concluir que não é exato afirmar, sem mais, que os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 269/98 não são apropriados para a formulação de (nenhum) pedido de natureza ressarcitória, fundado em responsabilidade civil contratual. Aliás, parece decorrer diretamente do regime aprovado por este diploma legal que a reclamação de tais juros tem cabimento nestes procedimentos – cfr. os arts. 10.º, n.º 2, al. e), 13.º, n.º 1, al. d), 18.º e 21.º, n.ºs 2 e 3, do regime referido.
Poder-se-ia dizer que este dano moratório tem a particularidade de ser legalmente liquidado com base numa taxa fixada por um ato normativo, previamente conhecida. No entanto, nada no regime em análise permite concluir que apenas o juro moratório legal está abrangido pelas referidas normas, e já não o juro convencionalmente fixado (art.º 806.º, n.º 2, do Cód. Civil).
Ainda assim – reconhecendo-se a possibilidade de reclamação de juros moratórios convencionados –, poder-se-á dizer que a taxa contratualmente fixada também é previamente conhecida, permitindo uma liquidação manifestamente simples. Mas se assim se deve entender, como inquestionavelmente se deve, cabe perguntar por que razão se recusa a possibilidade de reclamar o pagamento de uma cláusula penal por via de um destes procedimentos, quando a fixação de um juro moratório convencional mais não é do que a fixação de uma clausula penal ressarcitória (e, ou, compulsória) pelo mero atraso na satisfação da obrigação pecuniária.
Ainda sobre a adequação destes procedimentos à formulação de uma pretensão ressarcitória, constata-se que os arts. 7.º e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, permite que neles seja pedida uma “indemnização pelos custos de cobrança da dívida”. Movimentamo-nos aqui, obviamente, nos quadros da responsabilidade civil contratual.
Não é irrelevante, todavia – e sem querer aprofundar a discussão, deslocada na economia deste aresto –, a circunstância de, também aqui, estarmos, por regra, perante um valor facilmente liquidável, quando se pretenda obter o montante prévia e legalmente fixado (€ 40,00). Dizemos “por regra”, pois não é seguro que que resulte da lei que a “indemnização superior correspondente” referida no primeiro artigo mencionado não possa ser reclamada por meio de um procedimento de injunção, nos termos previstos no segundo artigo referido.
Não é, pois, evidente e incontroverso que seja inadmissível a cobrança de um crédito estabelecido por uma cláusula penal, quando o seu valor é fixo (invariável) ou resulta da mera aplicação de uma taxa fixa (invariável) sobre o valor da obrigação pecuniária (prestação contratual) em dívida.
2.2. Possibilidade de aproveitamento parcial do título executivo
No que toca à terceira questão a enfrentar, a controvérsia justificativa da prévia audição da parte pode ser evidenciada mediante a mera invocação dos Acs. do TRL de 10-09-2024 (13136/21.5T8SNT.L1), desta 7.ª Secção, e do TRP de 08-11-2022 (901/22.5T8VLG-A.P1), este até mencionado na decisão impugnada. Nestes arestos é claramente admitido o prosseguimento parcial da execução, baseada num requerimento de injunção executório, depois de extinta a instância na parte referente à exigência da satisfação de uma cláusula penal, para cobrança dos outros créditos titulados.
2.3. Inexistência de “manifesta desnecessidade” de oferecimento do contraditório
Podemos aceitar que, em determinados casos, a decisão de uma questão com influência “no exame ou na decisão da causa” (usando-se aqui a fórmula enunciada no art.º 195.º do Cód. Proc. Civil) pode ser subsumida à citada ressalva aberta no enunciado do n.º 3 do art.º 3.º do Cód. Proc. Civil (“manifesta desnecessidade” de oferecimento do contraditório) – por exemplo, na demanda de uma sociedade extinta ou na instauração de uma ação de divórcio perante um juízo do comércio. No entanto, estes casos constituem a exceção, e não a regra.
Deve, pois, ser reiterada a jurisprudência desta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa sobre esta questão, concluindo-se que estamos perante um caso de violação da proibição de prolação de decisões-surpresa. Em suma, “a prolação de decisão de rejeição da execução, nos termos previstos no art.º 734.º do Cód. Proc. Civil, sem prévia audição das partes, configura uma decisão-surpresa” – cfr. os Acs. do TRL de 22-10-2024 (5757/24.0T8SNT.L1-7) e de 26-09-2023 (7165/22.9T8LSB.L1-7).
3. Efeitos da violação da proibição da prolação de decisões-surpresa
No enquadramento desta ilegalidade no art.º 615.º do Cód. Proc. Civil, sustentam uns ocorrer uma omissão de pronúncia, enquanto outros apontam para um excesso de pronúncia. Outros, ainda, sustentam que a ilegalidade presente na decisão-surpresa resulta da sua contrariedade a um princípio ou norma de ordem superior, a justificar, pela sua gravidade, a aplicação do art.º 615.º ao caso (nele não previsto), assim se abrindo as portas da apelação. Finalmente, há também quem sustente que estamos aqui perante um error in judicando em matéria de direito adjetivo – sobre estes enquadramentos, cfr. Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, «As outras nulidades da sentença cível», Julgar Online, setembro de 2024.
No enquadramento desta ilegalidade no art.º 615.º do Cód. Proc. Civil, sustentam uns ocorrer uma omissão de pronúncia, enquanto outros apontam para um excesso de pronúncia. Outros, ainda, sustentam que a ilegalidade presente na decisão-surpresa resulta da sua contrariedade a um princípio ou norma de ordem superior, a justificar, pela sua gravidade, a aplicação do art.º 615.º ao caso (nele não previsto), assim se abrindo as portas da apelação. Finalmente, há também quem sustente que estamos aqui perante um error in judicando em matéria de direito adjetivo – sobre estes enquadramentos, cfr. Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, «As outras nulidades da sentença cível», Julgar Online, setembro de 2024.
Tal como enfatizou Miguel Teixeira de Sousa, o essencial é que se perceba que o vício presente se situa na própria pronúncia, e não a montante dela, devendo a decisão ser atacada por via de recurso (quando seja recorrível) – cfr. o comentário «“As outras nulidades da sentença cível” – resposta a uma crítica», de 27 de setembro de 2024, publicado no Blog do IPPC.
O mesmo é dizer que, não sendo viável a intervenção deste tribunal em regime de substituição (art.º 665.º do Cód. Proc. Civil), por nunca ter sido proporcionado o contraditório devido à exequente – nunca se tendo esta pronunciado espontaneamente, designadamente, sobre a admissibilidade da cobrança de uma cláusula penal por meio de um procedimento de injunção –, nada mais resta do que revogar a decisão apelada e ordenar que a decisão a proferir sobre a questão seja precedida do oferecimento do contraditório à exequente – contraditório que agora, tendo sido entretanto citada a executada, a esta se deve estender."
*III. [Comentário] Cabe apenas assinalar que o sumário (talvez não elaborado pelo Relator) vai além do que consta do acórdão. Cabe notar, por exemplo, que o "absolutamente" que se encontra no n.º 2 do sumário não tem correspondência no texto do acórdão.
MTS