"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/12/2014

Jurisprudência (52)


Concessão de exequatur; violação da ordem pública

1. É o seguinte o sumário de STJ 20/11/2014 (7614/12.4TBCSC.L1.S1):

"I - Uma sentença é nula, por falta de fundamentação de facto, quando a decisão concretamente tomada não se encontre assente em factos apresentados pela própria decisão, directamente ou por remissão.

II - Quer no domínio da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de 27-09-1969, quer no domínio do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22-12-2000, a jurisprudência do TJUE tem afirmado, de forma uniforme, que a excepção de contrariedade à ordem pública, como fundamento de recusa de concessão do exequatur, tem de ser interpretada restritivamente, só procedendo em circunstâncias excepcionais de violação manifesta de um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido. 

III - Só se a execução da decisão – e não a decisão, em si mesma – violar manifestamente um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido é que se justificará essa recusa. 

IV - Pode constituir fundamento de recusa de exequatur a violação manifesta do princípio do processo equitativo, enquanto princípio integrante da ordem pública processual. 

V - Não é causa de recusa de exequatur a alegação de violação de normas ou princípios processuais que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, ou em via de recurso, de forma a que pudesse ter sido corrigida. 

VI - Não tem fundamento a afirmação de que é da ordem pública processual do Estado português que, num processo civil em que as partes estão representadas por advogado, e em que os representantes de uma das partes não entendem a língua do processo mas são assistidos por um intérprete devidamente credenciado para o efeito, quando são chamados a depor em audiência, incumba ao juiz garantir mais do que essa possibilidade de intervenção do intérprete. 

VII - É condição de igualdade na produção da prova que, se as declarações das partes relevam como meio de prova, ambas compreendam as perguntas que lhes são feitas e os depoimentos com que são confrontados. 

VIII - Se a parte está representada por advogado, é assistida por intérprete formalmente credenciado e não suscita perante o tribunal a incapacidade concreta do tradutor, não pode vir a fazê-lo posteriormente, para impedir a concessão de exequatur à sentença que se encontre pendente de recurso. O mesmo se diga quanto aos depoimentos das testemunhas. 

IX - Ainda que se provassem os factos alegados pela recorrente, não se poderia ter como preenchida a excepção de violação da ordem pública do Estado Português. Não se justifica assim a ampliação da matéria de facto."

2. Da fundamentação do acórdão retira-se a seguinte passagem: 

"– Quer no domínio da Convenção de Bruxelas I, quer quanto ao Regulamento (CE) n.º 44/2001, a jurisprudência do TJUE tem afirmado uniformemente que a excepção de contrariedade à ordem pública tem se ser interpretada restritivamente, só devendo proceder em circunstâncias excepcionais. Assim, apenas como exemplo, cfr. os acórdãos de 28 de Março de 2000, proc. C-7/98, caso Dieter Krombach vs. André Bamberski, quanto à Convenção, e os acórdãos de 28 de Abril de 2009, proc. nº C-420/07, caso Apostolides vs.Orams e de 6 de Setembro de 2012, proc. n.º C-619/10, caso Trade Agency Ltd. Vs Seramico Investments, Ltd, para o Regulamento. Como se escreveu no acórdão de 28 de Abril de 2009, 54. Nos termos do artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento n.° 44/2001, uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido. O artigo 45.°, n.° 1, do mesmo regulamento prevê um caso idêntico de recusa do exequatur. 55. A título liminar, há que recordar que o artigo 34.° do Regulamento n.° 44/2001 deve ser objecto de interpretação estrita na medida em que constitua um obstáculo à realização de um dos objectivos fundamentais do referido regulamento (v. acórdãos de 2 de Junho de 1994, Solo Kleinmotoren, C‑414/92, Colect., p. I - 2237, n.° 20; de 28 de Março de 2000, Krombach, C‑7/98, Colect., p. I - 1935, n.° 21; e de 11 de Maio de 2000, Renault, C‑38/98, Colect., p. I - 2973, n. 26). Mais concretamente, a cláusula de ordem pública constante do artigo 34.°, ponto 1, do mesmo regulamento só deve ser usada em casos excepcionais (v. acórdãos de 4 de Fevereiro de 1988, Hoffmann, 145/86, Colect., p. 645, n.° 21; de 10 de Outubro de 1996, Hendrikman e Feyen, C - 78/95, Colect., p. I - 4943, n.° 23; Krombach, já referido, n.° 21; e Renault, já referido, n.° 26).”;

– Assim, só se a execução violar manifestamente um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido é que se justificará a recusa de exequatur: “O recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento n.° 44/2001, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante violem de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por infringir um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, essa infracção deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 37, e Renault, n.° 30).” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009 cit..;

– Essa norma ou princípio pode ser substantivo ou processual. No entanto, porque em caso algum se pode proceder a uma“revisão de mérito” (artigo 45º), o tribunal requerido não pode recusar o exequatur “com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo tribunal do Estado de origem e a que seria aplicada pelo tribunal do Estado requerido se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o tribunal do Estado requerido não pode controlar a exactidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo tribunal do Estado de origem (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 36, e Renault, n.° 29), devendo assumir que “o sistema de meios processuais existente” no Estado de origem “fornece aos particulares uma garantia suficiente” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009, cit.;

– Isto significa, nomeadamente, que, se tiver sido invocada contrariedade com a ordem pública processual, porque o processo concretamente seguido infringiu manifestamente normas ou princípios processuais fundamentais do Estado requerido, não é causa de recusa de exequatur a alegação de uma violação que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que julgou e ou em via de recurso, requerendo a respectiva correcção, e não o foi. A tanto obriga a confiança nas decisões dos outros Estados, em que assenta o sistema do Regulamento, e que exige que o sistema do Estado de origem tenha a oportunidade de corrigir uma hipotética incorrecção, antes de ser suscitada perante o Estado requerido em via de oposição ao exequatur.

3. Pode acrescentar-se o que foi afirmado por Teixeira de Sousa/Hausmann, in Brüssel I-Verordnung / unalex Kommentar (2012), § 34 15: "A reserva da ordem pública só deve ser utilizada em casos absolutamente excepcionais, de modo a não impossibilitar a circulação de decisões entre os Estados-membros. É por isso que, segundo o art. 34.º.n.º 1, o reconhecimento tem de contrariar manifestamente a ordem pública do Estado do reconhecimento. Sendo assim, nem toda a aplicação errada do direito do segundo Estado ou do direito europeu pode ser valorada como uma violação da ordem pública; antes é necessário que sejam violados princípios fundamentais ou normas essenciais de nível constitucional deste Estado ou que se verique um conflito com a cultura jurídica do Estado do reconhecimento. [...] Uma simples contradição com o direito nacional ou com o direito europeu não é suficiente para qualificar a decisão do tribunal de um outro Estado-membro como contrária à ordem pública."

MTS