"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/12/2014

Jurisprudência constitucional (19)




Aplicação no tempo do nCPC: títulos executivos forever? (5)


1. TC 3/12/2014 (847/2014) decidiu:

“Julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de julho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961 […].

Não é a primeira vez que a jurisprudência considera inconstitucional a aplicação imediata no novo regime dos títulos executivos a documentos anteriores à entrada em vigor do nCPC (cf. RE 27/2/2014 (374/13.3TUEVR.E1) e RE 26/3/2014 (766/13.8TTALM.L1-4); sobre o problema clicar aqui, aqui e aqui). É, no entanto, a primeira vez que o TC se pronuncia sobre a matéria.


2. A formulação de um juízo sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da aplicação imediata do elenco dos títulos executivos implica uma ponderação entre o que uma parte (o credor) perde com a desqualificação de um documento como título executivo e o que a outra parte (o devedor) ganha com essa desqualificação. Como é evidente, o credor perde a possibilidade de instaurar uma execução e o devedor liberta-se da sujeição à execução.

Neste quadro, seria de esperar que o acórdão tivesse ponderado estes dois interesses contrapostos, vindo a concluir – atendendo à declaração de inconstitucionalidade que profere – pela prevalência do interesse do credor sobre o interesse do devedor. A verdade é que não foi este o iter decisório do acórdão.

O acórdão não deixa de referir os interesses do devedor. Pronunciando-se sobre a justificação que acompanha a Proposta de Lei n.º 113/XII, o acórdão refere o seguinte:

“A medida legislativa em apreciação tem […] a virtualidade de libertar o executado da necessidade de se defender de atos de agressão da sua esfera patrimonial diante de execuções abusivamente instauradas, o que, sem prejuízo, do direito do exequente a instaurar execução com base no título executivo de que dispõe, também constitui direito merecedor de protecção à luz da Constituição”.

No entanto, com o fundamento de que “a questão de constitucionalidade que é suscitada não reside na limitação do elenco dos títulos executivos”, mas “na aplicação do novo elenco legal dos títulos executivos aos documentos constituídos no passado”, o acórdão acaba por concluir que “é […] no confronto entre o interesse público em evitar execuções injustas e o interesse particular em manter a força executiva do documento que titula o crédito que se joga a apreciação da proporcionalidade da solução encontrada”. Isto é: em vez de analisar o problema pela perspectiva de uma ponderação de interesses privados contraditórios, o acórdão prefere contrapor o interesse privado do credor em manter a possibilidade da execução ao interesse público em evitar execuções injustas. Neste enquadramento, o acórdão acaba por concluir que, como o regime processual civil contém várias soluções adequadas para combater a execução injusta, nada pode obstar ao sacrifício do devedor decorrente da “sobrevigência” do título executivo.

3. Não se pode acompanhar esta orientação do TC. Como seria de esperar, o processo civil português fornece soluções adequadas para frustrar uma execução injusta. O problema é, no entanto, o de saber se é exigível que o executado tenha de recorrer a essas soluções para obstar a uma execução injusta. Mais em concreto: o que se pode questionar é se se pode fundamentar a “sobrevigência” de um título executivo com o argumento de que, se execução for injusta, há soluções para obviar a essa execução.

Como se disse, a oposição que o acórdão devia ter ponderado não é aquela que se verifica entre o interesse privado do exequente em manter o título executivo e o interesse público na frustração das execuções injustas, mas aquela que existe entre o interesse privado do credor em poder recorrer à execução e o interesse do devedor em não ficar sujeito à execução. Repita-se: o que há a ponderar é o interesse do credor em usar a execução e o interesse do devedor em não estar sujeito a essa execução, não o interesse do credor em recorrer à execução e a possibilidade de o devedor frustrar a execução no caso de ela ser injusta. A utilização desta possibilidade para justificar a “sobrevigência” do título executivo traduz-se – é bom afirmá-lo – numa subordinação completa e irrestrita dos interesses do devedor aos interesses do credor.

Em contrapartida, visto o problema pela perspectiva dos interesses conflituantes do credor e do devedor -- que parece ser a única em que se pode situar a apreciação da questão –, parece difícil sustentar a inconstitucionalidade da aplicação imediata do novo elenco dos títulos executivos, dado que, até pelo princípio da igualdade (cf. art. 13.º CRP), a “sobrevigência” do título executivo não pode sobrepor-se à libertação do devedor da sujeição a uma execução.

É precisamente esta igualdade constitucional dos interesses do credor e do devedor (aliás, seria constitucional qualquer outra solução?) que assegura a constitucionalidade de qualquer opção do legislador ordinário. É por isso que tanto é constitucional aplicar – como, aliás, já aconteceu no passado – um novo elenco dos títulos executivos a documentos anteriores, como é constitucional aplicar uma restrição do elenco desses títulos a documentos constituídos anteriormente.

MTS