Aplicação no tempo do
nCPC: títulos executivos forever? (5)
1. TC
3/12/2014 (847/2014)
decidiu:
“Julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de
26 de julho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos
particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e
então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do
CPC de 1961 […].”
Não é a primeira vez que a jurisprudência
considera inconstitucional a aplicação imediata no novo regime dos títulos
executivos a documentos anteriores à entrada em vigor do nCPC (cf. RE 27/2/2014
(374/13.3TUEVR.E1)
e RE 26/3/2014 (766/13.8TTALM.L1-4);
sobre o problema clicar aqui,
aqui
e aqui).
É, no entanto, a primeira vez que o
TC se pronuncia sobre a matéria.
2. A formulação de um juízo sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade
da aplicação imediata do elenco dos títulos executivos implica uma ponderação
entre o que uma parte (o credor) perde com a desqualificação de um documento
como título executivo e o que a outra parte (o devedor) ganha com essa
desqualificação. Como é evidente, o credor perde a possibilidade de instaurar
uma execução e o devedor liberta-se da sujeição à execução.
Neste quadro, seria de esperar que o acórdão tivesse
ponderado estes dois interesses contrapostos, vindo a concluir – atendendo à
declaração de inconstitucionalidade que profere – pela prevalência do interesse
do credor sobre o interesse do devedor. A verdade é que não foi este o iter decisório do acórdão.
O acórdão não deixa de referir os interesses do devedor.
Pronunciando-se sobre a justificação que acompanha a Proposta de Lei n.º 113/XII,
o acórdão refere o seguinte:
“A medida legislativa em apreciação tem […]
a virtualidade de libertar o executado da necessidade de se defender de atos de
agressão da sua esfera patrimonial diante de execuções abusivamente
instauradas, o que, sem prejuízo, do direito do exequente a instaurar execução
com base no título executivo de que dispõe, também constitui direito merecedor
de protecção à luz da Constituição”.
No entanto, com o fundamento de que “a questão de constitucionalidade que é suscitada não reside na
limitação do elenco dos títulos executivos”, mas “na aplicação do novo elenco legal dos títulos executivos aos documentos
constituídos no passado”, o acórdão acaba por concluir que “é […] no confronto entre o interesse público
em evitar execuções injustas e o interesse particular em manter a força
executiva do documento que titula o crédito que se joga a apreciação da
proporcionalidade da solução encontrada”. Isto é: em vez de analisar o
problema pela perspectiva de uma ponderação de interesses privados
contraditórios, o acórdão prefere contrapor o interesse privado do credor em manter
a possibilidade da execução ao interesse público em evitar execuções injustas.
Neste enquadramento, o acórdão acaba por concluir que, como o regime processual
civil contém várias soluções adequadas para combater a execução injusta, nada
pode obstar ao sacrifício do devedor decorrente da “sobrevigência” do título
executivo.
3. Não se pode acompanhar esta orientação do TC. Como seria
de esperar, o processo civil português fornece soluções adequadas para frustrar
uma execução injusta. O problema é, no entanto, o de saber se é exigível que o
executado tenha de recorrer a essas soluções para obstar a uma execução injusta.
Mais em concreto: o que se pode questionar é se se pode fundamentar a “sobrevigência”
de um título executivo com o argumento de que, se execução for injusta, há
soluções para obviar a essa execução.
Como se disse, a oposição que o acórdão devia ter ponderado não
é aquela que se verifica entre o interesse privado do exequente em manter o
título executivo e o interesse público na frustração das execuções injustas,
mas aquela que existe entre o interesse privado do credor em poder recorrer à
execução e o interesse do devedor em não ficar sujeito à execução. Repita-se: o
que há a ponderar é o interesse do credor em usar a execução e o interesse do
devedor em não estar sujeito a essa execução, não o interesse do credor em
recorrer à execução e a possibilidade de o devedor frustrar a execução no caso
de ela ser injusta. A utilização desta possibilidade para justificar a “sobrevigência”
do título executivo traduz-se – é bom afirmá-lo – numa subordinação completa e
irrestrita dos interesses do devedor aos interesses do credor.
Em contrapartida, visto o problema pela perspectiva dos interesses
conflituantes do credor e do devedor -- que parece ser a única em que se pode
situar a apreciação da questão –, parece difícil sustentar a
inconstitucionalidade da aplicação imediata do novo elenco dos títulos
executivos, dado que, até pelo princípio da igualdade (cf. art. 13.º CRP), a “sobrevigência”
do título executivo não pode sobrepor-se à libertação do devedor da sujeição a
uma execução.
É precisamente esta igualdade constitucional dos interesses
do credor e do devedor (aliás, seria constitucional qualquer outra solução?) que assegura a
constitucionalidade de qualquer opção do legislador ordinário. É por isso que
tanto é constitucional aplicar – como, aliás, já aconteceu no passado – um novo
elenco dos títulos executivos a documentos anteriores, como é constitucional aplicar
uma restrição do elenco desses títulos a documentos constituídos anteriormente.
MTS