- a falta da causa de pedir ocorre nomeadamente quando se omitam os factos suficientes para apreender qual a concreta situação da vida que justifica a pretensão deduzida.
- já não existe falta de causa de pedir quando tais factos se aleguem, pese embora alguns deles revistam alguma generalidade ou falte a alegação de factos necessários à procedência da acção mas estes não impeçam aquela apreensão (identificação da causa de pedir).
- não existe falta de causa de pedir quando a A. alega que viveu em união de facto com o R. e criou com este estabelecimento (que atribui ao R.), no qual investiu dinheiro e trabalho, sem contrapartida, tendo-lhe sido vedado o acesso a tal estabelecimento.
- a falta de indicação do fundamento jurídico da acção (razões de direito) não constitui vício da petição inicial nem determina a sua ineptidão.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"3. Atendendo à alegação da A., esta particulariza os contornos essenciais da sua pretensão nos seguintes termos:
- viveu em união de facto com o R..- criou, com o R., e com dinheiro de ambos, um estabelecimento em ..., (em 2015), erigido em EIRL.- foi sempre a A. quem lidou com o negócio (alegando os factos concretos respectivos), não recebendo salário nem fazendo descontos.- o R. a partir de certa data não deixou a A. voltar ao estabelecimento.- ficou o R. com um estabelecimento montado com o investimento (dinheiro) e trabalho (que descreveu) da A., e que gera lucros.- ficou com medo por ter ficado sem nada (medo que persiste).- pretende que lhe sejam entregues metade dos lucros e património construídos desde a constituição do EIRL, entrega, no que ao património respeita, em que o pedido formulado permite apreender que se pretende metade do valor correspondente a tal património (tudo a fixar por perícia).- e indemnização por danos não patrimoniais (medo por ter ficado sem nada).
Parece, neste quadro, que não se pode falar em verdadeira falta de causa de pedir. Inexiste, obviamente, integral omissão da alegação. E também não se pode dizer que a caracterização seja tão genérica e vaga que fiquem indefinidos os contornos da situação. Ao invés, a situação da vida vem suficientemente concretizada, em dados suficientemente concretos e perceptíveis, com circunstancialismo temporal, dela constando os dados essenciais que, na perspectiva da A., sustentariam a sua pretensão (basicamente, a criação, no âmbito da união de facto e em conjunto com o R., de estabelecimento comercial de que o R. é titular, no qual a A. investiu sem contrapartida dinheiro e trabalho, e do qual o R. excluiu a A., estabelecimento este que dá lucro, considerando a A. que terá direito a metade do património e lucro do estabelecimento (---)). Poderá, em momentos, a alegação ser insuficiente, ou menos precisa, mas isso não exclui a existência de concreta e suficiente individualização da situação de vida relevante. O destinatário da alegação (o tribunal e a parte contrária) não teriam dificuldades em apreender o essencial da situação, e da correspondente pretensão, e do ponto de vista do caso julgado aquelas coordenadas de facto seriam bastantes para delimitar com precisão os efeitos da decisão que as apreciasse (permitindo evitar repetições de acções) (Caso julgado que é invocado por A. Geraldes (Temas da Reforma do processo civil, vol. I, Almedina 1998, pág. 209 nota 377), e seguido pelo STJ (Ac. de 11.11.2021, proc. 27384/13.8T2SNT-B.L2.S1, in 3w.dgsi.pt) como critério de aferição da existência de causa de pedir.).
Alguns dos elementos alegados poderão ser algo genéricos (por exemplo quanto à alegação da união de facto, ou à afirmação da existência de lucro) mas trata-se também de menções correntes na vivência comum, com suficiente lastro empírico na realidade para impedir que se lhe atribua a natureza de mera generalização ou abstracção, incapaz de valer como elemento identificador da causa de pedir. Aliás, e quanto ao lucro, e pese embora a asserção possa corresponder a resultados técnicos diversos, coincide em termos comuns na afirmação de um ganho proveniente da actividade do estabelecimento em causa, o que lhe aprece atribuir suficiente lastro na realidade comum. Assim, ainda que se pretenda que não poderão valer como verdadeiro facto (apesar daquele sentido comum das menções, especialmente quanto ao lucro, e da falta de impugnação), o que não pode é dizer-se que impedem a individualização da causa de pedir: serão sempre elementos de uma causa de pedir deficiente, e não meras abstracções indicadoras de uma causa de pedir omitida.
Outros elementos serão genéricos (a menção ao património postula uma concreta, mínima que seja, individualização, para se saber de que se fala; poderá justificar-se uma identificação mais precisa do EIRL, com localização que exceda a localidade). E poderão faltar elementos, como a efectiva alegação da cessação da união de facto, que fica subjacente à alegação (de algum modo nela implícita) mas que não é expressamente afirmada ou alegada (---) [cessação relevante desde logo porquanto é nesse momento que «cessa a fruição em comum dos bens adquiridos durante a união de facto com a participação de ambos os membros da união»].
Mas trata-se de deficiências que não obstaculizam a identificação e individualização de uma causa de pedir operante, ajustada às pretensões formuladas. Podem postular um aperfeiçoamento mas, salvo o devido respeito por opinião contrária, não autorizam o diagnóstico da omissão de causa de pedir. Ou podem até consistir em omissões impeditivas do sucesso da demanda, a terem-se por insupríveis, mas ainda aqui não obstaculizam a identificação a causa de pedir, reflectindo-se apenas sobre o mérito da causa.
Mesmo a afirmação, da decisão recorrida, de que não estariam minimamente concretizados quer a actividade quer os lucros da actividade em causa ou os danos morais sofridos, não se mostra concludente. Quanto aos danos morais, a alegação é concreta e suficiente, alegando a A. que teve (e tem) medo por ficar sem nada - nada mais se lhe exigia (já o relevo do que se alega é outra questão). A descrição da actividade desenvolvida consta da alegação da A. (art. 5 e 8 da PI). Pode ser tida por insuficiente, não se pode é tê-la por incapaz de contribuir para delimitar a causa de pedir. Quanto à forma como a A. obtém «os prejuízos que alega», que a decisão recorrida considera não ser perceptível, a petição inicial mostra-se, como já aludido, suficiente e compreensível: alegando a A. que o estabelecimento produzia lucros (ou seja, ganhos), afirma que, dado o seu investimento pessoal no âmbito da união de facto, lhe cabiam metade desses lucros. Os lucros não estão contabilizados mas essa é questão diversa, que se associa à formulação de pedido genérico, e que não contende com a existência, ou não, de alegação suficiente para concretizar a causa de pedir.
Nem importa que alguns dos dados deficientemente alegados possam ser qualificados como essenciais à procedência da pretensão pois, como se referiu, não é esse o critério da avaliação da falta de causa de pedir (Mesmo o carácter confuso da causa de pedir (que a decisão recorrida aborda, e que de qualquer modo não se vê que ocorra) parece conduzir a uma causa de pedir deficiente, não à sua falta (salvo caso de ininteligibilidade)).
4. A decisão recorrida apela também à falta de invocação pela A. de qualquer norma legal para suportar o seu pedido. E à falta de invocação do instituto do enriquecimento em causa (que associa à situação em causa), o qual não seria de conhecimento oficioso (não tendo sido invocado qualquer instituto jurídico para fundamentar a pretensão da A.).
Cabe, com efeito, ao autor expor, na petição inicial, as razões de direito que servem de fundamento à acção (citado art. 552º n.º1 al. d) do CPC). Não obstante, a omissão dessa alegação não tem qualquer efeito próprio, dada a circunstância legal de caber ao tribunal a livre fixação do regime aplicável (art. 5º n.º3 do CPC) (Dizendo-se, até, que segundo um princípio de exaustão, o tribunal tem o dever de esgotar todas as possíveis qualificações jurídicas dos factos alegados pelas partes (C. Mendes e T. de Sousa, Manual de processo civil, vol. II, AAFDL 2022, pág. 417) - liberdade de qualificação que justifica ainda que o caso julgado que se forme contemple todas essas possíveis qualificações). Pois se a indicação pela parte não vincula o tribunal, a omissão da indicação não pode ter efeitos preclusivos ou viciadores da PI. Por isso se diz que a indicação de direito não é essencial: não traduz qualquer nulidade ou irregularidade processual, «nem, muito menos, torna a petição inepta» (J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora 2007, pág. 273.). Afirmando-se também que a omissão apenas tem como efeito permitir ao tribunal adoptar livremente um fundamento jurídico (art. 5º n.º3 do CPC) sem que o autor possa invocar a nulidade da sentença, proferida sem prévia audição das partes, por usar norma não prevista pela parte (L. Freitas e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 2º, Almedina 2022, pág. 492.).
Por outro lado, cabe distinguir entre a qualificação da causa de pedir, na qual o tribunal é, como se disse, livre, por força do citado art. 5º n.º3 do CPC (desde que os factos necessários sejam alegados e exista uma correspondência com o efeito visado pelo pedido - e assim com a vontade da parte) (---), e a invocação a título de excepção de certo mecanismo jurídico (pois, aqui, cabe à parte invocar o mecanismo que dependa da sua vontade, atento o teor do art. 579º do CPC).
Por fim, é também dominantemente aceite (solução a que se adere) que a qualificação jurídica não integra a causa de pedir, pois esta integra factos concretos e não a norma, e por isso a qualificação jurídica dos factos é-lhes exterior (Assim, L. de Freitas, Da Falta da Causa de Pedir no Momento da Sentença Final de Embargos à Execução Titulada por Documento de Reconhecimento de Dívida, ROA 2018, pág. 746 ou Introdução ao processo civil, Gestlegal 2023, pág. 76, C. Mendes e T. Sousa, ob. cit., pág. 417.). É certo que a avaliação da suficiência ou essencialidade daqueles factos depende da norma cuja previsão pretendem preencher para assim alcançar o efeito visado pelo autor (efeito que deriva da estatuição da mesma norma). Mas isso apenas significa que a alegação deve permitir identificar a norma competente (Dizendo-se também que ocorre falta de causa de pedir se a alegação não permitir identificar o tipo legal aplicável (A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 656), trata-se de situação diversa: é a generalização ou indefinição da causa de pedir que impede a identificação da norma, e não a falta de indicação da norma, passível de identificação, que provoca a falta de causa de pedir.) e já não que a falta da alegação torna inconcludente ou omissa a causa de pedir. Isto sem prejuízo de, no limite, nada impedir o tribunal de, em caso de dúvida, se socorrer do regime do art. 7º n.º2 do CPC.
Mas mesmo deste ponto de vista, a própria decisão recorrida revela que a identificação dos regimes mobilizáveis não levanta realmente dúvidas, tendo apontado logo para o âmbito dos regimes aplicáveis à cessação da união de facto, âmbito este no qual acabou por se fixar especificamente no enriquecimento sem causa. [...]
7. Ainda como fundamento da ineptidão, a decisão recorrida afirma genericamente que a causa de pedir e o pedido são ininteligíveis. Esta ininteligibilidade ocorre quando a alegação ou o pedido se mostram incompreensíveis ou indecifráveis (ou também quando, quanto à causa de pedir, não se compreende a relevância dos factos para a individualização do pedido (T. de Sousa)). Também o carácter confuso ou ambíguo do pedido poderá corresponder a uma situação de ininteligibilidade quando não se admita a formulação de convite ao aperfeiçoamento do pedido (a admitir-se, o pedido será apenas deficiente por ser passível de correcção). Em suma, a ininteligibilidade remete para a impossibilidade de entender em que se baseia a pretensão ou para quando não é possível apreender a própria pretensão, não se percebendo qual o efeito jurídico proposto pela parte. O que se deixou exposto já revela que a causa de pedir é entendível e apreensível. E o mesmo ocorre quanto aos pedidos, dirigidos de forma clara a pagamentos, e pagamentos sujo sentido deriva com clareza da alegação: art. 15º da PI, quanto ao primeiro pedido (pagamento de metade do valor dos lucros do estabelecimento e do património do estabelecimento (---)), e art. 16º da PI quanto ao segundo pedido (compensação pelo medo alegado). São, no seu sentido, entendíveis e unívocos. Não se vê que ocorra, pois, qualquer ininteligibilidade.
8. Por fim, a decisão recorrida faz ainda referência à falta de justificação de dedução de pedido ilíquido. Independentemente do mérito da invocação, duas notas cabe realçar.
De um lado, a eventual ilicitude da formulação do pedido genérico corresponde a um vício processual distinto da ineptidão, para a qual não concorre. Desse modo, não intervém como fundamento da decisão recorrida, não servindo para a sustentar. De outro lado, tem sido admitido de forma prevalecente (embora não pacífica), mesmo ao abrigo do mais restritivo regime processual pregresso, que a dedução de pedido genérico fora das condições legais seria qualificável como uma excepção dilatória inominada, susceptível de sanação mormente através da formulação de convite ao aperfeiçoamento (V., para regimes anteriores, A. Geraldes Temas …. cit., pág. 172 e ss. ou Temas da Reforma do processo civil, vol. II, Almedina 1999, pág. 73, T. de Sousa, As Partes, O Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex 1995, pág. 128 ou A. Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Editora 1946, pág. 186, e, para o regime vigente, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 668 e Ac. do TRL de 15.02.2012, proc. 284/07.3TTLSB.L1-4; contra, Ac. do TRL de 13.02.2019, proc. 5931/18.9T8LSB.L1-4 (ambos em 3w.dgsi.pt).), o que impediria a que funcionasse logo como condição obstativa ao andamento da acção - convite que inexistiu no caso. Donde que não tenha relevo específico nesta sede.
9. Não existe, pois, a ineptidão da petição que justificou a absolvição da instância, pelo que não pode subsistir a decisão impugnada, devendo o processo prosseguir (sem que, pelos seus termos, se possa desde já substituir a decisão impugnada por uma decisão de mérito).
Quanto aos termos desse prosseguimento, anota-se que o regime da substituição, inerente ao recurso, está limitado pelo objecto do recurso e por isso incide apenas sobre os termos e alcance da decisão recorrida à luz do objecto do recurso. Por isso que caiba, em substituição, eliminar a absolvição da instância, com o inerente prosseguimento do processo, mas já não fixar os moldes em que este prosseguimento opera (v.g. aperfeiçoamento, ao menos quanto ao termo da união de facto), ponto não avaliado pelo tribunal recorrido e em relação ao qual este mantém integral poder de avaliação e decisão."
*3. [Comentário] Adere-se à posição referida na n. 15, do seguinte teor:
"Dizendo-se também que ocorre falta de causa de pedir se a alegação não permitir identificar o tipo legal aplicável (A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 656), trata-se de situação diversa: é a generalização ou indefinição da causa de pedir que impede a identificação da norma, e não a falta de indicação da norma, passível de identificação, que provoca a falta de causa de pedir."
[MTS]