I. A alegação de violação do caso julgado torna admissível o recurso de revista, prevalecendo sobre a dupla conformidade decisória; todavia, nos recursos de revista apenas admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado – formal ou material –, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça limita-se à verificação desse fundamento.II. A liquidação, processada como incidente, destina-se a fixar o objecto ou a quantidade da condenação proferida em termos genéricos.III. A condenação numa indemnização calculada segundo critérios de equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, não é uma condenação genérica, cujo montante careça de ser liquidado, mas uma condenação em quantia certa, cujo montante não pode ser averiguado com exactidão.IV. Se a sentença de condenação optou por remeter para liquidação a fixação do montante dessa condenação, nos termos previstos no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil, não pode a sentença proferida no incidente alterar o que ali foi decidido, nomeadamente fixando a indemnização segundo critérios de equidade. A opção por uma ou outra das duas vias obedece a pressupostos diversos.
V. Se o fizer, viola o caso julgado formado pela sentença que remeteu para liquidação a fixação do montante da condenação.
Adverte-se, todavia, que é jurisprudência assente no Supremo Tribunal de Justiça (fundada na forma como a al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil prevê a admissibilidade de recurso com fundamento em violação de caso julgado, mesmo quando o recurso não seria possível segundo os critérios gerais de admissibilidade) que, nos recursos de revista apenas admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado – formal ou material –, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça se limita à verificação desse fundamento (cfr., apenas como exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 190-A/1999.E1.S19, de 18 de Outubro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1) ou de 11 de Maio de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 60/08.6TBADV-2.E1.S1).
A revista interposta com este fundamento não se destina, por exemplo, a verificar o acerto ou desacerto com que a Relação decidiu (cfr., por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 1044/18.1T8VNF-A.G1.S1).
Independentemente de saber se ficou ou não precludido o recurso interposto ao abrigo da al d) do mesmo n.º 2, tendo em conta a não admissão do recurso de revista pela via normal, e considerando a limitação acabada de expor, sempre se diz, todavia, que não estaria preenchido o pressuposto de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 1087/14.4T8CHV.G1.S1, invocado pela recorrente como fundamento que justificaria o recurso (admitindo a hipótese de se poder invocar contradição com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ali não prevista, e sem questionar ). Basta ter em conta que, no caso, se trata de um incidente de liquidação, subsequente a sentença de condenação genérica (n.º 2 do artigo 358.º do Código de Processo Civil), e que a questão de saber se é possível o recurso à equidade, aqui, tem que ver com a relação que deve existir entre a sentença de cuja liquidação se trata e o acórdão recorrido – e não, como no acórdão de 10 de Dezembro de 2019, com a possibilidade de decidir o montante de uma indemnização segundo critérios de equidade.
Dito por outras palavras: aqui, a questão a resolver traduz-se em saber se o acórdão recorrido respeita o caso julgado formado pela sentença a liquidar.
De qualquer modo, diga-se ainda que não há contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça indicado como fundamento, como, aliás, observa a recorrida; ambos interpretaram e aplicaram o mesmo critério de que a equidade só é critério de fixação do montante que estiver em causa – da indemnização, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, da determinação do montante devido pelo depósito, no acórdão recorrido – quando não é possível chegar a uma quantia determinada.
7. Como se escreveu, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. 1554/04.8TBVNG.P1.S1, “A liquidação [processada como incidente, nos termos definidos pelos artigos 378º e segs. do Código de Processo Civil (…)] destina-se a “fixar o objecto ou a quantidade” da condenação proferida em termos genéricos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil” (actuais artigo 358.º e segs. do Código de Processo Civil e n.º 2 do artigo 609.º do mesmo Código), ou seja, quando “não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade” (mesmo n.º 2 do artigo 609.º). Assim, e a título de exemplo, cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 2024, www.dgsi.pt, proc. n.º 109671/17.1YIPRT.P1.S1.
A condenação numa indemnização calculada segundo critérios de equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, não é uma condenação genérica, cujo montante careça de ser liquidado, mas uma condenação em quantia certa, cujo montante não pode ser averiguado com exactidão (por danos não patrimoniais por exemplo, ou por danos futuros). Os requisitos de decisão segundo os dois critérios são diversos (cfr. citado acórdão de 30 de Setembro de 2010: “Se a sentença de condenação optou por remeter para liquidação a fixação do montante, nos termos previstos nesse nº 2 do artigo 661º, não pode a sentença proferida no incidente alterar o que ali foi decidido, nomeadamente fixando a indemnização segundo critérios de equidade. A opção por uma ou outra das duas vias obedece a pressupostos diversos, mas é seguramente feita na sentença que julga a acção”).
Sendo controverso – ou “não inteiramente incontroverso”, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 2024, www.dgsi.pt, proc. n.º 768/21.0T8VIS.C2.S1 – saber se, num incidente de liquidação posterior a uma sentença de condenação genérica, é admissível recorrer à equidade para fixar o montante da indemnização que estiver em causa, por não se ter conseguido chegar a um montante determinado, não obstante se terem percorrido todas as etapas legalmente previstas para o efeito – das quais se salienta a que consta do n.º 4 do artigo 360.º do Código de Processo Civil, que determina que o juiz complete oficiosamente “a prova produzida pelos litigantes”, “ordenando, designadamente, a produção de prova pericial”, como aqui sucedeu –, a verdade é que, no caso, cumpre proceder à interpretação da sentença em liquidação e, seguidamente, indagar se o acórdão recorrido é ou não conforme com a decisão ali proferida .Sendo desconforme, viola o caso julgado formal.
7. A parte decisória da sentença a liquidar encontra-se acima transcrita. Sabemos, todavia, que a interpretação de uma sentença, e, consequentemente, do alcance do caso julgado que se formou, não dispensa a consideração dos seus fundamentos. Como se desenvolveu no acórdão, já citado, de 23 de Novembro de 2023 (e em outras ocasiões, nomeadamente nas decisões ali citadas), podem relevar os antecedentes, o contexto e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1) e, como ali se chama a atenção, porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB).
Cumpre, assim, ter em conta o seguinte trecho da condenação e a respectiva fundamentação, que espelha os antecedentes e o contexto da decisão:
«Mais julgo a reconvenção deduzida pela Ré contra a Autora, parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente, condeno a Autora a pagar à Ré (…) e ainda, metade da quantia cuja fixação se remete para decisão ulterior, nos termos do disposto no artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, e que corresponder aos “usos da praça” nos termos do artigo 404º do Código Comercial, aplicáveis ao depósito cujas características constam das alíneas k) a m), p) e r) do ponto II.1., acrescida de juros de mora à taxa legal aplicável às operações comerciais contados desde 30.09.2015 sobre esse capital até integral e efectivo pagamento.»
Da leitura da sentença resulta que estes termos da condenação se devem a não ter ficado provado o preço acordado pelas partes para o depósito mercantil que se provou ter sido celebrado; e que, nessa eventualidade, o contrato se presume oneroso (artigo 404.º do Código Comercial), fixando-se então o preço devido segundo os “usos da praça em que o depósito houver sido constituído, e, na falta destes, por arbitramento” (cfr. artigo 404º do Código Comercial).”:
“O período do depósito situou-se temporalmente entre Julho de 2007 e Maio de 2015, sendo que as características do armazenamento constam das alíneas k) a m), p) e r) do ponto II.1.. No entanto, não foi possível determinar os “usos da praça” solicitados pela disposição citada do Código Comercial. Mas foi possível saber que a colocação das madeiras em depósito não servia apenas os interesses comerciais da Autora, servindo ainda os interesses da própria Ré depositante – cfr. alínea r), do ponto II.1. Não se tendo provado qual das partes que mais lucrou com o depósito, deve ser repartido por ambas o valor do mesmo, não devendo a Autora pagar à Ré mais do que metade do valor que for liquidado posteriormente em quantia cuja fixação se remete para decisão ulterior, nos termos do disposto no artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, e que corresponder aos “usos da praça” nos termos do artigo 404º do Código Comercial. À quantia liquidada nestes termos acrescerão juros de mora à taxa legal aplicável às operações comerciais contados desde 30 de Setembro de 2015 sobre esse capital até integral e efectivo pagamento”.
Tanto basta para se entender que, ao fixar o preço em questão segundo critérios de equidade, o acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela decisão a liquidar.
Deve assim ser revogado o acórdão recorrido e ser remetido o processo à Relação para que se fixe o referido preço e, na sequência dessa fixação, para que se calcule a compensação dependente dessa determinação. Recorde-se que na sentença a liquidar se fez depender os termos da compensação da liquidação do montante do preço: “Operando-se a compensação, nos termos do artigo 847º do Código de Processo Civil, julgo parcialmente extinto o crédito da Autora sobre a Ré no valor de € 62.582,77 (€ 279.159,52 - € 62.582,77) e no valor que resultar da liquidação supra determinada, condenando a Ré a pagar à Autora o remanescente (acrescido de juros de mora a contar desde 21.08.2015 sobre esta quantia, à taxa legal aplicável às operações comerciais, até integral e efectivo pagamento) ou, no caso do montante a liquidar, juntamente com a parte já líquida, exceder o crédito da Autora, condenando esta a pagar à Ré o excedente (acrescido juros de mora à taxa legal aplicável às operações comerciais contados desde 30.09.2015 sobre esse capital até integral e efectivo pagamento).”
Verificada nestes termos a violação de caso julgado, fica prejudicada a apreciação das nulidades arguidas.
Fica igualmente prejudicado o recurso de revista por via excepcional, uma vez que se revoga o acórdão recorrido."
[MTS]