"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/12/2023

Jurisprudência 2023 (64)


Dívida liquidável em prestações;
perda do benefício do prazo; co-obrigado; fiador*


1. O sumário de RL 30/3/2023 (16754/19.8T8SNT-B.L1-2) é o seguinte:

I - Nas situações de dívida escalonada ou liquidável em prestações, a falta de pagamento de uma das prestações acordadas, determina, nos quadros do art.º 781º, do Cód. Civil, a exigibilidade imediata das prestações vincendas, ou seja, a perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor;

II - tal perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor não ocorre ope legis, antes dependendo de expressa manifestação de vontade por parte do credor, que deverá proceder à sua interpelação, no sentido de proceder ao devido cumprimento, sob pena de imediata exigibilidade das prestações escalonadas;

III - a perda do benefício do prazo por parte do devedor principal não se estende, por regra, aos coobrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia – cf., o art.º 782º, do Cód. Civil -, donde, se for accionado, exemplificativamente, o fiador, este pode opor a excepção de inexigibilidade do crédito (fidejussório);

IV - o que não pode suceder relativamente ás prestações vencidas, em relação às quais não pode ser invocado o benefício do prazo, sendo que este só opera para as prestações futuras;

V - todavia, esta não extensão da perda do benefício do prazo aos garantes, quer pessoais quer reais, tem carácter ou natureza supletiva, podendo aqueles renunciar validamente ao benefício legalmente concedido, ou seja, podem os co-obrigados, nomeadamente os fiadores, desde logo, vincular-se à perda do benefício do prazo por parte do devedor principal, em detrimento da norma supletiva do art.º 782º, do Cód. Civil;

VI - tal vinculação de renúncia, constituindo um agravamento da sua posição, determina que aquela seja extraível do clausulado de forma expressa e inequívoca (de acordo com a percepção de um declaratário normal) e consonante com as exigências de forma previstas para a validade da declaração fidejussória;

VII - são claramente distintas a renúncia ao benefício da excussão prévia – cf., artigos 638º e 640º, alín. a), ambos do Cód. Civil - e a renúncia ao benefício do prazo, pelo que, inexistindo esta, o credor terá que aguardar o momento em que a obrigação normalmente se venceria;

VIII - o fiador deve igualmente ser interpelado pelo credor para a satisfação imediata da totalidade das prestações em dívida, de forma a obstar a realização coactiva da prestação;

IX - a não interpelação não deve ser confundível com a citação judicial efectuada em sede de execução para exigir o pagamento da totalidade da dívida, pois esta não permite ao fiador a oportunidade de pagar apenas as prestações vencidas, de forma a obviar à exigibilidade das vincendas;

X - tendo-se concluído pela inexistência de tal prévia interpelação admonitória ao fiador, resta aferir se a sua citação para a execução é susceptível de produzir alguns efeitos, nomeadamente substitutivos daquela interpelação não concretizada, de forma a concluir-se pelo vencimento da totalidade das prestações;

XI - sendo certo, contudo, que no plano da definição dos princípios, os efeitos da citação para os termos da execução, não tendo o valor nem a natureza da interpelação que era exigível, não é susceptível de substituir a falta de interpelação do fiador, necessária em virtude deste não ter renunciado ao benefício do prazo;

XII - parte da jurisprudência concede relevo a tal citação do fiador para a execução, vinculando este, por razões de relevância pragmática, ao pagamento do capital das prestações em dívida, vencidas e vincendas, mas considerando que os juros moratórios apenas são devidos desde a data da citação;

XIII - outro entendimento jurisprudencial, considera apenas ser devido o capital das prestações vencidas à data da execução, acrescido dos juros moratórios devidos desde a data da citação (a elas respeitantes);

XIV - sem prejuízo, neste caso, de recurso à cumulação de execuções que possa vir a deduzir-se, nos termos do art.º 711º, do Cód. de Processo Civil, em relação às prestações que se venham a vencer na pendência da execução;

XV – tendo a interpelação extrajudicial aos co-obrigados fiadores sido efectuada em data em que já havia ocorrido o vencimento da totalidade das prestações escalonadas para amortização do mútuo outorgado, não está sequer [...] em causa uma qualquer ou eventual perda do benefício do prazo por parte daqueles;

XVI – pois, o benefício do prazo não pode ser invocado relativamente às prestações vencidas (que, naquele momento, já eram todas), mas antes, e tão-só, no que respeita às prestações futuras (naquele momento já inexistentes).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Prevendo a propósito do beneficiário do prazo, prescreve o art.º 779º, do Cód. Civil, que “o prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente”.

Estatuindo acerca da perda do benefício do prazo no cumprimento da obrigação, dispõe o art.º 780º, do mesmo diploma, que:

“1. Estabelecido o prazo a favor do devedor, pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada, ou se, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas.
2. O credor tem o direito de exigir do devedor, em lugar do cumprimento imediato da obrigação, a substituição ou reforço das garantias, se estas sofreram diminuição”.

O normativo seguinte – 781º -, prevendo a respeito da dívida liquidável em prestações, aduz que “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”. [...]

Por sua vez, o art.º 782º, dispondo acerca da perda do benefício do prazo em relação aos co-obrigados e terceiros, prescreve que “a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia”. [...]

- Da perda do benefício do prazo nas obrigações relativamente aos co-obrigados e garantes do crédito, nomeadamente aos fiadores, no regime da dívida liquidável em prestações [...]

Sendo certo estarmos, indubitavelmente, perante questão que contende com a efectiva exigibilidade da obrigação exequenda, urgindo, assim, aferir, basicamente:

. Se a Exequente tinha de interpelar os fiadores Embargantes, previamente à instauração da execução, para pagamento do valor em dívida, de forma a que a obrigação lhes fosse exigível;

. Na afirmativa, se deve considerar-se verificada essa interpelação por via da citação para a presente execução. [...]

A interpelação aos fiadores é imposta pelo citado artigo 782º tanto mais que o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não venceu constitui um benefício que a lei não impõe ao credor e por isso este terá sempre que interpelar aquele a quem pretende exigir a totalidade dos pagamentos” [...].

Considerou a sentença apelada que, tendo ocorrido incumprimento por parte dos devedores mutuários ou principais, e efectuada que foi a devida interpelação admonitória por parte da credora, ocorreu, relativamente àqueles, perda do benefício do prazo, tendo-se vencido as demais prestações vincendas.

Todavia, conforme evidenciámos, a mesma sentença nada conheceu acerca da posição dos co-obrigados fiadores (ora Apelantes), ou, ainda que implicitamente, retirou idênticos efeitos relativamente aos mesmos.

Ora, não sendo a perda do benefício do prazo extensível aos co-obrigados fiadores, nos quadros do citado art.º 782º, do Cód. Civil, impõe-se, num primeiro momento, atenta a natureza ou carácter supletivo de tal norma, aferir se os fiadores (ora Apelantes) se vincularam à perda de tal benefício, na decorrência da concretizada perda por parte dos devedores principais.

Compulsado o teor do contrato de mútuo, outorgado em 03/11/2005, constata-se nada constar nesse sentido, sendo que a referenciada cláusula 17 não se reporta minimamente a tal previsão, pois apenas alude à possibilidade da credora poder “rescindir o contrato no caso de incumprimento de qualquer obrigação assumida pelos MUTUÁRIOS”.

Todavia, para além da indevida figuração da figura jurídica da rescisão, e da estrita alusão a alegado incumprimento dos mutuários, nada é referenciado relativamente a uma voluntária renúncia dos fiadores quanto à garantia tutelar que lhes é concedida pelo aludido art.º 782º, do Cód. Civil.

Por outro lado, acrescenta-se, injustifica-se qualquer abordagem ou aferição do teor da mencionada “alteração ao contrato de mútuo, com procuração irrevogável celebrado em 3 de Novembro de 2005” – doc. Nº. 2, junto com o requerimento executivo -, atenta a não prova da sua outorga por parte dos Embargantes/Executados.

Assim, concluindo-se pela inexistência de renúncia ao benefício do prazo por parte dos fiadores (ora apelantes), impunha-se à credora Exequente a prova de os ter admonitoriamente interpelado para a satisfação imediata da totalidade das prestações em dívida, ou seja, intimando-os para colocar termo à mora (no pagamento da dívida), de forma a obstarem ao vencimento antecipado de todas as prestações e ao seu consequente pagamento.

Ora, conforme resulta do aditado facto 16, provou-se que a credora, em 29/03/2019, enviou aos fiadores NF e AF, comunicação escrita, com a referência 44059/2019, possuindo o seguinte teor:

«ASSUNTO: Procedimento Judicial
Empréstimo nº PT 00350209004997684
           
Exmos. Senhores.

Perante o incumprimento verificado no empréstimo, supra identificado, a C…………….. decidiu o recurso à via judicial para cobrança coerciva dos seus créditos.

Não obstante encontrarem-se reunidos todos os elementos para a propositura da ação, informo V. Exas que ainda poderão evitar tal procedimento, mediante a liquidação da totalidade dos valores em atraso, no montante de 45.501,49€, à data de 2019/03/29, ou através de apresentação de proposta de pagamento/regularização, no prazo máximo de 30 dias.

Findo o aludido prazo sem que se verifique a regularização do atraso ou a apresentação de proposta que permita superar a situação de incumprimento, será promovida, sem mais avisos, a inerente ação executiva para cobrança da totalidade da dívida, com a inevitável penhora de bens e rendimentos.

(….)»”.

Ou seja, tal interpelação integra um conteúdo preciso e determinado, intimando ao cumprimento com indicação de preciso valor, fixa um termo peremptório para que este ocorra e adverte que, caso inexista regularização do atraso ou apresentação de proposta que permita superar a situação de incumprimento, executar-se-á a cobrança da totalidade da dívida, o que traduz concreta declaração admonitória conducente a declaração de efectivo não cumprimento.

Pelo que, provada tal interpelação admonitória aos fiadores por parte da credora, sem que existisse cumprimento por parte destes, a perda do benefício do prazo por parte dos devedores principais (mutuários) sempre lhes seria extensível, impossibilitando que, com sucesso, possam opor ou invocar a excepção de inexigibilidade do crédito fidejussório executado.

Acresce que, no caso concreto, tal interpelação extrajudicial aos fiadores (ora Recorrentes) possui a particularidade de ter sido efectuada em data em que já havia ocorrido o vencimento da totalidade das prestações escalonadas para amortização do mútuo outorgado, pelo que já nem sequer estava em causa uma qualquer ou eventual perda do benefício do prazo por parte de tais co-obrigados fiadores.

O que resulta do facto do mútuo ter sido contratualizado em 03/11/2005, a ser liquidável em 120 prestações mensais, de capital e juros, ou seja, pelo período de 10 anos, que naquela data já se encontrava largamente excedido.

Efectivamente, conforme aduzimos, o benefício do prazo não pode ser invocado relativamente às prestações vencidas (que, naquele momento, já abrangia a totalidade das prestações), mas antes, e tão-só, no que respeita às prestações futuras (naquele momento já inexistentes).

Ademais, ainda que assim não se entendesse, mas antes se considerasse que a aduzida notificação aos fiadores, datada de 29/03/2019, não possui potencialidade suficiente para consubstanciar interpelação admonitória ao cumprimento, conducente à perda do benefício do prazo – o que claramente não se reconhece -, fazendo-se ponderar acerca dos efeitos da sua citação para os termos da presente acção executiva, sempre se teria que concluir pela sua vinculação ao pagamento da totalidade das prestações, desde logo pelo facto de todas já se encontrarem vencidas, inexistindo qualquer alegada perda do benefício do prazo a tutelar na esfera jurídica dos co-obrigados fiadores, relativamente a inexistentes prestações vincendas.

*3. [Comentário] Afinal, era tudo simples: houve uma prévia interpelação admonitória dos fiadores, pelo que nada impedia a sua demanda na execução.

MTS