"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/12/2023

Jurisprudência 2023 (69)


Embargos de terceiro;
direito de habitação e de uso de recheio*


1. O sumário de RL 13/4/2023 (7172/13.2TBOER-A.L2-6) é o seguinte: 

[Nem] O direito real de habitação e de uso do recheio que resulta para o sobrevivo duma união de facto, nos termos do artigo 5º nº 1 da Lei de Protecção das Uniões de Facto, e nem a posse dele derivada, são oponíveis, em embargos de terceiro, ao exequente que beneficia de hipoteca anteriormente registada sobre o imóvel relativamente ao qual se exerce o direito do sobrevivo, por dívida de mútuo bancário contraída precisamente para a aquisição do mesmo imóvel pelo unido de facto que entretanto veio a falecer.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Adquirido está, porque não foi atacado no recurso, que a embargante e recorrente vivia em união de facto com o proprietário do imóvel penhorado e que à morte deste se lhe constitui, ope legis (artigo 5º da LPUF), o direito real de habitação e de uso do recheio, pelo prazo mencionado na sentença recorrida.

Para a incompatibilidade da penhora com o direito referido, que a sentença não reconheceu, a recorrente invoca:

- o direito real de habitação onera a propriedade plena, e no caso concreto onera-a desde a morte do unido de facto, sendo a penhora posterior ao falecimento e constituição do direito.

- a penhora incidiu sobre a propriedade plena e por via da oneração, devia ter incidido apenas sobre a raiz da propriedade, sob pena da venda executiva daquela propriedade plena extinguir o direito real de habitação, porquanto a penhora do direito de propriedade abrange também a penhora de “todas as figuras parcelares (direitos reais menores) que o integram”.
  
- o direito “(…) de uso e habitação” de que a embargante é titular é um direito “real de gozo oponível “erga omnes”, que nos termos do artigo 1488º do Código Civil “não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável é impenhorável – cfr., nesse sentido, o Ac. da R.L. de 2/11/1989, BMJ 391, pág. 681, o Ac. da R.L. de 22/6/1989 e ainda o Ac. Da Relação de Évora de 7/12/2017 estes dois últimos disponíveis in www.dgsi.pt”.

- na declaração de voto do Juiz Desembargador Rijo Ferreira no acórdão já proferido nestes autos, refere-se expressamente que: “Votei no sentido da procedência dos embargos. (…) E nessa circunstância a penhora da propriedade plena (e não apenas da propriedade de raiz) do imóvel mostra-se incompatível com aquele direito real de gozo menor (enquanto a embargante não for chamada à execução — art.º 54º do CPC — para aí ser convencida da prevalência do direito real de garantia da exequente sobre o seu direito real de gozo em virtude da sua anterioridade) (…)”.

- em consequência da incompatibilidade da penhora com o direito real de uso e habitação, os embargos devem ser julgados procedentes e a penhora “deve ser cancelada/levantada”.

Percebe-se que não estão em discussão o conceito, pressupostos, requisitos e termos de aplicação dos embargos de terceiro, nem a sua evolução legislativa, mas apenas, nesta primeira linha de defesa, saber se o direito real de habitação e uso do recheio que se constitui pela dissolução por morte duma união de facto a favor do sobrevivo é um direito que se revela incompatível com a penhora, e na realidade, se é incompatível com a penhora nos termos concretos em que a penhora foi feita.

Diga-se, ainda, que não há discussão sobre a natureza de direito real que assiste ao referido direito de habitação sobre o imóvel onde os unidos de facto viviam.

É então incompatível este direito com a penhora?

Numa primeira perspectiva, sim. Se a penhora se insere na acção executiva como acto de apreensão de determinado bem funcionalmente ligado à possibilidade de efectivação de termos processuais executivos posteriores, seja, na falta de pagamento voluntário da dívida, à adjudicação ou à venda executiva (artigos 735º e 795º ambos do CPC) , aquilo que vai ser adjudicado ou vendido é o imóvel, o que significa que o que se transmite é na verdade o direito de propriedade sobre o imóvel, o qual, se não houver qualquer restrição na penhora, incidirá sobre o pleno desse direito, que integra o direito de habitação (artigos 1302º, 1305º e 1484º, todos do Código Civil), extinguindo este na esfera jurídica do seu titular, e revertendo-o ao conjunto dos poderes do novo proprietário.

Tanto bastaria para, convocando a inalienabilidade do direito de habitação que resulta da disciplina do artigo 1488º do Código Civil - “O usuário e o morador usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo” (é o que a recorrente qualifica como oponibilidade erga omnes) – demonstrar a incompatibilidade, senão mesmo para afirmar a tese da impenhorabilidade absoluta resultante do artigo 736º al. a) do Código de Processo Civil.

Porém, nos termos da parte final do artigo 1305º do Código Civil, todas as faculdades e poderes que o direito de propriedade outorga ao seu titular, não são ilimitadas: - elas contêm-se “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

Se o direito de habitação não pode ser onerado, antes, ele mesmo onera, nos termos do parágrafo anterior, o direito de propriedade, esta oneração acontece “nos termos do possível”, isto é, a oneração acontece em concreto, sobre o direito de propriedade que incide concretamente sobre determinado imóvel (no caso), que pode estar já onerado por outras razões.

No caso concreto demonstra-se, pelo aditamento oficioso de factos que aliás fizemos, que anteriormente à constituição do direito real de habitação e de uso do recheio que ocorreu com o falecimento do unido de facto com a embargante, o imóvel sobre o qual tal direito incide já estava especialmente afectado à garantia do crédito da exequente através da constituição pelo unido de duas hipotecas voluntárias anteriores e registadas anteriormente ao falecimento do mencionado unido de facto.

O artigo 686º do Código Civil estabelece, no seu primeiro número: “1. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”, estabelecendo o artigo seguinte que “A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes”.

Quer isto dizer que o direito de propriedade do falecido unido sobre o imóvel relativamente ao qual agora incide o direito real de habitação da embargante, estava já onerado pelo direito real de garantia que a hipoteca constitui, representando a penhora a sequela deste direito (e não, por si, uma nova oneração [---]) – se o credor hipotecário tem o direito de ser pago pelo valor da coisa imóvel, então para que este direito se concretize, precisa de haver uma apreensão formal da coisa para o seu encaminhamento para os meios processuais de obtenção do respectivo valor.

A hipoteca, porque incidente sobre coisa imóvel específica, confere ao credor um direito real de garantia e este direito real (de se pagar pelo valor da coisa e portanto de a vender em propriedade plena, que era a que existia ao tempo da constituição da hipoteca, isto é, ao tempo em que mediante o crédito que é garantido pela hipoteca, o unido de facto adquiriu o imóvel) está, perante o direito real de habitação da embargante que se constituiu depois, numa situação de anterioridade, a determinar que o direito real de habitação se exerce sobre um imóvel onerado e com as condicionantes de exercício que essa oneração determina.

Dito de uma maneira absolutamente simples mas que elucida com clareza a razão de ser dos termos em que se resolve a incompatibilidade prática entre o direito real de garantia e o direito de habitação: - o sobrevivo tem direito a viver na casa onde vivia com o unido se a casa era do unido. O mesmo sucede para o arrendamento, o sobrevivo tem o direito de prosseguir no arrendamento – artigo 5º nº 10, da Lei de Protecção das Uniões de Facto – conquanto, em termos simples, pague as rendas.

Se a casa do unido tinha sido comprada com dinheiro emprestado pelo Banco, e o unido não chegou a pagá-lo, por inteiro, ou há um seguro que paga, ou os herdeiros do unido o pagam, e o sobrevivo opõe a estes herdeiros o seu direito de habitação pelo tempo correspondente à união, ou os herdeiros não pagam e o sobrevivo não pode ficar a viver numa casa que não é dele nem está paga, sem pagar nada, e isto porque este direito de habitação que resulta do artigo 5º nº 1 da Lei de Protecção das Uniões de Facto não é um direito de arrendamento, como resulta do nº 7, 1º parte, do mesmo artigo (7 - Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado (…)”, isto é, este direito real de habitação é um direito a habitar gratuitamente.

Podemos também, na continuação desta linha simples de pensamento, pensar nesta questão do pagamento da dívida contraída para a aquisição do imóvel e na possibilidade de impor o direito de habitação do unido sobrevivo ao credor hipotecário usando o exemplo do comodato: - se o casal em união de facto vivia gratuitamente numa casa de um amigo do falecido, a LPUF não consagra nenhuma hipótese de conceder ao sobrevivo o direito de continuar a residir gratuitamente nessa casa pelo tempo correspondente ao que durou a união de facto.

E aqui já se percebe que a questão não é sequer de equilíbrio de prestação social/económica, não está em causa ponderar a oneração do direito do amigo em reaver a sua casa por mor (isto é, por consideração do legislador de um valor igualmente digno de protecção) duma protecção ao unido de facto que fique só (desamparado da ajuda inclusivamente económica do outro), ou em homenagem à união de facto, ou por alguma preferência abstracta do legislador pela solução da união de facto em vez do casamento. A situação é a mesma no caso do credor hipotecário: - não há nenhum valor na união de facto, eleito pelo legislador como merecedor de favor maior ou protecção maior, que justifique onerar socialmente (isto é, pedir uma contribuição social, neste caso, do Banco) ou economicamente o direito do credor a reaver a quantia mutuada ao falecido para aquisição da casa.

Esse nenhum valor decerto não é a protecção da casa da morada da família nem o direito constitucional à habitação, sabendo-se que a primeira não está excluída da penhora e que o segundo se interpela ao Estado.

Se não é isto que está sequer em causa, o que se revela é que a protecção concedida à união de facto se faz por uma tendencial equiparação ao cônjuge sobrevivo, partindo da diferença em termos sucessórios e respeitando-a, respeito que obriga o legislador a compensar o sobrevivo face aos sucessores.

Veja-se que no caso da casa de morada da família ser arrendada, o unido de facto sobrevivo é equiparado ao cônjuge sobrevivo (artigo 1106º do Código Civil). Se fizermos essa equiparação no caso da casa de morada da família ser própria do falecido, mas onerada com hipoteca por crédito bancário para a sua aquisição, não resulta em lado algum que o cônjuge sobrevivo possa com sucesso opor ao credor hipotecário, na execução, o seu direito de permanecer na casa sem pagar a dívida.

Pode dizer-se que o argumento não tem sentido, porque o cônjuge sobrevivo é herdeiro – e portanto é claro que para adquirir por sucessão tem de pagar (adquire activo e passivo) – e o unido de facto não, e portanto o legislador tem de o compensar, só que a compensação relativamente à aquisição por herança só pode ser pensada através de um mecanismo dirigido aos herdeiros.

Estamos no fundo a perscrutar o fundamento da lei de protecção do unido de facto sobrevivo, tarefa na qual se conclui que há situações socialmente típicas que são possibilitadas pelo normal funcionamento do direito constituído, e que convocam da sociedade juridicamente organizada uma resposta de reposição de um patamar de justiça social.

Repare-se então que nos termos do artigo 5º da LPUF, o prazo do direito de real de habitação até pode ser prolongado pelos motivos socialmente relevantes ou reveladores da ideia de justiça social expressamente consignados no nº 4 do mesmo preceito - “4 - Excepcionalmente, e por motivos de equidade, o tribunal pode prorrogar os prazos previstos nos números anteriores considerando, designadamente, cuidados dispensados pelo membro sobrevivo à pessoa do falecido ou a familiares deste, e a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa”.

Esta ideia de retribuição (a quem “esteve ao lado”, a quem prestou cuidados e que agora precisa de cuidado – e por isso os nº 5 e 6 excluem os casos em que o sobrevivo não habita a casa ou tem casa própria no mesmo concelho) exerce-se claramente contra, ou em face, daqueles que, pelo funcionamento do direito constituído, ficam investidos da qualidade de herdeiros com o falecimento do unido. O caso previsto no nº 3 do mesmo artigo 5º é muito claro – “3 - Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo”, isto é, suspende o poder dos herdeiros da metade pertencente ao falecido de habitarem a casa.

Em suma, a situação socialmente típica é mesmo a de que os herdeiros do falecido, antes da LPUF, pudessem de imediato descartar a pessoa que tinha estado a partilhar (as dificuldades da) vida com o de cujus, despejá-la de imediato e lançar-se aos bens da herança.

Ora, isto nada tem a ver com o credor hipotecário, nem há nenhuma razão para que o credor hipotecário deva ser chamado a contribuir para a protecção daquele que protegeu e agora precisa de ser protegido. Até porque o credor hipotecário não foi desinteressado do falecido, pelo contrário (e ainda que contra remuneração) lhe proporcionou a aquisição da casa.

Reforçando a ideia de que o direito real de habitação se exerce contra os herdeiros mas não contra oneração prévia do direito de propriedade sobre o qual se veio a constituir, note-se que o referido artigo 5º no seu nº 9 estabelece: “O membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título”. Isto, em primeiro lugar, significa que o direito real de habitação com esta origem legal (e conformado pela lei que o cria) não se transmite no caso da alienação do imóvel. Depois, é patente que a alienação prevista neste nº 9 é em primeira linha a promovida pelos herdeiros do falecido, mas não deixa de ser possível considerar (até porque a lei não distingue) outra forma de alienação, como seja a venda executiva. Assim, resulta com clareza dos termos em que a lei constituiu este direito real de habitação que ele se exerce sobre coisa própria do falecido e contra os herdeiros dele, mas que, se as vicissitudes da coisa (a sua oneração por um crédito hipotecário não pago, a vontade dispositiva dos herdeiros do falecido) a alienarem para outra titularidade, o sobrevivo não tem direito de continuar a habitar a casa, mas apenas o de preferir na sua aquisição.

Em suma, não assiste ao direito real de habitação do sobrevivo de uma união de facto o poder de oposição ao credor hipotecário por mútuo celebrado com o falecido para a aquisição do imóvel sobre o qual o direito real de habitação incide, razão pela qual não pode afirmar-se incompatibilidade entre este direito e a penhora que dá sequela a hipoteca. [...]

Em conclusão final, o direito real de habitação que nasce para o sobrevivo de uma união de facto reportado a imóvel que pertencia ao falecido mas estava onerado por hipoteca por crédito imobiliário, registada anteriormente à constituição do direito, não pode ser oposto ao exequente credor hipotecário, o que do mesmo modo sucede com a posse que de tal direito de habitação resulta para o seu titular."


*3. [Comentário] a) Deu-se ao sumário uma formulação correspondente ao sentido do decidido no acórdão.

b) Adere-se à orientação defendida no acórdão, dado que, em regra, direitos posteriores não podem afectar anteriores direitos de terceiros. 

Ainda assim, não deixa de se chamar a atenção para uma certa incompatibilidade entre o decidido no acórdão e a jurisprudência uniformizada no Ac. STJ 2/2021, de 5/8 (DecRet 34/2021, de 25/10): A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057,º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil. Não pode deixar de se referir que o que é desarmónico com o sistema é o decidido neste acórdão uniformizador, não o decidido no acórdão em análise.

MTS