"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/12/2023

Jurisprudência 2023 (74)


Processo de inventário;
redução por inoficiosidade; litisconsórcio necessário


1. O sumário de RE 30/3/2023 (339/21.1T8CTX-B.E1) é o seguinte:

I – No incidente a que se reporta o artigo 1118º do Cód. Proc. Civ., prevê-se a intervenção do donatário e de todos os herdeiros legitimários, essencial para assegurar que a decisão a proferir produza o seu efeito útil.

II – Se um dos herdeiros legitimários deduzir tal incidente, é aí que qualquer outro herdeiro legitimário que também pretenda ver reduzida a doação em seu benefício deve manifestar a sua vontade, não podendo deduzir segundo incidente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Diz-se legítima a porção de bens que o legislador assegura aos herdeiros legitimários (artigo 2156º do Cód. Civ.). Essa porção é calculada tendo em conta o valor dos bens existentes no património do autor da sucessão, o valor dos bens doados, as despesas sujeitas a colação e as dívidas da herança (artigo 2162º do Cód. Civ.), variando consoante a categoria e o número dos herdeiros legitimários (artigos 2157º a 2161º do mesmo diploma).

As disposições de bens, a título gratuito, a que o autor da sucessão procedeu, em vida ou por morte, consideram-se inoficiosas se afectarem a legítima dos herdeiros legitimários (artigo 2168º do Cód. Civ.). E, se assim for, tem o/s herdeiro/s legitimário/s afectado/s o direito potestativo de ver a/s liberalidade/s reduzida/s na medida do necessário (artigo 2169º do Cód. Civ.).

Para obter esse desiderato e encontrando-se pendente inventário, poderá/ão deduzir o incidente previsto no artigo 1118º do Cód. Proc. Civ..

Se apenas existir um herdeiro legitimário afectado ou se, existindo mais, apenas um deles pretende a redução da liberalidade inoficiosa, naturalmente apenas esse deduzirá o incidente no confronto com o donatário/legatário visado (artigo 1118º nº 1 do Cód. Proc. Civ.). Trata-se, naturalmente, de estabelecer o contraditório entre quem tem interesse em demandar e quem tem interesse em contradizer (artigo 3º nº 1 e 30º do Cód. Proc. Civ.). Todavia, porque a decisão do incidente implica o cálculo da legítima (sendo indispensável ter por assente, como cima dissemos, o valor dos bens existentes no património do autor da sucessão, o valor dos bens doados, as despesas sujeitas a colação e as dívidas da herança) e porque é evidente que todos esses valores não podem ser diferentes consoante se esteja no âmbito do inventário ou em sede incidental, aqui se prevê, também, a intervenção dos restantes herdeiros legitimários (artigo 1118º nº 2 do Cód. Proc. Civ.). No fundo – e ainda que não se possa falar numa típica situação de litisconsórcio necessário – está em causa assegurar a participação de todos os interessados na definição de aspectos essenciais à partilha, ou seja, está em causa assegurar que a decisão a proferir produza o seu efeito útil, ao vincular todos os interessados (artigo 33º do Cód. Proc. Civ.).

Assim sendo, deduzido o incidente por um dos herdeiros legitimários, os demais podem, quando forem ouvidos, manifestar, também eles, a intenção de que a liberalidade seja reduzida em seu benefício, isto é, em ordem ao preenchimento da legítima a que têm direito, acompanhando a alegação do requerente do incidente ou invocando circunstancialismo fáctico diverso ou complementar. O que importa é que, quer os herdeiros legitimários, quer o/s donatário/s/legatário/s visados esgrimam, no mesmo processo, as suas posições, só assim se alcançando uma decisão que resolva em definitivo e perante todos (pois que todos por ela são afectados) o litígio.

Daqui decorre que, deduzido o incidente por um dos herdeiros legitimários, não pode outro herdeiro legitimário deduzir segundo incidente, havendo, como dissemos, de expressar a sua posição no incidente pendente.

Tal conclusão parece-nos expressivamente ilustrada pelo presente caso.

Com efeito, estando a ser tramitados paralelamente dois incidentes de inoficiosidade, verifica-se que, no Apenso A, a interessada DD deduziu oposição, mas, no presente Apenso B, nada disse. Mais: não tendo neste Apenso sido oficiosamente determinada avaliação dos bens (artigo 1118º nº 3 do Cód. Proc. Civ.) – dando-se por assente a factualidade invocada pela cabeça-de-casal no requerimento inicial – no Apenso A veio a reconhecer-se a importância de tal avaliação, entretanto determinada no âmbito dos autos de inventário. Por último, neste Apenso foi proferida sentença (embora sem definição do real valor de cada bem à data da abertura da sucessão), ao passo que no Apenso A foi determinada a suspensão da instância até à avaliação dos bens no inventário, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 272º do Cód. Proc. Civ..

É manifesto que não pode ser e que o presente incidente não pode existir.

Ao optar por deduzir incidente de inoficiosidade – quando, aliás, decorria o prazo para se pronunciar no âmbito do Apenso A (cfr. pontos 13. e 15. do Relatório) – a cabeça-de-casal lançou mão de uma via processual inadequada. Não obstante a situação não ter sido imediatamente atalhada, como se imporia, pode/deve, ainda, ser oficiosamente corrigida (artigo 193º nº 3 do Cód. Proc. Civ.). Assim, sendo o requerimento inicial apresentado pela cabeça-de-casal aproveitável enquanto manifestação da sua vontade no âmbito do Apenso A, para aí deverá transitar. Consequentemente, desaparecendo o impulso que levou à constituição e tramitação do Apenso B, não podemos deixar de concluir pela nulidade de todo o processado (artigo 186º nº 1 e nº 2-a) do Cód. Proc. Civ., por maioria de razão)."

[MTS]