"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/12/2023

Jurisprudência 2023 (63)


Contrato de arrendamento; denúncia;
nulidade; "inalegabilidade formal"


1. O sumário de RP 13/3/2023 (18287/20.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Se a declaração negocial por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admissível prova testemunhal e ainda que exista um começo de prova por escrito.

II - Se no âmbito do nº 1 do artigo 393º do Código Civil fosse admitida a flexibilização probatória que tem vindo a admitir-se no domínio do nº 1 do artigo 394º do mesmo diploma legal, a exigência de forma legal ou convencional seria preterida, comprometendo-se os interesses subjacentes a tais exigências.

III - Tal como se pode provar testemunhalmente a celebração de um contrato nulo por inobservância da formal legal escrita para que se possam produzir os efeitos próprios da declaração de nulidade, tem vindo a admitir-se em certas circunstâncias, ao abrigo do instituto do abuso do direito (artigo 334º do Código Civil), de conhecimento oficioso, que a falta de observância da forma legal ou convencional seja paralisada mediante a figura da inalegabilidade formal.

IV - De acordo com o disposto no artigo 368º do Código Civil, as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão.

V - O abuso do direito é de conhecimento oficioso.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. Fundamentos

3.1 Da reapreciação do ponto 5 dos factos provados e dos artigos 11 e 13 da petição inicial, o primeiro apenas na sua parte final

O recorrente pugna por que se julgue não provado o ponto 5 dos factos provados em virtude de o mesmo apenas se poder provar por prova documental, prova que não foi produzida e que se julguem provados os artigos 11 e 13 da petição inicial, atento o teor das fotografias por si oferecidas com o requerimento de 22 de março de 2022 e que não foram impugnadas.

O ponto 5 dos factos provados tem o seguinte conteúdo:

- A sociedade ré comunicou ao autor, em novembro/2019, que tinha arrendado um outro espaço e que iria proceder à entrega do imóvel descrito em 1., em janeiro/2020, tendo o autor ido buscar as chaves do imóvel às novas instalações da sociedade ré em 28 de fevereiro de 2020. [...]

O tribunal a quo motivou a sua decisão da matéria de facto, na parte pertinente ao conhecimento do objeto do recurso, da forma que segue:

A prova dos factos descritos nos ponto 5, 6 e 10 sustentou-se nos depoimentos das testemunhas CC, empreiteiro que fez as obras de remodelação nas novas instalações da ré e foi executar as obras de demolição no imóvel arrendado ao autor, sob instruções daquela de acordo com as quais deveria desmontar tudo que existisse como divisória de forma a tornar o espaço amplo, o qual descreveu os trabalhos executados e confirmou o preço cobrado e recebido e da testemunha DD, trabalhador da sociedade ré e companheiro da sua legal representante, o qual os confirmou, tendo sobre eles conhecimento direto, prestando um depoimento escorreito, simples e direto, sem hesitações e sem meias palavras ou subterfúgios. Considerou-se, ainda, o novo contrato de arrendamento celebrado pela sociedade ré os registos das chamadas telefónicas estabelecidas entre a legal representante da ré e o autor. [...]

Cumpre apreciar e decidir. [...]

Iniciemos a reapreciação do ponto 5 dos factos provados, matéria que o recorrente sustenta não poder ser provada com recurso a prova documental, pois que a denúncia do arrendamento depende de forma escrita.

No caso dos autos estava em causa um arrendamento urbano para outros fins com o prazo de um ano, sucessivamente renovável. Tratava-se por isso de arrendamento com prazo certo (veja-se o nº 1 do artigo 1094º do Código Civil em conjugação com o artigo 1110º, nº 1 do mesmo diploma legal).

No arrendamento para outros fins, na falta de convenção das partes, o arrendatário pode denunciar o contrato decorrido um terço do prazo inicial do contrato ou da sua renovação, com a antecedência mínima de cento e vinte dias do termo pretendido do contrato, se o prazo deste for igual ou superior a um ano (artigos 1110º, nº 1 e 1098, nº 3, alínea a), ambos do Código Civil).

A inobservância do pré-aviso legalmente fixado não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao prazo de pré-aviso em falta, salvo se resultar de desemprego involuntário, incapacidade permanente para o trabalho ou morte do arrendatário ou de pessoa que com ele viva em economia comum há mais de um ano (artigos 1110º, nº 1 e 1098, nº 6, ambos do Código Civil).

No caso dos autos, no contrato de arrendamento celebrado pelo autor, na qualidade de senhorio, e pela ré sociedade comercial, na qualidade de arrendatária, as partes estabeleceram no parágrafo único da cláusula primeira que é “válida a denúncia do contrato que for efectuada, por escrito registado, com a antecedência mínima de 90 dias tendo em conta o termo do prazo inicial ou o da sua renovação.”

Aparentemente as partes fixaram assim um prazo próprio de pré-aviso de denúncia do contrato de arrendamento inferior ao supletivamente previsto e convencionaram uma forma escrita – escrito registado – menos solene do que a prevista em geral no regime do arrendamento urbano no artigo 9º, nº 1 da Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro.

Porém, se bem se atentar na referida cláusula contratual, não se prevê aí uma verdadeira denúncia, mas sim uma oposição à prorrogação ou renovação do arrendamento (vejam-se os artigos 1055º e 1098º, nºs 1 e 2, ambos do Código Civil), pois que opera apenas para o termo do prazo inicial ou da sua renovação, pelo que a regra a observar no caso dos autos é a do nº 1 do artigo 9º da Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro.

Ora, nos termos do disposto no nº 1, do artigo 393º do Código Civil, se a declaração negocial por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admissível prova testemunhal [---].

E poderá a prova testemunhal ser admitida sempre que, à semelhança do que se tem vindo a admitir em matéria de simulação, com a doutrina maioritária [---] e a jurisprudência [---] a flexibilizar a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil [---], admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito [---]?

Não o cremos já que as razões que sustentam a aludida flexibilização probatória se prendem, além do mais, com as dificuldades próprias da prova da simulação e não colhem nos casos de forma legal ou convencional da própria declaração negocial, como é o caso dos autos.

Atente-se ainda que nos casos previstos no artigo 394º do Código Civil está em causa a prova de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou de documento particular dotado de força probatória plena, sejam tais convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento em causa, enquanto no caso previsto no artigo 393º do Código Civil está em causa a prova de uma declaração negocial sujeita a forma legal ou convencional (vejam-se os artigos 220º e 223º, ambos do Código Civil).

De facto, se no âmbito do nº 1 do artigo 393º do Código Civil fosse admitida a flexibilização probatória que tem vindo a admitir-se no domínio do nº 1 do artigo 394º do mesmo diploma legal, a exigência de forma legal ou convencional seria preterida, comprometendo-se os interesses subjacentes a tais exigências.

Significa isto que o ponto 5 dos factos provados deve extirpar-se da factualidade provada, por não ter sido produzida a prova documental legalmente exigida, como pretende o recorrente?

Não o cremos e desde logo porque o referido ponto 5 contém matéria que exorbita da denúncia do contrato de arrendamento, como seja a entrega das chaves do arrendado em 28 de fevereiro de 2020.

Além disso, tal como se pode provar testemunhalmente a celebração de um contrato nulo por inobservância da formal legal escrita para que se possam produzir os efeitos próprios da declaração de nulidade, tem vindo a admitir-se em certas circunstâncias, ao abrigo do instituto do abuso do direito (artigo 334º do Código Civil), de conhecimento oficioso [---], que a falta de observância da forma legal ou convencional seja paralisada mediante a figura da inalegabilidade formal [---].

Sem prejuízo de uma análise mais circunstanciada da reunião dos pressupostos da figura que se acaba de invocar em sede de fundamentação de direito, nesta sede de reapreciação da decisão da matéria de facto, tendo em conta que resulta da factualidade apurada e que o recorrente não coloca diretamente em crise que o termo do contrato não foi o inicialmente pretendido pela ré sociedade comercial (janeiro de 2020) e que esta pagou a renda pedida pelo autor até à entrega das chaves a este em fevereiro de 2020 (ponto 7 dos factos provados não impugnado pelo recorrente [---]) e ainda que foram ajustadas as condições em que o arrendado deveria ser entregue (veja-se o ponto 10 dos factos provados [---]), à luz do instituto do abuso do direito e das exigências do princípio da boa-fé, afigura-se-nos que é admissível a prova testemunhal para prova da matéria vertida no ponto 5 dos factos provados, no que respeita à denúncia do contrato de arrendamento.

Por isso, com a fundamentação que antecede, improcede esta pretensão recursória de extirpação do ponto 5 dos factos provados e da sua colocação na factualidade não provada."

[MTS]