"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/12/2023

Jurisprudência 2023 (65)


Prazo regressivo;
contagem; férias judiciais*


1. O sumário de RE 30/3/2023 (2311/18.0T8PTM-F.E1é o seguinte:

I – Em férias judiciais não se praticam atos processuais, salvo nos casos previstos no artigo 137.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, suspendendo-se o prazo que se encontre em curso.

II – A suspensão dos prazos em férias judiciais aplica-se a todos os prazos processuais, sejam progressivos (contagem para a frente) ou regressivos (contagem para trás).

III – Em caso de uma audiência final marcada para várias sessões, a possibilidade de apresentação de documentos “até 20 dias antes da audiência final”, conta-se em relação à primeira sessão.

IV – Tendo a audiência final o seu início em 12.09.2022, a documentação apresentada pela Apelada em 19.08.2022 não pode considerar-se tempestivamente efetuada, e ser admitida com base na exceção prevista no n.º 2 do artigo 423.º do CPC, porquanto aquele prazo já tinha terminado quando o requerimento foi atravessado no decurso das férias judiciais.

V – Ultrapassado o referido limite temporal, não tendo a requerente invocado qualquer fundamento para demonstrar que não a pode oferecer com a petição inicial ou em momento posterior até ao termo do prazo concedido no n.º 2, a documentação cuja junção foi requerida não podia igualmente ser admitida ao abrigo do disposto no artigo 423.º, n.º 3, do CPC.

VI – Justifica-se a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no artigo 6.º, n.º 7, do RCP, quando apesar do elevado valor da causa estamos perante recurso de decisão interlocutória relativa a junção de documentos aos autos, que não integrou a apreciação de questões com complexidade superior à que habitualmente envolve a apreciação da admissibilidade de meios de prova, independentemente do valor da causa, e a instância recursiva se desenvolveu estritamente de acordo com o figurino previsto, verificando-se assim a desproporcionalidade que funda a possibilidade de aplicação daquele inciso normativo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Pretende a Apelante que a apresentação de documentos feita pela Apelada nos autos, em 19.08.2022, quando a audiência de julgamento se encontrava designada para o dia 12.09.2022, foi intempestiva, por não ter observado o prazo regressivo previsto no n.º 2 do artigo 423.º do CPC, e por também não ser aplicável a exceção prevista no n.º 3 daquele artigo.

Como decorre do ponto 5., o Tribunal a quo fundamentou a admissão do acervo documental em causa (mais de 5000 páginas), precisamente nas exceções ao n.º 1 do artigo 423.º do CPC, referindo concretamente que “[h]á exceções, nomeadamente as previstas no n.º 2 e no n.º 3 do mesmo preceito legal. Neste caso, independentemente de decorrerem ou não mais de vinte dias, ainda que durante as férias judiciais, sobretudo, tendo em conta a complexidade dos autos e também os sucessivos requerimentos de alteração de prova que se foram sucedendo das várias partes, o Tribunal entendeu aplicar o n.º 2 do artigo 423º, admitindo a apresentação dos documentos, por pertinentes, condenando a apresentante em multa porque não provou que não tivesse podido oferecer aquela prova com o articulado.”

Apreciando. [...]

Vejamos, pois, se os documentos podem considerar-se como tendo sido apresentados dentro do prazo de 20 dias prévio à audiência final, que a lei lhe conferia para o efeito.

Contando para trás 20 dias corridos antes da data da primeira sessão da audiência final, que estava designada desde 17 de janeiro, e que teve efetivamente lugar no dia 12.09.2022, o dia 19.08.2022, data em que os documentos em causa foram apresentados, é anterior aos ditos 20 dias antes da audiência final.

Acontece que, o processo em apreço não é um processo urgente e o ato foi praticado no dia 19.08.2022, portanto, em plenas férias judiciais, que têm lugar entre o dia 16 de julho e o dia 31 de agosto, nos termos previstos no artigo 28.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

Ora, como decorre do disposto no artigo 138.º, n.º 1, do CPC, na parte que ora importa considerar, não sendo a requerida junção de documentos um “ato a praticar em processo urgente”, o prazo processual estabelecido por lei é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais.

A questão que se coloca na presente situação é a de saber se a suspensão dos prazos em férias judiciais se aplica a todos os prazos processuais, sejam progressivos (contagem para a frente) ou regressivos (contagem para trás).

Afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2019 [Proferido no processo n.º 587/17.9T8CHV-A.G1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.], que: «por regressivo” ou “por “prazo regressivo” ou “com contagem regressiva” se entende o prazo que se conta para trás por referência a certa data ou que tem como termo ad quem uma data futura. São exemplos deste tipo de prazos os fixados nos artigos 423.º, n.º 2, e 598.º, n.º 2, do CPC (…). Quando o legislador estabeleceu nas normas (equivalentes ou com idêntica redacção) do n.º 2 do artigo 423.º ou no n.º 2 do artigo 598.º do CPC que o acto deve ser praticado “até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final”, aquilo que visou foi evitar o protelamento ou a inoportunidade da apresentação de documentos e de alteração / aditamento do rol de testemunhas e a consequente perturbação que lhe é inerente ou, pela positiva, estabilizar estes meios de prova com certa antecedência em relação à realização da audiência final. (…)

Analisando (…) o disposto no artigo 138.º, n.º 2, do CPC de um ponto de vista formal, verifica-se que se trata de uma regra de alcance geral, integrada nas disposições comuns relativas aos actos processuais. Logo, ela é, em princípio, aplicável a todo o tipo de prazos. O certo é que nada na letra da lei impõe ou sequer sugere que ela se circunscreva aos prazos progressivos / exclua os prazos regressivos, não se vendo argumentos textuais para uma interpretação restritiva. (…)».

LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE [In Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina 2017, pág. 241.], em comentário ao artigo 423.º do CPC, afirmam que “[o] cômputo do prazo do n.º 2, idêntico ao estabelecido para o aditamento ou alteração do rol de testemunhas (art. 598-2), está sujeito às regras gerais dos arts. 138 a 140, o que implica nomeadamente que se suspenda em férias judiciais (art. 138-1), de modo que os 20 dias se contam excluindo-as. (…) A razão de ser do prazo estipulado (a preparação, nas melhores condições, da audiência final), conduz a esta interpretação.”

Também no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.04.2021 [Proferido no processo n.º 903/18.6T8PNF-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.. [...]], se considerou que “durante as férias judiciais (que decorreram de 22/12 a 3/1) todos os prazos processuais, incluindo os regressivos, se encontram suspensos (conforme estatui a lei – v. nº1, do art. 138º –, apenas com a ressalva dos aí expressamente consagrados: prazos de duração igual ou superior a seis meses e relativos a processos que a lei considere urgentes).”

Ao contrário da unanimidade a que se refere este aresto, a questão da relevância da contagem do prazo regressivo e da prática de um ato em férias judiciais não tem sido absolutamente unânime na doutrina e jurisprudência.

Na verdade, o citado aresto do STJ foi tirado em revista excecional, admitida precisamente por contradição de acórdãos (quanto à concreta questão decidenda [---], que não é a dos nosso autos), e foi comentado por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [Em paper publicado no Blog do IPPC em 02.10.2019.], defendendo que “[o] art. 138.º, n.º 2, CPC contém uma norma de protecção da parte: a parte não está obrigada a praticar o acto durante as férias judiciais. Mas desta regra de protecção da parte não pode ser retirado algo que desfavorece a parte: a irrelevância da prática de um acto durante as férias judiciais. A parte não tem o ónus de praticar o acto em férias, mas não está proibida de o fazer. Portanto, o acto praticado em férias deve ser considerado como qualquer outro acto”.

A posição assumida pelo Ilustre Mestre mereceu comentário discordante do Conselheiro URBANO A. LOPES DIAS [In Comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2019, publicado em 16.10.2019, no Blog do IPPC, disponível em https://blogippc.blogspot.com.], precisamente a respeito do aspeto que ora nos preocupa, ou seja, “na validade ou não validade do acto praticado por uma das partes em plenas férias judiciais e quando estava precludido o direito da mesma a praticar o mesmo”. Adaptando ao caso em presença a posição ali expressa, o que releva in casu é saber se a parte que apresenta o requerimento para junção de documentos em férias pode beneficiar da contagem desse prazo em dias corridos, caso no momento dessa apresentação já tenha sido ultrapassado o prazo processual com o limite de 20 dias de antecipação relativamente à audiência final, que vem previsto no n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil.

Prosseguindo, refere cristalinamente o Senhor Conselheiro: “[a] nossa resposta, servindo-nos aqui de IHERING, é negativa: com efeito, o respeito pelos prazos fixados (aspecto formal) é o inimigo do arbítrio. (…)

A concessão, ainda que de um dia, a uma das partes para além do estatuído legalmente, desequilibra a função do juiz, favorecendo uma em prejuízo da outra. Não pode ser!

ALBERTO DOS REIS esclarece, a este respeito, que “os actos judiciais não podem ser praticados em qualquer tempo; há dias e épocas em que é vedada a prática deles”, adiantando até que a contravenção a esta regra importa a nulidade do acto.

E, mais à frente, citando CARNELUTTI, conta que o prazo “tem dois extremos, que são precisamente dois pontos, isto é, dois dias: o dia do início ou da partida (dies a quo) e o dia do termo ou do vencimento (dies ad quem); a distância entre os dois pontos marca a sua duração.”

Com efeito, explicita, “em férias judiciais não se praticam actos judiciais, excepção feita aos casos supra mencionados (artigo 137.º, n.º1, do Código de Processo Civil).

E, caso o prazo para a sua realização já esteja a correr antes de férias, suspende-se durante o período de tempo das mesmas, voltando a correr até ao seu terminus”.

E isto é assim tanto quanto o dies a quo da contagem do prazo é o ponto de partida para diante, ou seja, quando a contabilização do prazo se faz em sentido progressivo, como quando, é o dies ad quem do prazo que está marcado. Sendo esse dia o termo, a contagem do prazo concedido à parte faz-se desse dia para trás, daí ser denominado prazo regressivo, porque a sua contabilização se efetua regressivamente a partir de um momento temporal futuro. [...]

Revertendo ao caso em presença, tendo a audiência final tido o seu início na data agendada, ou seja, em 12.09.2022, efetuando a referida contagem em sentido regressivo, decorreram 11 dias até ao dia 01.09.2022, suspendendo-se o prazo entre o dia 31.08.2022 e 16.07.2022, e voltando a contabilizar-se os restantes nove dias, também regressivamente, desde 15.07.2022, inclusive, verificamos que a apresentação dos documentos teria que ser efetuada até ao dia 06.07.2022 [---].

Consequentemente, a documentação apresentada pela Apelada em 19.08.2022 não pode considerar-se tempestivamente efetuada, com base na exceção prevista no n.º 2 do artigo 423.º do CPC, porquanto este prazo já tinha terminado quando o requerimento foi por si atravessado no decurso das férias judiciais.".

*3. [Comentário] Agradece-se a gentileza da citação, mas continua a ter-se muitas dúvidas sobre a bondade da solução adoptada no acórdão (aliás, seguida pela generalidade da jurisprudência). No fundo, a pergunta que se pode fazer é a seguinte: o que pode impedir que o documento seja entregue, dentro do prazo regressivo de 20 dias, em férias judiciais, se a parte contrária em nada é prejudicada, dado que o seu prazo de contraditório nunca vai correr nessas mesmas férias?

Repare-se que não se diz que, entre a entrega do documento e a data da realização da audiência final, tem de decorrer, fora das férias judiciais, um prazo suficiente para o exercício do contraditório pela parte contrária. O que se diz é que o prazo de regressivo de 20 dias não corre em férias judiciais. Mas porquê, se a parte contrária em nada é prejudicada com essa circunstância?

MTS