"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/12/2023

Jurisprudência 2023 (66)


Embargos de terceiro;
herança indivisa; penhora de quinhão


1. O sumário de RE 30/3/2023 (2276/21.0T8STB-A.E1) é o seguinte:

Não tendo sido penhorado qualquer bem imóvel ou quota-parte deste pertencente à executada, mas apenas o quinhão da executada na herança indivisa em causa, a penhora e subsequente venda deste direito não ofende a posse ou o direito de habitação que a embargante, co-herdeira na herança, eventualmente detenha sobre imóvel que integra a referida herança, não tendo, por conseguinte fundamento para a dedução de embargos de terceiro.


2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

1. Na decisão recorrida indeferiu-se liminarmente a petição, ao abrigo do disposto nos artigos 226º, n.º 4, alínea a), 345º e 590ºº, n.º 1, do Código de Processo Civil, por não estarem reunidos os pressupostos exigidos pelo artigo 342º do Código de Processo Civil para a dedução em embargos de terceiros, com os fundamentos seguintes:

«Conforme surge evidenciado dos autos, na execução principal não se encontra penhorada nenhuma quota-parte da fracção autónoma onde a embargante reside e que integra a herança indivisa aberta por óbito de BB.

Com efeito, a penhora ali realizada incide antes sobre o direito ao quinhão hereditário da executada em tal herança, sendo esta um património autónomo que inclui o referido imóvel.

O que significa que a executada não é titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel em causa, mas apenas titular do quinhão hereditário na referida herança, à qual pertence o imóvel.

Por isso mesmo, a penhora foi efectuada nos termos do art. 781.º, n.º 1 do CPC, tendo a ora embargante sido notificada na qualidade de cabeça-de-casal.

Assim sendo, em nenhum momento foi penhorado o imóvel de que a embargante se diz possuidora, não tendo sequer sido afectado o seu direito (quinhão) na referida herança.

Note-se que o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência terá de ser aferido em função dos efeitos da penhora (indisponibilidade material ou jurídica do bem) e do propósito de viabilização da venda executiva e dos efeitos desta.

O direito do terceiro será, então, incompatível com a penhora se puder constituir impedimento à realização da venda executiva ou se não caducar por efeito da venda executiva (cfr. artigo 824º, n.º 2 do Cód. Civil).

Assim, são incompatíveis com a penhora, numa acção executiva, o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, virão a extinguir-se com a venda executiva, nos termos do art. 824.º n.º 2 do Cód. Civil (vd., Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, 3.ª Ed., pág. 663).

Ora, mesmo que o direito da executada possa vir a ser transmitido por venda na execução, tal não implica qualquer ofensa ao direito da ora embargante, mas apenas uma alteração na titularidade do quinhão pertencente à executada.

Deste modo, é evidente que os fundamentos alegados pela embargante não se ajustam à previsão do art. 342º do CPC, nem a embargante tem legitimidade para deduzir embargos à penhora do quinhão hereditário da executada.

Acresce ainda que os demais fundamentos aduzidos, atinentes à exigibilidade da quantia exequenda, só podem ser invocados pelos executados (cfr. art. 728.º n.º 1 do C.P.C.). (…)»

2. A embargante/recorrente discorda desta decisão, argumentando que penhorar um quinhão hereditário que integra apenas um bem, na prática corresponderá à penhora de quota-parte desse imóvel, que a venda desse quinhão hereditário implicará a venda de todo o imóvel ou da referida quota-parte que pertencerá à executada em virtude da partilha que obrigatoriamente terá de se fazer, em prejuízo do seu direito a habitar o imóvel, onde reside há 45 anos, e que já tem 85 anos e não tem meios financeiros para adquirir a quota-parte do imóvel que pertence à executada. [...]

Vejamos:

3. Como se sabe, os embargos de terceiro servem para quem não é parte na causa reagir contra a penhora ou outro acto de apreensão ou entrega de bens, alegando a ofensa da sua posse ou a titularidade de outro direito incompatível com a diligência realizada ou com o seu âmbito, podendo ser requeridos a título repressivo ou preventivo (cf. artigos 342º, n.º 1, e 350º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Nos termos do artigo 342.º, nº 1, do Código de Processo Civil [também aplicável aos embargos preventivos, com as necessárias adaptações – cf. artigo 350º, n.º 1, do Código de Processo Civil], “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer deduzindo embargos de terceiro”.

Assim, são pressupostos da procedência do referido incidente:

- A existência de uma posse real e efectiva sobre um bem (ou de outro direito incompatível com o âmbito da diligência);

- A ofensa desse direito mediante penhora, ou outro acto de apreensão ou entrega de bens ordenado judicialmente;

- A qualidade de terceiro do embargante, que não pode ser parte na causa.

4. No caso em apreço, não subsistem dúvidas de que a embargante tem a qualidade de terceiro, porquanto não é parte no processo executivo onde foi realizada a penhora e onde poderá vir a ter lugar a venda executiva que invoca como lesiva do seu direito.

Porém, ao contrário do alegado, nem a penhora nem a venda do “bem” penhorado implicam lesão para o direito da embargante, seja ele o direito decorrente da posse do imóvel que identifica ou o direito à habitação.

Na verdade, como se diz na decisão recorrida, e resulta dos factos apurados, não foi penhorado nos autos, para posteriormente ser vendido em sede executiva, qualquer imóvel, nem quota-parte de imóvel pertencente à executada DD. A penhora incidiu, antes sobre o direito ao quinhão hereditário da executada na herança de BB, sendo esta um património autónomo que inclui o referido imóvel.

O que significa que a executada não é titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel em causa, o qual não invoca, mas apenas titular do quinhão hereditário na referida herança, que integra o imóvel.

Por conseguinte, a penhora foi efectuada nos termos do artigo 781º do Código de Processo Civil [correspondente ao anterior artigo 862º], onde se estabelece as especialidades do procedimento da penhora que tenha por objecto o quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, prescrevendo-se a este respeito no n.º 1 que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada.”

Ora, deste acto, não decorre ofensa de qualquer direito da embargante, o qual só afecta o direito da executada na dita herança, que poderá vir a ser objecto de venda executiva.

E também não vemos que desta venda possa resultar ofensa da alegada posse sobre o imóvel (relativamente à qual nem sequer foram alegados os factos integradores, mas tão só o facto de habitar no imóvel há “longos anos”), ou do direito a habitar nele, pois o que será eventualmente transmitido na execução é o direito que a executada tem na dita herança, ainda que o imóvel seja o único bem que a integre.

A única diferença é que, a concretizar-se a venda executiva, a quota-parte da executada na herança, que foi penhorada, mudará de titular, passando da executada para o adquirente, só havendo lugar à venda do património autónomo, constituído pela herança na sua totalidade, se os co-titulares assim o pretenderem (cf. n.º 2 e 4 do artigo 781º do Código de Processo Civil).

Questão diferente é a de na partilha da herança haver o risco de o imóvel que a integra vir a ser adquirido por outro co-titular do direito, mas esse risco já existia, pois qualquer dos herdeiros poderia por fim à indivisão da herança, requerendo inventário. A única diferença é que nessa partilha, tendo sido vendido o quinhão hereditário, a quota-parte da executada na herança terá outro titular, que não a executada.

Deste modo, conclui-se que não tendo sido penhorado qualquer bem imóvel ou quota-parte deste pertencente à executada, mas apenas a quota-parte desta na herança indivisa em causa, a penhora e subsequente venda deste direito não ofende a posse ou o direito de habitação que a embargante, co-herdeira na herança, eventualmente detenha sobre imóvel que integra a referida herança, não tendo, por conseguinte fundamento para a dedução de embargos de terceiro.

Assim, tendo-se por manifesta a improcedência da pretensão da embargante, tinham os embargos que ser liminarmente indeferidos, como sucedeu."

[MTS]