"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/06/2024

"A usucapião é um facto aquisitivo de um direito real de gozo" -- qual das palavras não se percebe?


I. 1. Num paper hoje publicado no Blog, o Cons. Urbano Dias reconhece que, apesar de a usucapião ser um título de aquisição da propriedade, 

"[...] nada pode impedir que os RR., pretendendo obstar à procedência da acção intentada pelos AA., para além de negarem os factos por estes alegados (“o que o AA. dizem não é a verdade”), aleguem os factos, todos os factos, conducentes à aquisição por usucapião, que, a serem estes dados como provados, obriga o juiz a não dar como provados os que foram alegados na petição inicial pelos AA. e, em consequência, a julgar a acção improcedente".

Salvo o devido respeito, mesmo sem entrar em todos os seus pormenores desta afirmação, não se pode acompanhar a solução proposta.

2. Antes do mais, convém lembrar a noção de usucapião que consta do art. 1287.º CC: "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião". É, por isso, bem claro que a usucapião é um facto aquisitivo de um direito real de gozo e, em especial, da propriedade, como, aliás, é comprovado pelo estabelecido no art. 1316.º CC.

Como qualquer facto aquisitivo (ou constitutivo), a usucapião só pode ser alegada pelo demandado através da dedução de um pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, CPC (e, em especial, n.º 2, al. d)). É algo que não pode merecer nenhuma dúvida.

Por tudo isto, não se pode dizer que existam quaisquer incertezas sobre a caracterização da usucapião e sobre o modo de o demandado a fazer valer em juízo. Tudo é claro, indiscutível e coerente.

Perante estes dados, não se torna fácil criticar uma posição que se desvia do que é certo e irrefutável. O que está em causa não é uma questão de opinião e, portanto, uma questão em relação à qual se possam esgrimir argumentos a favor ou contra, mas antes uma posição que contraria premissas indiscutíveis fornecidas pelo ordenamento jurídico. É como pretender argumentar contra o entendimento de que a contradição entre a causa de pedir e o pedido não origina a ineptidão inicial ou que a falta de pronúncia sobre uma questão levantada pelas partes não origina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Para além da incompatibilidade com os dados legais, os argumentos invocáveis não são muitos.

Ainda assim, não deixa de se fazer um esforço para demonstrar que a usucapião não pode cumprir outra função no processo (e, em especial, numa acção de reivindicação) que não a de facto aquisitivo de um direito real e, em particular, da propriedade. Para simplificar a exposição, recorre-se, de agora em diante, apenas à propriedade.

3. a) O disposto nos art. 1287.º e 1316.º CC é absolutamente claro: a usucapião é um título de aquisição da propriedade. Assim, a falar-se de um efeito impeditivo da usucapião (o que não tem qualquer apoio legal), isso só poderia suceder como reflexo do reconhecimento da propriedade com base na própria usucapião. Isto é, a insistir-se em falar de um efeito impeditivo (ou até, como já sucedeu na jurisprudência, de um efeito extintivo) da usucapião, isso só poderia decorrer do reconhecimento da propriedade do demandado através da usucapião. Sendo assim, a aceitar-se que é possível atribuir uma eficácia impeditiva à usucapião, isso só pode suceder como reflexo do reconhecimento da aquisição da propriedade pelo demandado, nunca como um efeito autónomo desta aquisição.

Este é um dos mais evidentes equívocos da orientação em apreciação. Efectivamente, a pretender atribuir-se à usucapião a produção de um efeito impeditivo, este efeito nunca pode ser um efeito autónomo do efeito aquisitivo da propriedade. Primeiro, o réu é reconhecido, com fundamento na usucapião, como proprietário; depois, com base neste efeito aquisitivo, fica assente que o título de aquisição alegado pelo autor reivindicante, mesmo que exista e seja reconhecido, não pode produzir nenhuns efeitos. Por exemplo: apesar de se reconhecer que o autor comprou o imóvel, não pode ser reconhecido como proprietário, porque o demandado adquiriu a propriedade desse imóvel por usucapião. Portanto, a usucapião nunca produz um autónomo efeito impeditivo; antes de produzir este alegado efeito impeditivo tem de produzir o necessário efeito aquisitivo. Daí que a usucapião ou vale no processo como facto aquisitivo da propriedade ou não pode cumprir nenhuma outra função no processo.

Contra esta crítica poder-se-ia objectar que o demandado, ao invocar a usucapião como facto impeditivo, está implicitamente a pedir que seja reconhecido como proprietário. Trata-se de uma objecção sem sentido. O reconhecimento da aquisição da propriedade através da usucapião tem de ser solicitado através da dedução de um pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, al. d), CPC). Como é claro, este reconhecimento explícito não pode ser substituído por nenhum reconhecimento implícito, desde logo porque isso teria como consequência retirar qualquer sentido prático à imposição da dedução do pedido reconvencional.

b) Recorde-se que a usucapião também pode ser invocada pelo demandante como causa de pedir do seu pedido de reivindicação. Pergunta-se: alguma vez se aceitou que o demandante pode pedir apenas o reconhecimento de que se verificou a usucapião, de molde a "impedir" o reconhecimento do réu como proprietário, sem simultaneamente pedir o reconhecimento da aquisição da propriedade?

Não é preciso responder, mas interessa perceber porque não é possível ao demandante invocar a usucapião sem, ao mesmo tempo, pedir o efeito aquisitivo que dela decorre. A razão é muito simples: é porque a usucapião produz um único efeito, que é a aquisição da propriedade; sendo assim, esse feito ou é pedido ou não é pedido pelo demandante. O que não pode suceder é que seja pedido pelo demandante algo de diferente do efeito de aquisição da propriedade. A usucapião produz um efeito legal perfeitamente definido nos art. 1287.º e 1316.º CC, pelo que não está na disponibilidade dessa parte alterar esse efeito ou substituí-lo por qualquer outro.

Se é assim para o demandante, não se percebe como é que pode não ser assim para o demandado, ou seja, como é que o demandado pode invocar a usucapião sem, ao mesmo tempo, extrair dele o efeito de aquisição da propriedade (e sem o invocar através de um pedido reconvencional). Em última análise, seria o princípio da igualdade das partes que seria violado, dado que se permitiria ao réu o que -- aliás, com toda a justificação e de acordo com todos os parâmetros processuais -- não se permite ao autor.

c) A usucapião é um facto aquisitivo da propriedade, naturalmente uno e indivisível. Na sequência da invocação da usucapião só se pode invocar um efeito: a aquisição da propriedade. Isto tem de valer em qualquer processo e para qualquer das partes.

É por isso que permitir a invocação da usucapião como um facto impeditivo pelo demandado padece de vários equívocos, sendo os mais patentes o de se aceitar que a usucapião cumpra no processo uma função diferente da de facto aquisitivo e independente do reconhecimento do seu efeito aquisitivo, bem como o de se admitir que a usucapião possa ser invocada em juízo sem ser através da reconvenção.

4. Importa ainda recordar que o art. 1316.º CC enuncia, além da usucapião, outros títulos de aquisição da propriedade. Imagine-se que, em vez de o réu demandado na acção de reivindicação invocar a usucapião, esse demandado alega a aquisição da propriedade por contrato de compra e venda. Cabe perguntar: alguma vez se entendeu que esse demandado pode invocar essa aquisição contratual, não para ser reconhecido como proprietário, mas para obstar à procedência da acção de reivindicação?

Novamente, não é preciso responder. Fica então sem se perceber o que há de especial na usucapião que justifica um tratamento diferenciado dos demais títulos de aquisição da propriedade. Ou será que se quer estender a solução que é proposta para a usucapião aos demais títulos de aquisição da propriedade e que, afinal, todos estes títulos podem valer apenas como factos impeditivos da procedência da acção de reivindicação? Será que se quer admitir que o demandado invoque a sua qualidade de sucessor, não para ser reconhecido como proprietário da coisa, mas antes para obstar ao reconhecimento do autor como proprietário?

5. Do exposto decorre que a invocação pelo demandado numa acção de reivindicação de um efeito impeditivo decorrente da usucapião não pode produzir nenhuns efeitos. Não só se invoca um efeito desconhecido da ordem jurídica (onde se consagra nesta ordem que a usucapião produz um efeito impeditivo?), como se alega a usucapião através de um meio processual que não é o adequado.

II. 1. Refere ainda o Cons. Urbano Dias

"[...] que, na prática, o que acontece, sobretudo, nos meios rurais, é os RR. contentarem-se apenas com a não prova do direito dos AA. (“eles bem diziam que o prédio era deles, mas não o provaram”)."

Não se discute a prática, mas, para além do que acima se referiu, não pode deixar de se chamar a atenção para os estranhos resultados a que ela conduz. Uma vez que a usucapião não é invocada como facto aquisitivo da propriedade, está excluído, sob pena de excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), que o tribunal reconheça o réu como proprietário. Portanto, a consequência da referida solução é a de que a acção de reivindicação é considerada improcedente e, em concreto, a de que a coisa não é considerada nem como pertencendo ao autor, nem como pertencendo ao réu. Em termos mais simples, o resultado da acção (um "nem/nem") é a de transformar, entre as partes, a coisa numa res nulius.

O resultado é estranho e, como se referiu, a ordem jurídica fornece todos os elementos e faculta todos os instrumentos para o evitar. Basta que seja respeitado o efeito aquisitivo da usucapião e que, portanto, o demandado peça a sua produção através da dedução de um pedido reconvencional. Neste caso, o resultado da acção será, na enorme maioria das situações, o reconhecimento de uma das partes como proprietária da coisa (ou seja, em vez de um “nem/nem”, passa-se para um “ou/ou”). Não é preciso discutir qual é a solução que a ordem jurídica quer evitar e qual aquela que ela quer atingir (e para a qual, como se disse, fornece todos os elementos e faculta todos os instrumentos).

2. Visto por uma outra perspectiva, a conduta do réu que não reivindica a coisa para si, mas pretende impedir a procedência da acção de reivindicação, também é bastante discutível pelo ângulo da litigância de boa fé, dado que há boas razões para entender que esse réu está a fazer um uso reprovável dos meios processuais (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC). O réu alega um título de aquisição da propriedade, não para obter um resultado favorável para si, mas antes para obstar a um resultado favorável ao autor. Não é certamente impossível admitir que o demandado que assim actua em juízo litiga de má fé, porque, no fundo, utiliza a alegação de um facto aquisitivo para obter uma finalidade distinta de um efeito aquisitivo.

Importa lembrar que, quem invoca a usucapião, alega necessariamente que é proprietário da coisa (precisamente porque a adquiriu através da usucapião). Perante isto, como se pode admitir, nos parâmetros de boa fé das partes que devem orientar o processo civil, que quem é proprietário possa utilizar essa sua qualidade, não para obter o reconhecimento do seu direito, mas antes para obstar ao reconhecimento do autor como proprietário?

É, aliás, muito fácil demonstrar que a alegação pelo demandado de um efeito impeditivo da usucapião é auto-contraditória. O demandado invoca que é proprietário da coisa, porque a adquiriu por usucapião (a alegação da usucapião só pode ter este efeito), mas, ao mesmo tempo, “proíbe” o tribunal da acção de o reconhecer como proprietário.

III. Importa concluir este breve apontamento.

A solução agora criticada mostra, até pelas estranhas consequências a que conduz para as partes e para a ordem jurídica, que o que é equivocado é precisamente o ponto de partida: admitir-se que o réu pode transformar um facto aquisitivo num facto impeditivo e pode querer que a usucapião cumpra em juízo qualquer outra função que não a de aquisição da propriedade.

MTS