"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/06/2024

Jurisprudência 2023 (188)


Processo de inventário;
dívidas da herança


1. O sumário de RL 26/10/2023 (768/21.0T8MFR.L1-8) é o seguinte:

- Dívidas da herança são aquelas que o falecido tinha à data da sua morte, a que a lei equipara as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, e o cumprimento dos legados (art.º 2068º do CC).

- Apenas as benfeitorias feitas em vida do inventariado, quer por este em prédio alheio, quer por terceiro em bens da herança devem ser relacionadas no inventário.

- As benfeitorias descritas na relação de bens, porque realizadas pelo cabeça de casal, que é interessado direto na partilha – e não terceiro -, e em data posterior ao decesso dos inventariados, não constituem dívidas da herança.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3. Da relacionação das benfeitorias e despesas com IMI como passivo da herança

O apelante relacionou como passivo da herança benfeitorias por si efetuadas nos imóveis que descreveu no ativo, em 2018-2019 (verba 1 do passivo) e 2020-2021 (verba 2 do passivo), bem como o pagamento de IMI dos anos de 2018 a 2022.

Dispõe o artº 1098º, nº 7 do CC que, na relação de bens, o cabeça de casal deve observar as seguintes regras: “as benfeitorias efetuadas por terceiros em prédio da herança são descritas como dívidas, quando não possam, sem detrimento, ser levantadas por quem as realizou.”

“Compete ao cabeça de casal relacionar todos os bens da herança. Como tais se consideram os que se encontravam na posse do inventariado ao tempo da sua morte, presumindo-se propriedade do falecido todos os objetos encontrados na sua residência. (…)

Claro que são de atender apenas as benfeitorias feitas em vida do inventariado, quer por este em prédio alheio, quer por terceiro em bens da herança. As que forem feitas no decurso do inventário pelo cabeça de casal entram como verba de despesas nas contas que, em cumprimento da lei, lhe cumpre apresentar oportunamente (…)” [Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Almedina, 4ª edição, vol. I, pág. 425 e 433.– sublinhado nosso.

Dívidas da herança são aquelas que os falecidos tinham à data da sua morte, a que a lei equipara as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, e o cumprimento dos legados (art.º 2068º do CC).

“Mas nada justifica que se relacionem as benfeitorias feitas após o óbito, quer pelos herdeiros quer por outras pessoas alheias à herança.

Como vimos, a herança responde, além do mais, pelo pagamento das dívidas do falecido, ou seja, as contraídas em vida pelo autor da herança, o que é natural. Ora as benfeitorias realizadas após a morte não podem ser consideradas dívidas do falecido. Pelos encargos posteriores ao falecimento, a herança apenas responde pelas despesas referidas no citado artigo 2068º, o que bem se compreende.

Existe sem dúvida uma grande diferença entre as dívidas contraídas antes e depois do falecimento. As primeiras são dívidas da herança, pois se trata de relações jurídicas patrimoniais da titularidade do falecido e existentes à data da morte; o mesmo não sucede, naturalmente, com as outras.

Como estabelece o artigo 1326º [1082.º] do CPC, o processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e que devam ser partilhados entre os herdeiros. (…)

Diz a agravante que no artigo 2068º estão contemplados, entre outros, os encargos com a administração do património, nele se integrando os encargos ordinários destinados à conservação do património a partilhar. E na verdade, face ao aí referido, apenas a este título poderiam ser admitidas as benfeitorias, pois se entenderia que estavam englobadas na administração do património hereditário.

Mas, a ser necessária a realização de obras, deviam as mesmas ser feitas pela cabeça de casal, entrando então como verbas de despesas que eventualmente viesse a apresentar, por exemplo na acção de prestação de contas. Com efeito estabelece o artigo 2079º que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal. Ora, as alegadas benfeitorias não constituem necessariamente actos de administração, nem a agravante estava autorizada a fazê-las. E é ao cabeça de casal que compete a administração dos bens do falecido ate á liquidação e partilha (art.º 2087º). E então há que distinguir os poderes da mera administração dos poderes de disposição.

A agravante invoca ainda o preceituado no nº 5 do art.º 1345º [n.º 6 do art. 1098.º] do CPC, segundo o qual as benfeitorias pertencentes à herança são descritas em espécie, quando possam separa-se do prédio em que foram realizadas, ou como simples créditos, no caso contrário; as efectuadas por terceiros em prédio da herança são descritas como dívidas, quando não possam ser levantadas por quem as realizou.

Mas, como se disse, apenas devem ser relacionadas e depois descritas as benfeitorias feitas em vida do inventariado. Para os efeitos de inventário apenas há a tomar em consideração, além das referidas, que têm carácter excepcional, (art.º 2068º) as obrigações do falecido existentes à data da sua morte. E este artigo do CPC não indica (nem tinha que indicar) quais as benfeitorias a relacionar. Nele apenas de refere o modo como devem ser descritas as benfeitorias relacionadas.

Com efeito, as benfeitorias realizadas por terceiros, ou mesmo por um herdeiro, em bens da herança, após o óbito do inventariado, constituem matéria alheia ao inventário e, por isso, não devem ser relacionadas como passivo da herança.

Esses eventuais créditos poderão ser exigidos pelos meios comuns. Mas não são dívidas da herança, pelo que não devem como tal ser relacionadas.” [Ac. RL de 24/05/2005, proc. nº 10145/2004-7, in www.dgsi.pt]

As benfeitorias descritas na relação de bens, porque realizadas pelo cabeça de casal, que é interessado direto na partilha – e não terceiro -, e em data posterior ao decesso dos inventariados, não constituem dívidas da herança.

O pagamento dos impostos relativamente a bens da herança, como o IMI, referente aos anos de 2018 a 2021, efetuado pelo cabeça de casal, em data posterior ao óbito dos inventariados, devem ser pagos pelos herdeiros, constituindo despesas de administração da herança.

Não sendo dívidas dos inventariados não devem integrar a relação de bens."

[MTS]