Suspensão da instância;
prejudicialidade
I. O sumário de RG 16/11/2023 (33/22.6T8MGD.G1) é o seguinte:
1 – Transitada em julgado a decisão que não admitiu a reconvenção, relativa ao exercício de direito de preferência, é admissível aos réus/reconvintes requerer que o depósito autónomo, efetuado à ordem do processo para pagamento do preço, seja reafectado a outro processo.
2 – Esse depósito deixou de exercer qualquer função útil no processo, a quantia depositada pertence aos réus, têm o direito de dispor dela e se podem proceder ao depósito de tal quantia noutro processo em que são parte, por identidade de razão, podem legitimamente requerer a sua afetação ao aludido processo. Não existe nenhuma razão substancial para impor aos réus o levantamento da aludida quantia e o seu posterior depósito à ordem daquele processo, quando com um único acto isso pode ser realizado.
3 – Para que possa ser suspensa a instância, com o fundamento previsto no art. 272º, nº 1, 1ª parte, do CPC, tem de existir um nexo de dependência entre duas ações, traduzido em a apreciação do litígio na ação dependente estar condicionada pelo que venha a decidir-se na causa prejudicial.
4 – Exercendo os autores, na qualidade de comproprietários, a preferência na venda de metade indivisa de prédio rústico, constitui causa prejudicial a ação em que os réus alegam a simulação do contrato de doação pelo qual os autores adquiriram a outra metade indivisa, que sustentam ser um contrato de compra e venda e só ter assumido a forma de negócio gratuito para frustrar o exercício da preferência que lhes assistia, e em que se propõem exercer, enquanto proprietários de prédio rústico confinante, o direito de preferência no aludido negócio de alienação de metade indivisa do prédio rústico. Caso a ação prejudicial venha a proceder, os aqui réus serão titulares precisamente do direito com base no qual os aqui autores pretendem exercer o direito de preferência sobre a outra metade indivisa do prédio, pelo que destruirá o fundamento da alegada preferência na alienação da metade indivisa daquele prédio.
5 – Nos termos do art. 272º, nº 2, do CPC, o juiz não deve ordenar a suspensão se houver razões para crer que a causa prejudicial foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
6 – Quanto à primeira situação, a lei utiliza a expressão “unicamente”, pelo que se exige a evidência de que a ação que constitui a causa prejudicial tenha sido proposta exclusivamente com o objetivo de obter a suspensão da instância. Portanto, tem de haver o propósito único de obstar ao prosseguimento da ação dependente e, consequentemente, que não seja discernível qualquer outro motivo legítimo subjacente à propositura da ação prejudicial.
7 – No que concerne à segunda situação, é necessário que o juiz, depois de apreciar as consequências da suspensão resultantes do tempo previsível de duração da ação prejudicial, conclua que os prejuízos da suspensão superam as vantagens.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Impugnam os Recorrentes a decisão que declarou suspensa a instância com fundamento na pendência de causa prejudicial.
Nos termos do artigo 269º, nº 1, al. c), do CPC, a instância suspende-se quando o tribunal a ordenar. Explicita o artigo 272º, nº 1, 1ª parte, do CPC que «o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta».
Para que possa ser suspensa a instância tem de existir um nexo de dependência entre duas ações, traduzido em a apreciação do litígio na ação dependente estar condicionada pelo que venha a decidir-se na causa prejudicial. Segundo Miguel Teixeira de Sousa [CPC online, versão de junho de 2023, em anotação ao art. 272º do CPC.], «a prejudicialidade entre acções verifica-se quando o que é decidido numa delas (a acção prejudicial) condiciona o que pode ser decidido na outra (a acção dependente)». Por sua vez, na definição de José Alberto dos Reis [Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, pág. 268.], «uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda». Em suma, é necessário que o julgamento da causa prejudicial possa afetar a decisão a proferir na ação dependente.
No caso vertente, os Recorrentes começam por questionar o juízo formulado sobre a existência de prejudicialidade entre as duas causas, mas não lhes assiste razão.
Isto porque no processo 18/23.5T8MGD aprecia-se questão cuja decisão, a ser julgada procedente tal ação, modifica a situação jurídica que tem de ser atendida no julgamento da presente ação.
Na presente ação os Autores exercem o direito de preferência relativamente aos prédios identificados em 1.1., entre os quais figura o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...44 da freguesia e concelho .... Os Autores são titulares de metade indivisa de tal prédio e propõem-se exercer, enquanto comproprietários, o direito de preferência na venda entretanto ocorrida, entre o 1º e os 2ºs. Réus, da outra metade indivisa desse prédio.
Na ação que o Tribunal a quo considerou causa prejudicial os aqui 2ºs Réus alegam, na parte relevante para a apreciação da relação de dependência, a simulação do contrato de doação pelo qual os aqui Autores adquiriram metade indivisa do mencionado prédio rústico com o artigo matricial ...44, sustentando que se destinou a frustrar o exercício do direito de preferência de que os aqui Réus DD e EE «dispunham, por já serem, a essa data, proprietários do prédio rústico com o artigo matricial ...46, da freguesia e concelho ..., que confina com o simuladamente doado». Alegam que não ocorreu qualquer doação, mas sim a venda de metade indivisa de tal prédio, cujo preço está «compreendido no preço global de € 75.000,00 pelos quais os prédios foram efectivamente comprados e vendidos».
No processo 18/23.5T8MGD pretendem os aí demandantes que se reconheça que o contrato «foi celebrado com simulação de preço e simulação relativa com referência ao prédio rústico» e que lhes assiste, enquanto proprietários de prédio rústico confinante, o direito de preferência no aludido negócio de alienação de metade indivisa do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...44.
Portanto, a procedência dos efeitos jurídicos visados na ação com o nº 18/23.5T8MGD é suscetível de conferir aos Réus o direito de preferência e, consequentemente, a aquisição de metade indivisa do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...44 da freguesia e concelho ....
Se assim vier a suceder, os aqui Réus serão titulares precisamente do direito com base no qual os Autores pretendem exercer o direito de preferência sobre a outra metade indivisa do aludido prédio.
Deste modo, a procedência da causa prejudicial retirará – destruirá – o fundamento da alegada preferência na alienação da metade indivisa daquele prédio rústico.
Por isso, é manifesto que a decisão da presente causa está dependente do julgamento da causa do processo 18/23.5T8MGD: a apontada causa prejudicial tem por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada nesta ação.
Argumentam os Recorrentes que a propositura da ação com o nº 18/23.5T8MGD constitui uma manobra dilatória, por ter sido intentada «quando há mais de 9 anos o ½ do prédio se encontra registado a favor dos aqui Autores» e por o presente processo já se encontrar «em fase de agendamento de audiência de julgamento, não havendo lugar a mais articulados».
Sintetizam na conclusão 25ª que «qualquer eventual direito dos R.R., há muito que, se o tivessem, o teriam exercido, não podendo serem os Autores coartados, no direito de ver o seu processo decidido em Tribunal, tempo útil.»
Está agora em apreciação se a situação dos autos se subsume à previsão do nº 2 do artigo 272º do CPC, segundo a qual o juiz não deve ordenar a suspensão se houver razões para crer que a causa prejudicial foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
Preveem-se nessa disposição duas situações distintas: a) a ação prejudicial ter sido proposta apenas para se obter a suspensão; b) os prejuízos da suspensão superarem as vantagens devido ao adiantado da ação dependente.
Quanto à primeira situação, a lei utiliza a expressão “unicamente”, pelo que se exige a evidência de que a ação que constitui a causa prejudicial tenha sido proposta exclusivamente com o objetivo de obter a suspensão da instância. Portanto, tem de haver o propósito único de obstar ao prosseguimento da ação dependente e, consequentemente, que não seja discernível qualquer outro motivo legítimo subjacente à propositura da ação prejudicial.
No que concerne à segunda situação, é necessário que o juiz, depois de apreciar as consequências da suspensão resultantes do tempo previsível de duração da ação prejudicial, conclua que os prejuízos da suspensão superam as vantagens.
Posto isto, não há rigorosamente qualquer elemento que permita afirmar que a ação prejudicial foi proposta pelos Réus com o exclusivo objetivo de conseguir a suspensão da instância. Estamos perante duas teses – a dos Autores e a dos Réus DD e EE – plausíveis e viáveis. A dos Réus não é menos plausível do que a dos Autores, atento o circunstancialismo que antecedeu e enformou o negócio (designadamente que os bens, em 18.06.2014, vieram onerosamente à titularidade de FF – mediante negócio no qual foi interveniente o pai da sua filha –, a qual, por sua vez, logo em 12.09.2014, declara vender aos Autores o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art. ...29 na freguesia e concelho ..., e doar igualmente aos Autores metade indivisa do prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ...44; quer dizer, o direito foi adquirido onerosamente e passados uns meses a referida FF doa aos Autores metade do prédio correspondente ao artigo 344), e que a doação obstava ao exercício do direito de preferência. Segundo os Réus, apenas tomaram conhecimento dos factos que alegaram na causa prejudicial aquando da preparação da contestação apresentada nestes autos com o nº 33/22.... e essa alegação não é infirmada por qualquer elemento dos autos.
Por outro lado, não há qualquer evidência de que os prejuízos resultantes da suspensão sejam superiores às vantagens. Aliás, os Recorrentes não invocam qualquer prejuízo concreto, pois limitaram-se a enquadrar a questão no plano moral e a afirmar que têm direito a ver o seu processo decidido em “tempo útil”. Nesse plano argumentativo, tanto Autores como Réus têm direito à tutela efetiva dos direitos que invocam, pelo que inexiste, por enquanto, qualquer elemento substancial que torne aceitável ou tolerável o proferimento de decisões contraditórias ou incompatíveis entre si, que é algo que poderia ocorrer se a instância nesta ação não fosse suspensa. Com efeito, nada garante que, não se suspendendo esta ação dependente, a decisão que nela viesse a ser proferida fosse compatível com aquela que venha a ser proferida na ação prejudicial."
[MTS]
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