"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/06/2024

Jurisprudência 2023 (201)


Revisão de sentença estrangeira;
citação no Estado de origem


1. O sumário (?) de RL 23/11/2023 (2107/22.4YRLSB-2) é o seguinte:

Não cabe a este Tribunal na acção de revisão de decisão brasileira apreciar o mérito da decisão que, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade originariamente devedora, responsabilizou directamente os seus sócios, ora requeridos nesta acção. Antes do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, a Justiça do Trabalho no Brasil permitia que a desconsideração fosse determinada de ofício pelo juiz. O fundamento era o de que o art. 878 da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) autorizaria isto, ao dispor que “a execução poderá ser promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente” [...] e, muito embora na doutrina tal fosse questionado, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou seu entendimento pela possibilidade de desconsideração ex officio.

Sendo certo que os termos da citação certificada nos autos dos ora requeridos que passaram à condição de executados não contêm qualquer referência à possibilidade de dedução de embargos, resultando da lei processual brasileira que a citação no processo de execução tem duas fases distintas, uma em que, certificada a citação, o mandado é retido por 48 horas à espera que o devedor satisfaça a dívida ou ainda resista a ela embargando a execução nos termos do art.º 882 da CLT, ocorrendo a outra fase após o término do prazo das 48 horas sem que o devedor solva a obrigação ou nomeie bens à penhora, momento em que o oficial de justiça fará a penhora dos bens, altura em que o juízo será considerado garantido para se iniciar o prazo para iniciar os embargos à execução ou à penhora de acordo com o art.º 884 do CLT, prazo esse de cinco dias; não resultando minimamente indiciado que as garantias de defesa dos requeridos se mostrem diminuídas, nenhuma razão ocorre para que se não reveja e confirme a decisão estrangeira.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

II.4. Suscitavam os requeridos na oposição que não tiveram conhecimento da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade brasileira e, por isso, também não puderam deduzir embargos à execução instaurada. Verifica-se assim existir, uma clara preterição dos direitos essenciais de defesa dos ora Oponentes, nomeadamente do princípio do contraditório e da igualdade das partes, que constitui um dos direitos fundamentais da Constituição da Republica Portuguesa. Em Portugal também não seria possível legalmente fazer executar contra um sócio duma sociedade por quotas uma decisão condenatória proferida exclusivamente contra a sociedade, para pagamento duma dívida da sociedade a um trabalhador; assim, no presente caso, verifica-se também que o eventual reconhecimento da Decisão estrangeira em análise conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português; em face das certidões de citação, os requeridos reiteram o que já anteriormente mencionaram e sustentam que os requeridos não foram citados para, querendo, contestar, nem tão pouco, foram informados, sobre os prazos e meios legais de defesa [...]. Os requeridos foram privados do exercício do direito de defesa efetiva – postulado, como o da igualdade das partes, do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. [...]

III.6. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, de forma consistente, que a lei presume a verificação dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do referido artigo 980.º, dispensando o requerente de fazer a respetiva prova, cabendo ao requerido o ónus da prova de que tais requisitos não se verificam, a menos que o tribunal, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nessas alíneas, caso em que, nos termos previstos no artigo 984.º do CPC, deve negar oficiosamente a confirmação – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-04-2021 (Revista n.º 78/19.3YRLSB), de 21-02-2006 (Processo n.º 05B4168), de 12-07-2005 (Revista n.º 1880/05), todos publicados em www.dgsi.pt, e ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-09-2015 (Revista n.º 85/14.2YRPRT.S19 e de 08-09-2009 (Revista n.º 57/09.9YFLSB), não publicados na DGSI, mas cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt. No caso dos autos, estando em causa o requisito previsto na al. e) do artigo 980.º, caberia, em princípio, ao réu, o ónus da prova de que não pôde exercer o seu contraditório, por irregularidade dos termos da citação, na acção de onde promana a sentença revidenda. Importa, para o efeito, começar por determinar o regime legal aplicável à situação dos autos de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, sendo que, nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código Civil português, deve proceder-se à interpretação da lei estrangeira dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas. Como se defendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-02-2015 (Revista n.º 693/10.0TVPRT.C1.P1.S1), esta disposição legal “impõe que se faça apelo à jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, que se tenha, como ponto de partida, a correcção da interpretação usual no Estado estrangeiro e que se actue com sensatez e prudência, de modo a colmatar a inerente menor familiarização com a lei estrangeira, só devendo tal interpretação ser afastada quando puder ser tida como inexacta.” De acordo com o disposto no artigo 280.º do CPC brasileiro, “As citações e as intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais.” Quais foram as prescrições legais que de acordo com o Direito Brasileiro foram omitidas nas citações? Salvo o devido respeito, o ónus de alegação e prova de tal incumbe aos requeridos, como se disse. [...]

III.10. A figura da desconsideração da personalidade jurídica tem, como finalidade jurídica imediata, a responsabilização direta dos sócios, alcançando aquele que se esconde atrás das vestes da sociedade e o seu patrimônio, tutelando, assim, os interesses dos credores sociais e o instituto é assim comum aos direitos português e brasileiro.

III.11. Não cabe a este Tribunal na acção de revisão apreciar o mérito da decisão que, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade originariamente devedora, responsabilizou directamente os seus sócios, nem se vê em que medida tal decisão possa ofender os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Na sequência da decisão do Tribunal de Trabalho brasileiro que, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade, estendeu a responsabilidade directamente aos sócios da sociedade, a lei brasileira impõe que os sócios que passaram a ser directamente responsabilizados tivessem que ser citados também para se opor àquela decisão? Se sim, em que termos? Antes do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, a Justiça do Trabalho permitia que a desconsideração fosse determinada de ofício pelo juiz. O fundamento era o de que o art. 878 da CLT autorizaria isto, ao dispor que “a execução poderá ser promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente”. Havia quem defendesse que tal interpretação era altamente questionável, uma vez que o art. 878 da CLT deveria ser interpretado no sentido de que a iniciativa judicial de promover a execução somente se pode dar com relação a quem já figura no título executivo. Não obstante, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou o seu entendimento pela possibilidade de desconsideração ex officio (Por exemplo: BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. 5ª Turma, AIRR. n.º 42040-79.1997.5.06.0011, j. 16.12.2009, Rel. Ministro Emmanoel Pereira. Trecho do voto do Relator: “(...) a execução, nesta Justiça especializada pode ser promovida de ofício pelo julgador, na forma do art. 878, caput, da Consolidação das Leis Trabalhistas vulgo CLT) [PARENTONI, Leonardo, O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no CPC 2015, pág. 141 [...]].

III.1[2]. No que concerne ao cumprimento dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, há que ter em conta o que acima se deixa expresso no que toca aos termos em que a legislação e a jurisprudência dos Tribunais Brasileiros permitiam que a execução contra os sócios podia ser promovida ex officio pelo próprio Tribunal; verdade que os termos da citação certificada nos autos dos ora requeridos que passaram à condição de executados não contém qualquer referência à possibilidade de dedução de embargos, mas tal não significa que os citandos não pudessem deduzir embargos de execução, nem vem invocada norma do direito brasileiro que imponha que nas citações devam constar os mecanismos de defesa. Parte da jurisprudência brasileira entende que o executado (os ora requeridos) pode, na sequência da citação para a execução, arguir em embargos de executado a inexistência do processo por ausência de citação para o processo de conhecimento e prolação da sentença, ou recurso ordinário da sentença que serve de base à execução postulando o reconhecimento da inexistência de processo. Tudo indica que a citação no processo de execução tem duas fases distintas, uma em que certificada a citação o mandado é retido por 48 horas à espera que o devedor satisfaça a dívida ou ainda resista a ela embragando a execução nos termos do art.º 882 da CLT. A outra fase ocorre após o término do prazo das 48 horas sem que o devedor solva a obrigação ou nomeie bens à penhora, momento em que o oficial de justiça fará a penhora dos bens. Somente após o termo destas fases é que o juízo será considerado garantido para se iniciar o prazo para iniciar os embargos à execução ou à penhora de acordo com o art.º 884 do CLT, prazo esse de cinco dias. Para dedução destes embargos é condição que o executado garanta o valor dado à execução. O executado não diz que o fez ou razão pela qual o não fez, sequer invoca qualquer razão que permita considerar que, não o podendo fazer, os seus direitos de defesa resultaram diminuídos. [...]."

[MTS]