"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/06/2024

Jurisprudência 2023 (193)


Recursos de revista;
decisões interlocutórias


1. O sumário de STJ 2/11/2023 (1360/20.2T8PNF-E.P1-A.S1) é o seguinte:

O acórdão que apreciou decisão da primeira instância sobre a pertinência de determinados meios de prova não pode ser alvo de revista com base no art.671º, n.1 do CPC, por estar em causa uma decisão de natureza interlocutória. Não tendo o recorrente-reclamante alegado qualquer das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 671.º do CPC, a revista não é admissível.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"7. A decisão agora reclamada confirmou o despacho do Tribunal da Relação com a fundamentação que se transcreve:

«Deve, desde já, afirmar-se que o despacho reclamado fez a correta aplicação da lei processual ao caso concreto, não sendo, efetivamente, admissível o recurso de revista.

Na reclamação que apresenta contra esse despacho, o recorrente-reclamante entende que a revista cabe no âmbito de admissibilidade do art.671º, n.1 do CPC. Embora reconheça que está em causa uma decisão de natureza interlocutória, o reclamante desenvolve uma tese pretendendo equiparar decisões interlocutórias sobre admissibilidade de meios de prova às decisões previstas no art.671º, n.1, in fine. Sustentando que as decisões interlocutórias se dividem em interlocutórias meramente formais e interlocutórias substanciais ou materiais, o reclamante entende que o acórdão recorrido se encontraria nesta última categoria, pelo que a revista seria comportável no âmbito do artigo 671º, n.1 do CPC.

Tal tese não tem o mínimo suporte na letra da lei (que não procede a qualquer distinção quanto a tipologias de decisões interlocutórias), tal como não tem qualquer suporte doutrinal ou jurisprudencial.

As citações doutrinais que reproduz no seu requerimento em nada servem a tese que sustenta, quando lidas com a devida atenção e no devido contexto, pois aí não se dá acolhimento à ideia de que uma decisão interlocutória como a dos presentes autos possa caber no âmbito de admissibilidade do art.671º, n.1 do CPC.

As regras que disciplinam a admissibilidade (ou inadmissibilidade) dos recursos não são suscetíveis de interpretação analógica. São normas que servem a certeza e a segurança dos atos processuais, não se prestando a interpretações subjetivas baseadas nas particularidades dos casos concretos. Assim, não é por o recorrente entender que determinado meio de prova é muito importante para o seu caso que a decisão da segunda instância passará a ser suscetível de revista.

A natureza interlocutória de uma decisão assenta em critérios objetivos, e define-se por delimitação negativa do âmbito de admissibilidade da revista estabelecido pelo n.1 do art.671º. Assim, as decisões que são proferidas antes do conhecimento do mérito da causa (e que não põem fim ao processo por outras razões) são decisões que respeitam a questões inerentes à marcha do processo; logo, são decisões interlocutórias. Questões essas que o legislador pretendeu que fossem decididas de modo célere – excluindo, em regra, o acesso ao STJ – evitando demoras que se projetariam no tempo da prolação da decisão final.

Como afirma Maria dos Prazeres Beleza: são “razões de celeridade, combinadas com a natureza processual da matéria em causa, que justificam a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação que apreciem recursos interpostos de decisões interlocutórias em matéria processual da 1ª instância. É bom de ver que os recursos de decisões interlocutórias carecem de ser julgados rapidamente, tendo em conta os efeitos de um eventual provimento; a inadmissibilidade de dois graus de recurso, restrita às decisões interlocutórias da 1ª instância em matéria processual, tem implícita a consideração de ser mais simples decidir em matéria processual do que em questões de mérito.”1

Apesar da natureza interlocutória das decisões respeitantes aos meios de prova, o legislador não excluiu a reapreciação de tal tipo de decisões, pois conferiu às partes o direito a um grau de recurso – a apelação – [art.644º, n.2, alínea d)], assim se alcançando um equilíbrio entre o direito ao recurso (enquanto expressão da tutela jurisdicional efetiva) e as razões de celeridade processual que servem o interesse geral da boa administração da justiça.

No caso presente, a decisão que foi alvo de apelação não conheceu do mérito da causa, nem pôs fim ao processo (por outras razões), sendo, portanto, uma decisão de natureza interlocutória. Assim, a revista nunca poderia ser admitida nos termos do art.671º, n.1. Tal revista só poderia ser admitida caso se demonstrasse o preenchimento de alguma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.1 do art.671º, o que manifestamente não ocorre no caso concreto.»


8. Deve, desde já, afirmar-se que a decisão reclamada não merece censura.

O acórdão recorrido pronunciou-se sobre decisão da primeira instância que indeferiu a produção de meios de prova requeridos pelo autor (agora reclamante), por ter entendido que tais meios não eram pertinentes face ao objeto do litígio, tendo confirmado parcialmente essa decisão. O autor-apelante pretende que o acórdão seja alvo de revista, na parte em que lhe foi desfavorável. Porém, não lhe assiste qualquer fundamento para a interposição do recurso de revista, como bem entendeu o TRP ao não admitir a sua subida, e como se entendeu na decisão singular que indeferiu a reclamação apresentada nos termos do art.643º do CPC.

Efetivamente, como se afirmou na decisão agora reclamada, o acórdão recorrido pronunciou-se sobre decisão interlocutória, a qual não cabe no âmbito de recorribilidade do art.671º, n.1 do CPC. E caso se tratasse de decisão sobre o mérito da causa, também a revista não seria admissível, porque a tal obstaria o limite da dupla conformidade decisória, previsto no art.671º, n.3.

Estando em causa uma decisão de natureza interlocutória, a revista só seria admissível caso tivesse sido alegado e demonstrado que se encontrava preenchida alguma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.1 do art.671º. Porém tal não se verifica no caso concreto.

Vejam-se, a título ilustrativo, as seguintes decisões:

- Acórdão do STJ, de 09.06.2021 (relator José Raínho), no processo n. 1155/20.3T8CSC-D.L1.S1:

«Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista nas situações referidas nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 671.º do CPC.

O acórdão da Relação que recai sobre decisão interlocutória confinada à relação processual não é suscetível de recurso de revista excecional, por a situação quadrar precisamente no disposto no art. 671.º, n.º 2, do CPC

- Acórdão do STJ, de 30.06.2020 (relator Pinto de Almeida) no processo n. 302/16.4T8VIS.C1.S1:

«Tendo o acórdão recorrido apreciado decisão interlocutória da 1.ª instância que incidiu unicamente sobre a relação processual, o recurso de revista apenas pode ser admitido nas situações previstas nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 671.º do CPC

A decisão de não admissão da revista não violou qualquer disposição constitucional, pois como é sobejamente sabido o acesso ao terceiro grau de jurisdição não é ilimitado, e o reclamante já viu a sua pretensão reapreciada pelo tribunal de segunda instância.

Em síntese, não existe fundamento para revogar a decisão reclamada.

Pode ainda notar-se, a título lateral, que a obra sobre Recursos em Processo Civil, da autoria de Abrantes Geraldes, cujas fotocópias o reclamante veio juntar aos autos, não afirma, na realidade, aquilo que o reclamante parece entender, pois o autor dessa obra não confunde, como o reclamante parece confundir, a recorribilidade de decisões sobre questões substantivas com a recorribilidade de decisões sobre questões adjetivas."

[MTS]