"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/06/2024

Jurisprudência 2023 (187)


Suspensão da instância;
causa prejudicial


1. O sumário de RL 7/11/2023 (8309/21.3T8LSB.L1-7) é o seguinte:

I- Tem sido entendido que uma causa é prejudicial é relação a outra quando a decisão na primeira pode afetar ou destruir o fundamento ou razão de ser da segunda, quando a decisão naquela pode prejudicar a decisão nesta, pressupondo que as partes de ambas as ações (a prejudicial e a dependente) são as mesmas ou, pelo menos, que a eficácia da decisão proferida na causa prejudicial é extensível às partes na causa dependente.

II- Os Réus podem, no âmbito deste processo, requerer que ao julgamento do tribunal a quo sobre a exceção perentória que deduziram (direito de retenção) seja atribuído efeito de caso julgado fora deste processo, vinculando os visados com força de caso julgado material (art.º 91º, nº2). Para tal efeito, poderão deduzir incidente de intervenção de terceiros (herdeiros dos promitente-vendedores originários), mesmo que o prazo normal da dedução da intervenção de terceiros esteja ultrapassado. Esta solução poderá requerer o acionamento do princípio da adequação formal (Artigo 547º) e da gestão processual (Artigo 6º, nº 1).

III- Em diferentes palavras, as questões atinentes ao invocado direito de retenção (montante do alegado crédito dos réus e constituição do direito de retenção a título de garantia de tal crédito) podem – e devem- ser dirimidas neste processo, sendo desnecessária a interposição da alegada causa prejudicial. Nesta mesma senda, haverá que concluir que a propositura dessa ação era dispensável e mais não visa do que obter a suspensão desta ação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do Artigo 272º, nº1, do Código de Processo Civil, o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta.

Verifica-se uma relação de prejudicialidade quando o julgamento de um objeto processual depende da apreciação de um outro objeto. Esta relação de prejudicialidade pressupõe que não opera a exceção de litispendência entre as ações pendentes, apesar de dentre elas se verificar uma identidade parcial nos respetivos objetos - Teixeira De Sousa, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, 1995, p. 135. [...]

Posto isto, caso venham a ser julgados procedentes os pedidos deduzidos pelos aqui réus (aí autores) contra os aí Réus MM, PMM,  MIS FAM e BB, S.A. (esta aqui Autora), ficará tendo a força de caso julgado material que, além do mais, os ora Réus (aí autores) são titulares de direito de retenção sobre a fração autónoma, a qual constitui objeto mediato desta ação nomeadamente através do pedido de condenação dos aqui Réus a entregá-la à ora autora (BB, SA).

Conforme é sabido, o direito de retenção do promitente-comprador- que obteve a tradição da coisa -  decorrente do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda por parte do promitente-vendedor constitui um direito real de garantia, oponível erga omnes, de modo que o seu titular pode conservar a posse da coisa até ver satisfeito o seu crédito – cf., por todos, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 16ª ed., p. 241.

Assim, a proceder a ação apontada como prejudicial, tal afetará, necessariamente, a decisão de mérito deste processo porquanto implicará a improcedência dos pedidos aqui deduzidos, os quais foram formulados no pressuposto de que não assiste aos Réus direito de retenção sobre a fração.

Assim, nesta análise inicial, parece ocorrer a prejudicialidade enunciada pelo Tribunal a quo, justificativa da suspensão da instância.

Todavia, nos termos do nº 2 do Artigo 272º, «Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens

Na proposta do Acórdão do Tribunal da Relação de (...) de 17.6.2004, Ezaguy Martins, 4181/2007, «A existência de fundadas razões para crer que a causa prejudicial foi intentada unicamente para se obter a suspensão – n.º 2, artº 279º do Cód. Proc. Civil – significa “se o juiz se convencer de que a causa prejudicial não tem probabilidades algumas de êxito e foi atirada para o tribunal unicamente para fazer suspender a instância na causa dependente”.»

No Acórdão do Tribunal da Relação de (...) de 8.1.2009, Márcia Portela, 8760/2008, considerou-se que:

4. Sob pena de preclusão, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado, e as exceções incidentes ou meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.

5. Não tendo a parte arguido a simulação do contrato donde emerge a sua responsabilidade na contestação, não pode obter a suspensão da ação por prejudicialidade de uma outra ação, intentada posteriormente, em que invoca a simulação daquele contrato, sob pena de se permitir a apresentação extemporânea da contestação, com alteração da estratégia processual, já que a contestação foi deduzida no pressuposto da validade do contrato.

6. Neste contexto é legítimo inferir que a segunda ação foi intentada com o único propósito de obter a suspensão desta ação, o que igualmente obstaria a que se decretasse a suspensão da instância.

Teixeira de Sousa, CPC Online, Arts. 130.º a 361.º, Versão de 2023/06, p. 155, analisa este regime nestes termos:

«(a) A suspensão da instância não deve ser decretada se a ação prejudicial tiver sido proposta durante a pendência da ação dependente “unicamente” para obter aquela suspensão (n.º 2). (b)Pode partir-se do princípio de que assim sucede quando, numa situação de prejudicialidade complexa e, portanto, podendo a parte recorrer à apreciação incidental regulada no →art. 91.º, n.º 2, ainda assim tenha instaurado a ação prejudicial.» A prejudicialidade é complexa quando «o objeto da ação dependente abrange quer a questão dependente, quer a questão prejudicial. P. ex.: encontra-se pendente uma ação sobre a invalidade de um contrato e uma outra, instaurada pela parte demandada naquela ação, em que é pedido o cumprimento de uma prestação contratual; nesta última, a parte demandada invoca a invalidade do contrato.»

E prossegue:

«(a) A existência de decisões incompatíveis constitui uma anomalia que obriga a procurar soluções para a sua correção. (b) No âmbito da prejudicialidade simples (na qual os objetos da ação dependente e da ação prejudicial são totalmente distintos), só é pensável uma solução corretiva: a aplicação extensiva do disposto no art. 625.º, n.º 1, e a ineficácia da decisão proferida na ação dependente. (c) Na hipótese da prejudicialidade complexa (na qual o objeto da ação dependente também comporta o objeto da ação prejudicial), é pensável, independentemente da solução corretiva baseada no art. 625.º, n.º 1, uma solução preventiva. Deve entender-se que, apesar da pendência da ação prejudicial, é admissível formular na ação dependente, sem que lhe possa ser oposta a exceção de litispendência (art. 577.º, al. i), 580.º e 581.º), o pedido de apreciação incidental da questão prejudicial que integra o objeto daquela ação (art. 91.º, n.º 2). Uma vez decidida a questão prejudicial com força de caso julgado material na ação dependente, a ação prejudicial extingue-se por inutilidade superveniente (art. 277.º, al. e)).»

Nos termos do Artigo 91º, nº2, do Código de Processo Civil, «A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.»

Teixeira de Sousa, CPC Online, Arts. 1.º a 129.º, Versão de 2023/06, p. 99, clarifica o sentido desta norma assim:

«(b) O pedido de apreciação incidental pode ser formulado pelo autor ou pelo réu até ao encerramento da 1.ª instância. (c) Se o regime da legitimidade processual o exigir, é possível promover a intervenção de terceiros para garantir a admissibilidade do exame do pedido de apreciação incidental.»

Também José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª Ed., 2014, p. 181, consideram que o requerimento previsto no nº2 poderá ser feito até ao encerramento da discussão em primeira instância.

Flui do que fica dito e do ensinamento da doutrina que os ora Réus podem, no âmbito deste processo, requerer que ao julgamento do tribunal a quo sobre a exceção perentória que deduziram (direito de retenção; cf. Artigo 342º, nº2, do CC e Art.º 576º, nº3 do Código de Processo Civil; cf. também Ana Taveira da Fonseca, Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, Almedina, 2015, p. 358) seja atribuído efeito de caso julgado fora deste processo, vinculando os visados com força de caso julgado material. Para tal efeito, poderão deduzir incidente de intervenção de terceiros (herdeiros dos promitente-vendedores originários), mesmo que o prazo normal da dedução da intervenção de terceiros esteja ultrapassado. Esta solução poderá requerer o acionamento do princípio da adequação formal (Artigo 547º) e da gestão processual (Artigo 6º, nº1).

Em diferentes palavras, as questões atinentes ao invocado direito de retenção (montante do alegado crédito dos réus e constituição do direito de retenção a título de garantia de tal crédito) podem – e devem- ser dirimidas neste processo, sendo desnecessária a interposição da ação nº 8195/22 (alegada causa prejudicial). Nesta mesma senda, haverá que concluir que a propositura dessa ação era dispensável e mais não visa do que obter a suspensão desta ação."

[MTS]