"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/06/2024

Jurisprudência 2023 (198)


Decisão-surpresa;
efeitos*


1. O sumário de RG 16/11/2023 (1358/20.9T8VRL.G1) é o seguinte:

I- Os despachos que identificam o objecto do litígio e enunciam os temas da prova não formam caso julgado formal porque se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem importarem uma decisão substancial que interfira, em termos definitivos, no conflito de interesses entre as partes, podendo o seu teor ser modificado no decurso da instrução da causa e mesmo em sede de recurso.

II- Porém, se a sentença se sustentou em matéria de facto não incluída nos temas da prova, não tendo as partes sido advertidas pelo tribunal a quo quanto a uma possível ampliação dos temas da prova enunciados por considerar – ao contrário do anteriormente anunciado – tal factualidade relevante para a boa decisão da causa, e não lhes concedendo a possibilidade de produzir a prova que entendessem relevante, a mesma constituirá decisão-surpresa, por violação do princípio do contraditório.

III- A violação das regras de direito probatório material é de conhecimento oficioso, devendo o Tribunal da Relação modificar a matéria de facto em conformidade com o respeito por essas normas, em substituição do Tribunal recorrido, desde que os autos forneçam todos os elementos necessários (cfr. art.ºs 662º, nº 1 e 665º nº 2 do NCPC).

IV- A prova da compropriedade está exclusivamente dependente do título, pelo que, o afastamento da “presunção” de igualdade das quotas, que decorre da previsão do nº 2 do art.º 1403 CC só poderá resultar dos elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo, sendo por isso inadmissível a produção de prova testemunhal, pericial ou qualquer outra para demonstração de que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por exemplo suportou uma parte superior do preço do mesmo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Do mérito do recurso
3.2.2. Da decisão surpresa, por violação do princípio do contraditório

Sustenta, porém, e ainda a apelante que a sentença traduziu, para si, decisão-surpresa, porquanto o mérito da acção foi decidido com base em matéria não incluída nos temas da prova nem abrangida pelo identificado objecto do litígio.

A apelante qualifica o arguido vício como nulidade de procedimento, enquadrável no regime prescrito no art.º 195º, nº 1 do NCPC.

Com efeito, nesta sede, a recorrente sustenta que a decisão se sustentou em matéria de facto não incluída nos temas da prova e que sobre ela não houve a discussão que o processo judicial pressupõe, porquanto nenhuma das partes ofereceu ou produziu prova sobre essa factualidade, nem foram advertidas pelo tribunal a quo quanto a uma possível ampliação dos temas da prova previamente enunciados, concedendo-lhes a possibilidade de produzir a prova que entendessem relevante.

Neste contexto, o vício apontado à decisão recorrida emerge de actos ou omissões praticadas pelo juiz no decurso da audiência de julgamento, que configuram violação de deveres processuais e que influem na decisão final da causa.

Ou seja, tal vício assim circunscrito decorre da inobservância do contraditório no decurso da audiência de julgamento.

Note-se que o juiz não só pode, mas deve tomar em consideração todos os factos alegados pelas partes e que considere indispensáveis à boa decisão da causa (cfr. art.º 5º, nºs 1 e 2, do NCPC). Todavia, se, como no caso, alguns desses factos foram expressamente excluídos da enunciação dos temas de prova, a consideração posterior de tais factos na sentença implicava necessariamente a observância prévia do princípio do contraditório, plasmado no art.º 3º, nº 3, do NCPC.

Com efeito, o referido nº 3, do art.º 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma concepção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.

Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.

A referida concepção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida por Lebre de Freitas (vide, Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, p. 35 a 38) para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (cfr. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil (anotado), vol. I, p. 8).

Como decorre do ora exposto, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo – quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e activo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.

Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa, embora sem retirar a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, seleccionar, qualificar, interpretar e aplicar as normas jurídicas que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo.

Apenas são proibidas as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes e com o qual elas não pudessem contar. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar.

Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.

Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.

Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração (cfr. ac. da RC de 13.11.2012, processo nº 572/11.4TBCND.C1, in www.dgsi.pt).

Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

No caso que nos ocupa, como já fomos adiantando, afigura-se-nos que existia o dever de audição prévia das partes relativamente à apreciação da factualidade em causa na sentença, na medida em tendo a mesma sido expressamente afastada da enunciação dos temas de prova, as partes não podiam contar que a mesma viesse a ser apreciada e tomada em consideração na sentença entretanto proferida.

Tal comportamento processual não só não observa o princípio do contraditório, mas também e de certa forma coloca em causa o imperativo da segurança jurídica. 

Com efeito e como muito bem se sumaria no ac. da RP de 23.06.2021 (relatado por Nelson Fernandes e acessível in www.dgsi.pt): “I - O processo judicial surge como um imperativo de segurança jurídica, ligado a duas exigências, assim a determinabilidade da lei e a previsibilidade do direito. II - O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequência de atos que formam o processo esteja pré-determinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com previsibilidade que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar certo tipo de decisão final. III - A garantia do processo equitativo comporta, também, uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os atos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual, sendo assim um processo equitativo também um processo previsível. IV - O processo equitativo, como “justo processo”, supondo que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa, determina também, por correlação ou contraponto, que o juiz que dirige o processo não pratique atos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projeção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais atos.”.

Por conseguinte, e não obstante considerarmos que os despachos de fixação do objecto do litígio e de enunciação dos temas não formam caso julgado, a verdade é que tendo o tribunal a quo evidenciado através da posição assumida nesses despachos que não iria apreciar a factualidade em causa, gerou nas partes confiança e expectativa nesse sentido. 

Não tendo o julgador que presidiu ao julgamento - em contrário do anunciado anteriormente - advertido as partes que considerava tal factualidade importante para a boa decisão da causa e que a iria tomar em consideração na sentença, não se pode deixar de concluir pela efectiva violação do princípio do contraditório, com influência na decisão da causa.

Assim, a não observância do contraditório, no sentido de não se ter concedido às partes ao menos a possibilidade de se pronunciarem sobre a ampliação dos temas de prova, na medida em que influi no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195º, do NCPC.

Ora, as nulidades enquadráveis na aludida norma têm de ser arguidas pela parte interessada, sob pena de ficarem sanadas, conforme decorre do preceituado nos art.ºs 197º e 199º, do NCPC.

Todavia, estando a decisão surpresa coberta por decisão judicial, como acontece na situação em apreço (a mesma só se revelou com a prolação da sentença recorrida), é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso [vide, neste sentido, na doutrina: Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo, p. 507; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 183; Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, , p. 393; e Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, p. 134; e na jurisprudência: o ac. do STJ de 5.07.2022 (relatado por Ricardo Costa), o ac. da RL de 11.07.2019 (relatado por Ana Azeredo Coelho); o ac. da RC de 3.05.2021 (relatado por Moreira do Carmo); o ac. da RP de 13.09.2022 (relatado por Ana Lucinda Cabral);  o ac. da RE de 9.02.2023 (relatado por Paula do Paço) e o ac. desta Relação de Guimarães de 21.05.2015 (relatado por Ana Cristina Duarte), todos consultáveis in www.dgsi.pt].

Atento todo o exposto, dúvidas não restam que assiste razão à apelante neste particular, julgando-se verificada a nulidade, ainda que parcial, da sentença recorrida, por violação do princípio do contraditório.

Importa averiguar agora das consequências de tal nulidade.

Prescreve o art.º 195º, nº 2, do NCPC o seguinte: “Quando um acto tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.”. E ascescenta o nº 3, da mesma norma que “Se o vício de que o acto sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o acto se mostre idóneo.”.

Este sistema remete-nos, pois, para uma análise casuística, susceptível de só invalidar o acto que não possa, de todo ser aproveitado (vide, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 235). 

No caso, afigura-se-nos que a verificação da nulidade acima assinalada não implica a devolução dos autos à 1ª instância para cumprimento do contraditório omitido, mas antes que se desconsidere e elimine a factualidade indevidamente inserida no elenco dos factos provados (assim, Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, p. 606 e ac. da RP de 21.02.2022, relatado por Eugénia Cunha e acessível in www.dgsi.pt) e ainda que se conheça do restante objecto da apelação, conforme prevê e permite o art.º 665º, nº 1, do NCPC, o que passaremos a fazer de seguida."

3. [Comentário] Ao arrepio do entendimento que se tornou prevalecente, a RG qualifica a decisão-surpresa como uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1). Salvo o devido respeito, a RG esqueceu-se de que não tem competência para apreciar as nulidades processuais, já que estas devem ser reclamadas perante o próprio tribunal que as cometeu (art. 196.º CPC). Assim, o próprio acórdão da RG é nulo por excesso de pronúncia, porque conhece de uma matéria para a qual não tem competência decisória (art. 615.º, n.º 1, al. d), e 666.º, n.º 1, CPC) (para maiores desenvolvimentos clicar aqui).

A decisão tomada pela RG também peca por ser demasiado formal, porque sem cuidar da importância dos factos considerados pela 1.ª instância para a "justa composição do litígio", pura e simplesmente desconsidera esses factos.

MTS