1. O sumário de STJ 16/11/2023 (1044/18.1T8VNF-A.G1.S1) é o seguinte:
II. Nos recursos de revista que apenas são admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento.
III. Invocando-se que a sentença proferida nos embargos de executado violou o caso julgado formado pela sentença proferida na acção declarativa, que constitui o título executivo, há que interpretar a primeira sentença, com o objectivo de determinar qual é o âmbito desse caso julgado.
IV. A interpretação de uma sentença obriga a considerar, além da sua parte decisória, a respectiva fundamentação o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes; para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido apurado tem a devida tradução no texto.
Não sendo admissível nos termos gerais, uma vez que o valor de € 5 500,01 não excede manifestamente a alçada da Relação (n.º 1 do artigo 629,º do Código de Processo Civil), o presente recurso só será admissível se efectivamente ocorrer violação de caso julgado (artigo 854.º. e n.ºs 1 e 2, a) do artigo 629.º do Código de Processo Civil). Aqui, foi invocada a violação de caso julgado formal (cfr., expressamente, a concl . VIII das alegações de revista). [...]
Passar-se-á, portanto, a determinar se o acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela sentença que aqui constitui título executivo, que baliza os termos da execução (n.º 5 do artigo 11.º do Código de Processo Civil), não sem antes esclarecer que, ainda que a revista seja admissível, o efeito do recurso é meramente devolutivo, porque a revista só tem efeito suspensivo nas questões relativas ao estado das pessoas (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), e, ainda, que a violação de caso julgado é fundamento de revista “normal” (al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil); assim sendo, que não se põe sequer a questão de poder ser fundamento de revista excepcional (que, aliás, é um recurso de revista, que só tem de excepcional a sua admissibilidade).
5. O fundamento da exequibilidade de uma sentença condenatória, ou seja, “que condene(m) no cumprimento de uma obrigação” (artigos703.º, n.º 1, a) e 705.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil) reconduz-se à força probatória do caso julgado material. Averiguar qual é a extensão (objectiva, que é o que agora interessa) desse caso julgado é imprescindível para se poder determinar se uma decisão posterior o violou; o que implica a respectiva interpretação. Interpretar o conteúdo de uma sentença de mérito é pressuposto indispensável da determinação do âmbito do caso julgado material, naturalmente.
Mas essa averiguação é igualmente indispensável quando se tratar da força de caso julgado formal. O fundamento do caso julgado formal é a disciplina processual, que se manifesta agora na lógica da preclusão: o caso julgado formal é uma manifestação da preclusão. Por isso se diz habitualmente que o primeiro efeito da interposição de um recurso é, justamente, impedir o caso julgado formal da decisão de que se recorre.
Ora, quer numa perspectiva, quer noutra, saber se uma decisão judicial contradiz uma decisão já transitada, proferida no mesmo processo ou num processo anterior, implica naturalmente determinar o âmbito do que não pode ser contrariado – o que é o mesmo que dizer o âmbito do caso julgado –, sob pena de, no mínimo, ineficácia da segunda decisão (n.ºs 1 e 2 do artigo 625.º do Código de Processo Civil). Esta desconsideração da segunda decisão é a protecção última do caso julgado, a considerar quando falhou a barreira da excepção de caso julgado, formal ou material.
Sabe-se que, para o efeito, não basta considerar a parte decisória da sentença, cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB).
6. Resulta das alegações dos recorrentes que a violação do caso julgado formado pela sentença exequenda respeita a dois pontos:
– à extensão da parede, ou muro, a reparar – se a parede ou muro inicialmente construído (como se entendeu no acórdão recorrido, confirmando a sentença proferida nos embargos), se apenas a parte ainda erigida (como consideram os recorrentes),
– à forma da reparação, definida na mesma sentença e confirmada pelo acórdão recorrido como implicando “recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada”.
No que agora releva, tendo em conta a procedência parcial da apelação, a sentença exequenda pronunciou-se nos seguintes termos, em grande parte transcritos no acórdão recorrido:
“Pediu ainda a A. que os RR. fossem condenados a fazer as obras que forem necessárias, no valado referido nesta acção, de forma a evitar desmoronamentos, nomeadamente, reparando a parede por eles construída na extrema nascente do seu prédio, junto à garagem do prédio referido em 1). Efectivamente, ficou provado que os RR. construíram, na extrema nascente do valado referido, junto à linha divisória dos prédios, uma parede composta por pedras de granito sobrepostas e elementos de betão, numa extensão de cerca de três metros. Também ficou provado que tal parede não apresentava constituição firme; igualmente se demonstrou que, por via disso, as terras e pedras que compõem o valado e essa mesma parede deslizaram, tendo ultrapassado, em alguns locais, a linha que divide os dois prédios. Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir, nos termos previstos no art. 1350º do CC. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados. Assim, nos termos do mencionado preceito, impõe-se condenar os RR. a levar a cabo as providências necessárias para eliminar o perigo de derrocada da parte da parede ainda erigida. Assim, deverão os RR. ser condenados a reparar a referida parede. (…)”
Da leitura atenta do texto da parte decisória, à luz da respectiva fundamentação acabada de transcrever, bem como da consideração da finalidade tida em conta com a condenação, resulta que esta condenação teve como objecto a parede ou muro inicialmente construído (identificado no ponto 21 da matéria de facto considerada na sentença exequenda).
Assim resulta:
– do texto da condenação («Condeno os RR. AA e BB a reparar a parede referida em 21) e 22) dos “factos provados”»),
– da justificação para que a obrigação de reparar abranja toda a parede ou muro identificada em 21), pois se entendeu que a deficiente construção do muro provocou a derrocada já verificada e conduz ao perigo iminente de desmoronamento da parte “que se mantém erigida” : “Face ao exposto” (recorde-se, à razão do desmoronamento já verificado), “forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir (…).”
– da finalidade tido com a condenação: evitar a derrocada da parte que ainda se mantém e de mais danos que dela poderão resultar: ““Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados”;
Note-se que o sentido assumido pelas instâncias, nos embargos de executado, corresponde ao sentido literal da condenação, que remete expressamente para «a parede referida em 21) e 22) dos ‘factos provados”». Está assim respeitada a natureza de acto formal da sentença. [...]
8. Não ocorrendo violação de caso julgado, o presente recurso não é admissível."