"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/06/2024

Jurisprudência 2023 (196)


Usucapião; 
facto constitutivo*

1. O sumário de RC 7/11/2023 (3261/18.5T8VIS-B.C1é o seguinte: 

I. A alegação de um direito incompatível com o direito do Autor, neste caso a aquisição originária, pelos Réus, das parcelas que compõem o prédio cuja divisão o Autor pretende, pode ser feita por exceção.

II. Na data em que os Réus iniciaram a posse que alegam exercer sobre as parcelas de que os Autores se arrogam comproprietários, a sanção legal para o fracionamento desrespeitador do art.º 1376º do C. Civil era a anulabilidade, sanção essa que com a Lei 111/2015 de 27 de agosto, passou a ser a nulidade.

III. O momento relevante para a aquisição do direito de propriedade por usucapião é o da data do início da posse – art.º 1288º e 1317º, c), ambos do C. Civil - é segundo a lei então em vigor que deverá ser apreciada a sua validade, o que no caso – segundo a alegação dos Réus – nos remete para aquela que em 1988 vigorava – a anulabilidade.

IV. O facto das parcelas resultantes do fracionamento do prédio terem uma área inferior à mínima de cultura, não é, no caso, impeditivo, caso se venham a provar os factos necessários para o efeito, da sua aquisição por usucapião.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na presente ação de divisão de coisa comum – prédio rústico com a área de 8.759m2 – que os Autores intentaram, pretendendo pôr termo à indivisão, formularam o pedido de reconhecimento da indivisibilidade do prédio por ter uma área inferir à unidade mínima de cultura.

Os Réus contestam o pedido de divisibilidade do prédio, alegando que o mesmo já não é propriedade comum, uma vez que em consequência da aquisição por usucapião das parcelas que o compõem foi posto fim à sua compropriedade.

Na decisão proferida entendeu-se que na ação especial de divisão de coisa comum não é admissível invocar a aquisição por exceção, constando da mesma:

Ora, esta questão não é suscetível de ser arguida sequer no âmbito do presente processo de Divisão de Coisa Comum. Com efeito, o direito de propriedade adquirido por usucapião necessita de um título que declare tal direito, sendo certo que não é no presente processo que se formará esse título. A aquisição por usucapião das diversas parcelas enquanto prédios autónomos, também não pode ser invocada por via de exceção, pois esta só ocorreria caso o título existisse ou estivesse em vias de formação.

A ação de divisão de coisa comum, conforme decorre do art.º 925º, do C. Civil, tem como objetivo pôr termo à contitularidade de direitos reais, sendo o meio processual que dá expressão ao direito consagrado nos art.º 1412º, n.º 1, e 1413º, n.º 1, ambos do C. Civil, segundo o qual nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão. As regras aplicáveis à divisão são, com as necessárias adapta­ções, as estabelecidas para a comunhão de quaisquer direitos sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles – art.º 1404º, do C. Civil.

Da certidão do registo predial junta aos autos como doc. n.º 1, resulta inequívoco que o direito de propriedade sobre o prédio em causa encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor dos Autores e dos Réus por aquisição por doação e compra em 1998, pelo que, nos termos do artigo 7º, do Código de Registo Predial, se presume a existência de uma situação de compropriedade. 

A questão que nos é colocada consiste em saber se a usucapião, enquanto forma de aquisição originária do direito de propriedade, pode ser invocada por exceção, contrariamente ao que foi decidido pela 1ª instância.

 Conforme decorre do art.º 571º, n.º 2, 2ª parte, do C. P. Civil a defesa por exceção consiste na alegação de factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido.

A invocada aquisição originária, pelos Réus, do direito de propriedade de parcelas que identificam do prédio a dividir, configura um facto extintivo do direito à pretendida divisão, cuja produção de efeitos exige que o exercício pelo seu titular – os adquirentes - seja integrado por uma decisão judicial, pois a sua capacidade extintiva do direito de proceder à divisão de um prédio, não decorre automaticamente da prática de atos correspondente ao exercício deste direito durante o lapso de tempo exigido pela lei.

A constatação judicial da verificação dessa aquisição originária enquanto um direito potestativo extintivo, cuja produção de efeitos exige que o exercício pelo seu titular - o proprietário do prédio -  seja integrado por uma decisão judicial – invocada pelos Réus -  é efetuada pela sentença que a verificar e que, consequentemente, declare extinto o direito à divisão, podendo integrar a causa de pedir de uma ação ou reconvenção  em que seja pedido o seu reconhecimento ou como exceção a uma ação em que alguém se arrogue da sua titularidade. [Cfr., neste sentido:  José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, ed. 1959, Vol. III, pág. 41 e Comentário ao Código de Processo Civil, ed. 1946, Vol. 3º, pág. 101, ambos da Coimbra Editora. / Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 322 e 323. /  Remédio Marques, A Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, ed. 2007, pág. 294 e 295, Coimbra Editora. / O acórdão do S. T. J. de 28.10.2021, relatado por João Cura Mariano e acessível em www.dgsi.pt.]

Assim, a alegação de um direito incompatível com o direito do Autor, neste caso a aquisição originária, pelos Réus, das parcelas que compõem o prédio cuja divisão o Autor pretende, pode ser feita por exceção. [Neste sentido o ac. do T. R. C. de 18.11.2019, relatado por Alberto Ruço e acessível em www.dgsi.pt.]".

*3. [Comentário] No acórdão fala-se de uma "aquisição originária enquanto [...] direito potestativo extintivo". Salvo o devido respeito, a frase é contraditória, porque um facto constitutivo de uma aquisição não pode ser qualificado como um facto extintivo. Por esta óptica, um título de aquisição de um direito de propriedade não seria um facto constitutivo desse direito, mas antes um facto extintivo do anterior direito de propriedade. Para maiores desenvolvimentos, clicar aqui.

MTS