"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/06/2024

Jurisprudência 2023 (192)


Embargos de executado;
caso julgado


1. O sumário de RE 26/10/2023 (4184/22.9T8FAR.E1) é o seguinte:

Se na sentença proferida nos embargos de executado se decidiu não estar, a aí executada e ora Ré, adstrita à obrigação de pagamento da dívida exequenda, tal decisão impõe-se, mercê da autoridade do caso julgado, na acção declarativa movida pela mesma exequente tendente à condenação daquela no pagamento da mesma obrigação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como se viu, no âmbito da execução movida pela ora Autora contra a aqui Ré, foram deduzidos embargos que terminaram com a prolação de sentença que, os julgando procedente e extinta a execução, entendeu que as despesas reclamadas na execução não respeitam a partes comuns do loteamento mas, sim, a despesas relativas a prédios autónomos, como é o caso das piscinas, parque infantil, campo de jogos de mini-golfe e zona circundante e campos de ténis e zona circundante.

Poderá a mesma Autora demandar de novo a Ré pedindo a sua condenação a pagar-lhe a sua comparticipação nessas mesmas despesas (ainda que por período mais alargado)?

A resposta é (aliás, intuitivamente) negativa.

A autoridade de caso julgado daquela primeira decisão impede-o frontalmente.

Na verdade, nos termos do artº 619º, nº 1 do C.P.C. “Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 580º e 581º , sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.”

Por sua vez, dispõe o artº621º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”

Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado (artº628º do C.P.C.) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.

O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa.
A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artº 580º, nºs 1 e 2 do C.P.C.).

A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a excepção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

Escreve o Prof. Lebre de Freitas (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., p. 354), que “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

É apodítico que em qualquer caso se pretende evitar a contradição entre julgados, neste caso a contradição com o conteúdo da decisão anterior.

A jurisprudência do STJ tem entendido que a autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artº 581º do C.P.C. - cfr. entre outros Acórdão do STJ de 12.7.2011 relatado pelo Conselheiro Moreira Camilo.

Como proficientemente nesse aresto se escreveu :

“I - O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior – arts. 494.º, al. i), e 497.º, n.º 2, do CPC.

II - Para além do caso julgado, que constitui um obstáculo a uma nova decisão de mérito, há igualmente que atender à autoridade do caso julgado, a qual tem antes o efeito positivo de impor a decisão.

III - A expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673.º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção.

IV - Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

V - Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada.

VI - A autoridade do caso julgado caracteriza-se pela insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em consequência do carácter definitivo decorrente do respectivo trânsito, designadamente por via de recurso. Se essa autoridade vem a ser posteriormente colocada numa situação de incerteza, pelas mesmas partes, seja em processos diferentes, seja no mesmo processo, então será possível ocorrer ofensa do caso julgado formado na acção anterior.

VII - Definido em acção anterior entre as mesmas partes quem fora o responsável pelo acidente de viação, a questão, uma vez decidida, ficou a ter força obrigatória dentro e fora do processo, não podendo contrariar-se a autoridade do caso julgado.”.

Sendo, pois, entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas no dispositivo da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado, releva considerar que, no caso concreto, foi decidido, no âmbito dos embargos, não estar a aí executada e aqui Ré adstrita à obrigação de pagamento da dívida exequenda.

Por força do disposto no nº 6 do art.º 732º do CPC, “para além dos efeitos sobre a instância executiva, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda”.

Ora, tendo-se discutido nos embargos em apreço a existência da obrigação exequenda e tendo o Tribunal aí decidido ser a mesma inexistente, a autoridade de caso julgado da decisão proferida nesse processo veda, portanto, que nesta acção declarativa se aprecie (de novo) se tal obrigação de pagamento existe ou não."


*3. [Comentário] O acórdão da RE segue a única orientação que faz sentido: a de que a decisão de mérito proferida nos embargos de executado faz caso julgado material.

Dado que este caso julgado incide sobre a "existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda" (art. 732.º, n.º 6, CPC), o embargante tem o ónus de invocar todos os fundamentos que, na sua óptica, podem conduzir à procedência dos embargos. Isto também é justificado pela circunstância de não fazer qualquer sentido que uma execução corra os seus termos porque o executado não deduziu quaisquer embargos ou, tendo-os deduzido, porque os mesmos foram julgados improcedentes e que, depois da execução finda, se invoque que, afinal, havia um fundamento que impedia essa execução.

Como é natural, salvaguarda-se a situação de superveniência do fundamento de oposição à execução.

MTS