"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/06/2024

Jurisprudência 2023 (183)


Matéria de facto;
poderes da Relação; critérios de controlo


1. O sumário de RL 24/10/2023 (2548/21.4T8ACB.C1) é o seguinte:

I – A declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida importa a actuação da presunção de existência da relação causal, cabendo, por isso, ao devedor demandado afastar ou por em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou a invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor;

II – Relativamente aos documentos particulares assinados pelo seu autor, a lei estabelece um sistema gradativo de ilações.

a) Primeira ilação: genuinidade da assinatura e, portanto, da autoria do documento; invocado um documento assinado, fica objecto de prova bastante que a assinatura é genuína: se a parte não impugnar a veracidade da assinatura, tem-se ela por demonstrada (art. 374.°, n.° 1, do Código Civil); se a parte impugnar a veracidade da assinatura ou então, não sendo a assinatura da própria parte, declarar que não sabe se é genuína (art. 374.°, n.° 1, do Código Civil), a genuinidade da assinatura terá de ser objecto de prova, recaindo o ónus da prova sobre o apresentante do documento (devendo o tribunal, na dúvida, tomar a assinatura como não genuína) (art. 374.°, n.° 2, do Código Civil).

b) Segunda ilação: da genuinidade da assinatura, conclui-se a genuinidade do texto do documento; o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos descritos faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (art. 376.°, n.° 1, do Código Civil);

c) Terceira ilação: a demonstração da genuinidade do texto transforma o documento em confessório, isto é, os factos nele relatados consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (art.° 376.°, n.° 2, do Código Civil); isto não impede, no entanto, que o autor do documento possa demonstrar a inveracidade daqueles. O valor probatório do documento assinado pode ser ilidido através da prova de uma das seguintes circunstâncias: a demonstração da falsidade material do documento (art. 376.°, n.° 1, in fine, do Código Civil), i.e., a prova da alteração do seu conteúdo, antes ou depois da subscrição pelo signatário; se o documento tiver sido assinado em branco, a demonstração de que foi violado um pacto de preenchimento ou de que o documento foi subtraído ao signatário (art. 378.° do Código Civil); se o documento tiver sido subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler ou a rogo, a demonstração de que a subscrição não foi confirmada perante notário (art. 373.°, n.°s 3 e 4, do Código Civil);

III – Se uma parte arguiu a falta de autenticidade do documento ou a sua falsidade, cabe ao arguente a prova de uma coisa ou de outra; se o arguente não demonstrar aquela falta de autenticidade ou esta falsidade, o tribunal profere uma decisão contra essa parte, visto que é ela quem está onerada com o ónus da prova do facto correspondente;

IV – A declaração da nulidade do contrato, por força do seu carácter retroactivo, dá lugar a uma relação de liquidação, pelo que tudo o que tiver sido prestado em execução do negócio declarado nulo deve ser restituído, ou, se a restituição em espécie não for possível, o respectivo valor.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.2. Eror in iudicando em matéria de provas.
3.2.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes de controlo e correcção desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1.ª instância.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação e a correcção da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar - e substituir - a decisão da 1.ª instância, nomeadamente, se a prova produzida - designadamente a prova pessoal produzida oralmente na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo - impuser decisão diversa (art.°s 640.°, n.° 1, b), in fine, e 662.°, n.° 1, do CPC).

Todavia, esse controlo é actuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão da questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral - mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições- e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova - que visa a demonstração da realidade dos factos - apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.° 341.° do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção - i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.° 607.°, n° 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos - e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária e, portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica - de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis [Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.]

Note-se - de harmonia com a doutrina que se tem por preferível - que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas - que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas - não há razão bastante - legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela instância (art.° 607.°, n° 5, ex-vi art.° 663.°, n° 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância exige, realmente, que a Relação construa - autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente [António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 237, e João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1.ª instância exige um juízo de relação ou comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1.ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção [Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia - Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, n° 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.]

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira - e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último - não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo [António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 333 e 334.]."

MTS