"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/12/2025

Jurisprudência 2025 (45)


Identidade de partes;
excepção de caso julgado*

1. O sumário de RE 30/1/2025 (5222/12.9TBSTB.E1) é o seguinte:

I. O que se prevê na norma do n.º 1 do artigo 421º do Código de Processo Civil é a possibilidade de apenas algumas provas – depoimentos e perícias – produzidas num processo poderem ser invocadas noutro processo contra a mesma parte, tendo em vista a prova de factos que hajam sido alegados no processo onde se invoca a valoração de tais provas e que nele sejam objecto de instrução e prova. O que está em causa neste preceito é, pois, o valor extra-processual da prova e não o valor extra-processual dos factos dados como provados noutro processo.

II. Apesar da sua liberdade de julgamento, traduzida na livre apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, a não ser que se conclua que os peritos basearam o seu raciocínio em erro manifesto ou critério legalmente inadmissível.

III. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

IV. O facto de os réus na presente acção terem na acção administrativa, já decidida com trânsito em julgado, a posição de contra-interessados, em face da estrutura própria do processo administrativo, não afasta a verificação do requisito de identidade das partes exigido pelo n.º 2 do artigo 581º do Código de Processo Civil, pois o que releva para este feito é a qualidade jurídica das partes, que é substancialmente idêntica em ambos os processos. Os contra-interessados mais não são do que aqueles que são directamente prejudicados no processo ou que têm um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado (cfr. artigo 57º do CPTA), tendo, assim, idêntica posição à que os réus têm no processo civil, em face do disposto no artigo 30º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

V. Tendo transitado em julgado o acórdão proferido na acção administrativa intentada pelas aqui autoras, que julgou improcedente a acção, onde era invocada a violação do artigo 73º do RGEU pelas obras edificadas pelos aqui réus, ali demandados como contra-interessados, julgando-se não ser a mesma aplicável ao caso, esta decisão passou a constituir caso julgado material, quanto à questão da aplicação do regime do artigo 73º do RGEU às obras em apreço, o que impede que a mesma volte a ser apreciada noutra acção em que intervenham as mesmas partes.

VI. Constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho, só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras que importam a servidão de vistas o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"5. No que se reporta à reapreciação jurídica da causa, importa relembrar que, com a presente acção visavam as AA., em face do pedido formulado na petição inicial, com o esclarecimento efectuado em sede de audiência prévia, obter o reconhecimento, por usucapião, da servidão de vistas inerente à sua janela que deita directamente para o prédio dos RR., e a condenação dos RR. a demolirem as obras efectuadas em violação dos artigos 1362º do Código Civil e 73º do RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951). [...]

6. [...] quanto ao pedido de demolição das obras efectuadas pelos RR., conclui-se que o Tribunal não podia conhecer nos presentes autos da violação da dita construção das normas do artigo 73º do RGEU, por se ter formado caso julgado material em função da decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo no processo n.º 512/10.8... (cfr. artigos 278º, n.º 1, alínea e) 576º, n.º 2, e 577º, alínea i), do Código de Processo Civil), e que a obra edificada não estava em contravenção com o disposto no n.º 2 do artigo 1362º do Código Civil.

A recorrente não põe em causa a constituição, por usucapião, da servidão de vistas, declarada na sentença, mas impugna a decisão quanto ao não conhecimento da questão da violação das obras efectuadas pelos RR., com referência à violação do artigo 73º do RGEU, e entende ocorrer violação das normas dos artigos 1360º e 1362º do Código Civil.

Vejamos cada uma das questões suscitadas.

7. Como se prevê no n.º 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil, as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa. Se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar a litispendência, mas se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção de caso julgado.

Ambas as excepções visam evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (vide artigo 580º, n.º 2, do CPC e, mais detalhadamente (cfr. Miguel Teixeira de SousaEstudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 567 e 574; na jurisprudência, vide, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/1/1994 e de 17/2/1994, in BMJ n.ºs 433, pág. 515 e 434, pág. 580, respectivamente).

Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. artigo 581º, n.º 1, do CPC).

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (artigo 581º, n.º 2, do CPC).

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (cf. artigo 581º, n.º 3, do CPC).

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - consagrando, assim, a conhecida teoria da substanciação (cf. artigo 581º, n.º 4, do CPC).

Ensina Antunes Varela que “para sabermos se há ou não repetição da acção, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem acção) fixado e desenvolvido no artigo 581.°, do CPC, mas também à directriz substancial traçada no n.º 2, do artigo 580.°, do CPC, onde se afirma que a excepção da litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” - vide “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 302.»

8. No caso em apreço, como resulta dos pontos 16 a 19 dos factos provados, BB intentou contra o Município de ..., originariamente Acção Administrativa Comum, na qual se peticionava a condenação da Entidade Demandada “a adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução” no edifício de habitação contiguo ao seu, que correu termos sob o n.º 512/10.8..., a qual veio a ser julgada improcedente por acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, transitado em julgado em 27/01/2022, por se haver concluído, em aplicação da jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal Administrativo que ali se citou, que “…, não obstante entre a obra em causa e cada um dos lados da janela das autoras … não exista a distância de 2 metros, contada do eixo vertical da janela …, não ocorre violação do art. 73º (2ª parte) do RGEU, já que este normativo legal apenas se aplica às janelas das construções novas, e não também às janelas das construções pré-existentes /in casu às janelas da casa das autoras)”.

Como se vê da certidão junta aos autos (máxime do acórdão do TCA a fls. 280), a acção administrativa foi intentada por “BB, por si e ainda em representação da AA”, que são também as AA. nos presentes autos e, embora aquela acção tenha sido instaurada contra o Município de ..., nela foram citados como contra-interessados, além de outros, CC e marido DD [tendo a contra interessada apresentado contestação recorrido da sentença do TAF de ..., de 04/02/2014, que lhe foi desfavorável e que veio a ser revogada pelo acórdão do TCA, na parte impugnada], que são também os RR. na presente acção.

Ora, ao contrário do invocado pela recorrente, não vemos que pelo facto de os aqui RR. terem na acção administrativa a posição de contra-interessados, em face da estrutura própria do processo administrativo, tal afaste a verificação do requisito de identidade das partes exigido pelo n.º 2 do artigo 581º do Código de Processo Civil, pois o que revela para este feito é a qualidade jurídica das partes, que é substancialmente idêntica em ambos os processos. Efectivamente, os contra-interessados mais não são do que aqueles que são directamente prejudicados no processo ou que têm um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado, como decorre do disposto no artigo 57º do CPTA (Código de Processo nos Tribunais Administrativo, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro), onde se estipula que, “[p]ara além da entidade autora do acto impugnado, são obrigatoriamente demandados os contra-interessados a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.”, tendo assim, idêntica posição em relação à que os réus têm no processo civil, como resulta no artigo 30º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Deste modo, os contra-interessados no processo administrativo, tal como os réus no processo civil, são os demandados, por terem interesse em contradizer e/ou serem directamente prejudicados pela pretensão formulada pelo demandante.

9. E também não vemos que haja obstáculo à verificação dos demais requisitos.

No que ao pedido se reporta, na presente acção é pedida a condenação da R. a “demolir as obras efectuadas em violação dos arts. 1362º do Cod. Civil e 73º do RGEU, reconhecendo a servidão de vistas inerente á janela existente no prédio propriedade da A. AA que deita directamente para o prédio da R., deixando uma distância mínima de três metros de separação da edificação em relação á janela.”, enquanto na acção administrativa se pediu a “adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução …, por tal execução violar o artigo 73º do RGEU, devendo ainda a mesma entidade R., ser condenada a não emitir qualquer título, designadamente licença de utilização, enquanto tal ilegalidade não for reparada”.

Daqui decorre que há identidade do pedido em ambos os processos, no que respeita à pretensão material que se pretender exercer respeitante à demolição das obras, não relevando para o efeito que no procedimento administrativo se pretenda que tal pretensão seja executada por via da intervenção da Câmara Municipal, e que no processo civil o seja por determinação directa ao demandado. Em ambos os processos se pretende o mesmo resultado, que é a demolição das obras que se entende serem ilegais, infringindo os direitos das demandantes, embora com configuração diversa.

E também não existem dúvidas que em ambos os processos se pretende alcançar tal fim pedido por via da ilegalidade as ditas obras, invocando-se em ambos a violação das normas do artigo 73º do RGEU. Os factos materiais invocados em ambas as acções, relativos a esta pretensão, são substancialmente idênticos e em ambas se invoca também a violação do preceito constante do artigo 73º do RGEU [onde se prescreve que: “As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.”]

Deste modo, à semelhança do decidido, consideram-se estarem reunidos os requisitos necessários à verificação da excepção de caso julgado, nos termos previstos nos artigos 580º e 581º do Código de Processo Civil.

10. Acresce que, mesmo que se entendesse não ocorrer a dita excepção, designadamente por falta de identidade das partes, sempre se concluiria que a decisão proferida no processo administrativo, que julgou improcedente a acção, por entender não ser aplicável ao caso o artigo 73º do RGEU, se impunha nos presentes autos, maxime às AA., que ali foram demandantes, por via da autoridade do caso julgado, de forma a que o tribunal chamado a decidir a questão, ainda que enquadrada de modo diverso, estava impedido de o fazer.

Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21/03/2013 (proferido no proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1), são essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado: a) A excepção dilatória do caso julgado; e b) a autoridade do caso julgado.

A este respeito escreveu-se o seguinte:

«Importa … averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.

Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.

Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou [Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).

Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.

A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra, de 28/09/2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo (Proc. n.º 392/09.6TBCVL.S1, in www.dgsi.pt), afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário, que importa à presente decisão: I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498° do CPC» (actual artigo 581º). [...]

11. Assim, verificando que no aresto do TCA se julgou improcedente a acção, [na qual também se pretendia a demolição da obra em causa nos presentes autos por violação do artigo 73º do RGEU], por se haver concluído, em aplicação da jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal Administrativo que ali se citou, que “…, não obstante entre a obra em causa e cada um dos lados da janela das autoras … não exista a distância de 2 metros, contada do eixo vertical da janela …, não ocorre violação do art. 73º (2ª parte) do RGEU, já que este normativo legal apenas se aplica às janelas das construções novas, e não também às janelas das construções pré-existentes /in casu às janelas da casa das autoras)”, e tendo o acórdão proferido na acção administrativa transitado em julgado, esta decisão passou a constituir caso julgado material, quanto à questão da aplicação do regime do artigo 73º do RGEU ao caso dos autos (cfr. artigo 619º, n.º 1 e 621º do CPC), o que impede que volte a ser reapreciada noutra acção, seja, por verificação dos requisitos da excepção dilatória de caso julgado, seja pela sua imposição às partes por via da autoridade de caso julgado.

E não se argumente que nos presentes autos o tribunal não é colocado na contingência de reproduzir ou contrariar a decisão antes proferida, pois, para se apreciar na presente acção se as obras em causa implicam a violação da norma do artigo 73º do RGEU, sempre este tribunal teria que decidir que tal preceito era aplicável ao caso dos autos, contrariando, assim, o decidido no acórdão do TCA, proferido no processo 512/10.8BEALM."

*3. [Comentário] O acórdão decidiu bem no que respeita à verificação da exceção de caso julgado.

Menos feliz é a seguinte afirmação:

"[...] Acresce que, mesmo que se entendesse não ocorrer a dita excepção, designadamente por falta de identidade das partes, sempre se concluiria que a decisão proferida no processo administrativo, que julgou improcedente a acção, por entender não ser aplicável ao caso o artigo 73º do RGEU, se impunha nos presentes autos, maxime às AA., que ali foram demandantes, por via da autoridade do caso julgado, de forma a que o tribunal chamado a decidir a questão, ainda que enquadrada de modo diverso, estava impedido de o fazer."

Com a devida consideração, a afirmação é muito duvidosa. Segundo se pode perceber, a RE admite a verificação da autoridade de caso julgado (e não a da excepção de caso julgado) "por falta de identidade das partes" nas duas acções. Como é claro, trata-se de um lapso, porque, ressalvadas as situações em que o caso julgado se estende a terceiros, nenhum terceiro pode ficar vinculado a um caso julgado constituído numa acção em que não tenha sido parte. Portanto, não se pode argumentar que, não se verificando a excepção de caso julgado por falta de identidade de partes, ainda assim podia ocorrer a autoridade de caso julgado.

MTS