"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/05/2023

O preço declarado pelas partes numa escritura pública produz um efeito confessório?


1. Do sumário de RE 10/11/2022 (2375/21.9T8STR.E1) consta, no que agora é relevante, o seguinte:

I. Apesar de não fazer prova plena quanto à veracidade da declaração, se na escritura pública de compra e venda, com base nas declarações dos contraentes perante o notário se fez constar o preço do imóvel, essa declaração vale como confissão nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do Cód. Civil [...].

2. A (interessante) questão que o acórdão levanta é a seguinte: o preço declarado pelas partes numa escritura de compra e venda vale como confissão, ou seja, tem um efeito confessório?

Lembre-se a noção de confissão: "Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária" (art. 352.º CC). Suponha-se agora que na escritura de compra e venda se fixa, por exemplo, o preço de € 25.000; isto quer dizer o seguinte:

-- Para o comprador, o preço não é mais de € 25.000 (mas pode ser menos, se assim o provar);

-- Para o vendedor, o preço não é menos de € 25.000 (mas pode ser mais, se assim o demonstrar).

Perante isto, não se consegue descobrir, para nenhuma das partes, um efeito desfavorável decorrente da declaração do preço na escritura de compra e venda. Pelo contrário: o comprador reconhece que tem de pagar € 25.000, e não mais (o que, à partida, lhe é favorável) e o vendedor reconhece que tem a receber € 25.000, e não menos (o que, à partida, também lhe é favorável). 

Assim, em vez de alguma das partes ficar prejudicada com o preço declarado na escritura, qualquer delas ganha alguma coisa com essa declaração. É por isso que, caso qualquer das partes venha a impugnar o preço declarado como sendo o preço verdadeiro, a sua situação só pode vir a melhorar com a procedência dessa impugnação: a situação do comprador melhora com a diminuição do preço e a do vendedor com o aumento do preço.

Aliás, a ideia de que qualquer das partes perde algo com o preço declarado na escritura é totalmente contra-intuitiva. Simplificando: se alguém comprar um automóvel num stand, quais são os efeitos desfavoráveis que, para cada uma das partes, produz o preço acordado entre elas?

3. Segundo se pode intuir, a especialidade do caso em análise reside em que o preço declarado na escritura produz sempre, como se demonstrou, um efeito favorável para cada uma das partes. No fundo, esse preço representa, pela perspectiva de cada uma das partes, um limite máximo do que tem a pagar (mas, se impugnar, pode vir a pagar menos) e um limite mínimo do que tem a receber (mas, se impugnar, pode vir a receber mais).

Repare-se que, segundo a noção de confissão, é necessário, para que esta ocorra, que seja reconhecido um facto desfavorável e que este reconhecimento represente algo de favorável para a outra parte. É precisamente este binómio "efeito desfavorável/efeito favorável" que não se verifica no caso do preço declarado pelas partes na escritura pública. Neste, o que realmente ocorre é o binómio "efeito favorável/efeito favorável", ou seja, um efeito favorável para ambas as partes.

É também esta visão das coisas que justifica o acordo entre o comprador e o vendedor. Quando estas partes chegam a acordo -- nomeadamente, sobre o preço --, nenhuma delas considera que está a produzir para si própria um efeito desfavorável. Um comprador que considera o preço proposto pelo vendedor um "mau negócio" não chega a acordo com esta parte; mutatis mutandis, o mesmo sucede com o vendedor. O acordo entre o comprador e o vendedor -- nomeadamente, quanto ao preço -- pressupõe que ambas as partes sentem que ganham alguma coisa com o negócio. É contra-intuitivo pensar que as partes chegaram a acordo (nomeadamente, quanto ao preço), precisamente porque ambas sentem que estão a produzir algo de lhes é prejudicial. O acordo entre as partes surge exactamente porque ambas sentem que ganham alguma coisa com o negócio. Portanto, um preço declarado pelas partes numa escritura pública nunca pode ser visto como a confissão de um facto desfavorável.

Estará, pois, claro o que distingue a declaração pelas partes do preço numa escritura de compra e venda de uma verdadeira confissão. Nesta, verifica-se um efeito desfavorável para o confitente e um correspondente efeito favorável para a outra parte. Por exemplo: se confessar que recebeu um empréstimo de € 1.000 de B, esta confissão é desfavorável para A (que tem um dever de restituição) e favorável para B (que tem um direito à restituição). 

4. Prevenindo qualquer mal-entendido, cabe acrescentar que não se pode dizer que o comprador "confessa" que deve o preço e que o vendedor "confessa" que deve entregar a coisa. Isto é incorrecto por duas razões: (i) a confissão incide sobre factos, não sobre efeitos (jurídicos) de factos; portanto, não há nenhuma confissão de um dever de pagamento e de entrega; os deveres reconhecem-se, não se confessam; (ii) é irrealista configurar o contrato de compra como uma confissão recíproca de um dever de pagamento e de um dever de entrega.

Cabe ainda referir que também não se pode dizer que o comprador é prejudicado, porque, em relação ao preço declarado, o preço poderia ser sempre mais baixo, e que o vendedor é prejudicado, porque, também em relação ao preço declarado, o preço poderia ser sempre mais alto. Como é claro, não é por estes aspectos ligados à justiça comutativa do contrato e ao que não foi declarado pelas partes que se pode justificar que cada uma das "confessa" um facto desfavorável. O que interessa é preço declarado pelas partes e o que a declaração desse preço (seja ele considerado alto ou baixo) garante a cada uma delas. Neste plano, não há, como acima se demonstrou, nada de desfavorável para as partes; pelo contrário, o preço declarado garante um máximo a pagar pelo comprador e um mínimo a receber pelo vendedor.

Por fim, cabe ainda elucidar que, pelas mesmas razões, também não tem nenhuma relevância a circunstância de o negócio poder ser considerado ruinoso para o comprador ou para o vendedor. Se o preço da compra for, em termos de mercado, muito barato ou for muito caro, isso não pode ser entendido como significando que o comprador "confessa" um preço alto ou que o vendedor "confessa" um preço baixo. A única coisa que pode interessar é o preço declarado pelas partes, não qualquer outra alternativa.

5. Em conclusão: 

-- O preço referido da escritura não produz um efeito desfavorável para nenhuma das partes; o que realmente se verifica é precisamente o contrário: o comprador "ganha" um preço máximo e o vendedor um preço mínimo;

-- Não é possível, por isso, atribuir nenhum efeito confessório ao preço declarado pelas partes de uma escritura de compra e venda.

MTS

Jurisprudência 2022 (187)


Excepção peremptória;
apreciação; preclusão; caso julgado*


1. O sumário de STJ 29/9/2022 (2344/20.6T8PNF.P1.S1) é o seguinte:

I. A invocação de factos supervenientes, designadamente, a invocação de factos essenciais novos, leva a concluir que a causa de pedir, é, na presente acção, diferente da causa de pedir formulada na primeira acção, razão pela qual se conclui pela não verificação da excepção de caso julgado.

II. Quanto à autoridade de caso julgado - reconduzindo-se as questões que foram resolvidas no âmbito da acção anterior à validade e eficácia do contrato-promessa e ao direito ao pagamento do sinal em dobro com fundamento em incumprimento contratual, matéria a elucidar, igualmente, no âmbito dos presentes autos - verifica-se a relação de prejudicialidade de que depende a invocação da dita autoridade.

III. Saber se, na presente acção, os réus podem voltar a discutir a matéria de excepção invocada na primeira acção (ineficácia e invalidade do contrato-promessa) é questão não isenta de dúvidas.

IV. Porém, tal efeito preclusivo do caso julgado sempre dependeria de os réus terem ficado vencidos no âmbito do processo anterior, o que não sucedeu, uma vez que as excepções peremptórias foram julgadas improcedentes, tendo, não obstante, a acção improcedido por outros motivos.

V. O referido entendimento justifica-se igualmente pela circunstância de que os réus apenas podiam reagir judicialmente contra uma decisão desfavorável, o que apenas sucederia em caso de procedência do pedido formulado pelo autor, o que, na acção anterior, não ocorreu nem em primeira nem em segunda instância.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"7. Importa, antes de mais, proceder a uma breve caracterização dos presentes autos e bem assim dos Processos n.ºs 2590/17.... e 4353/20....:

A) No âmbito dos autos de processo com o n.º 2590/17...., o autor (naquela e na presente acção) pediu a resolução do contrato-promessa e consequente condenação dos (ali e aqui) réus na devolução do sinal em dobro, com fundamento em incumprimento definitivo imputável aos mesmos réus.

Para melhor compreensão do que se encontra em discussão, importa salientar que, de acordo com o que foi invocado pelo (ali e aqui) autor, os (ali e aqui) réus celebraram o mencionado contrato-promessa por intermédio de procurador com poderes para o efeito.

Em sede de contestação, os (ali e aqui) réus invocaram, no que ora releva, a ineficácia e invalidade da procuração constante dos autos, assim como do contrato-promessa, com fundamento na circunstância de a assinatura aposta na procuração não ser da sua autoria, alegando ainda que «os réus assinaram um conjunto de documentos a que não prestaram muita atenção».

Foi proferida sentença que julgou não provado que «os réus tivessem aposto pelo seu próprio punho as assinaturas correspondentes aos seus nomes constantes do documento referido no ponto 1º dos factos provados» (facto não provado n.º 1), tendo, contudo, considerado que, em face dos demais elementos dos autos, havia que concluir pela validade e eficácia do contrato-promessa.

As excepções peremptórias de invalidade e ineficácia foram, assim, julgadas improcedentes.

Contudo, considerando não ter sido provado ocorrer incumprimento definitivo do contrato, foi proferida sentença de improcedência do pedido formulado pelo (ali e aqui) autor.

Dessa decisão foi interposto recurso de apelação pelo (ali e aqui) autor, tendo os (ali e aqui) réus requeridos a ampliação do objecto do recurso – impugnando a decisão de improcedência das ditas excepções – em caso de procedência do recurso interposto pelo autor, não tendo a questão objecto da requerida ampliação chegado a ser conhecida, em face da confirmação da sentença de 1.ª instância.

B) Após o trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito do Processo n.º 2590/17...., os aqui réus instauraram uma acção (Processo n.º 4353/20....) contra o aqui autor, pedindo a declaração de que: «a) o despacho de investidura na posse do prédio, quer a revogação da “procuração” datada de 25/08/2016, em que figura como mandatário o Dr. DD, e tido o alegado nesse pedido de revogação feitos pelos Autores, através do então seu advogado, Dr. KK, foi feito quando ainda estavam convictos de que tinham assinado a procuração a favor daquele Dr. DD; b) o declarado no referido documento denominado “procuração”, com data de 25/08/2016, bem como o contrato-promessa de venda de 11/11/2016, que com base nele foi outorgado pelo Dr. DD não corresponde à vontade dos Autores; c) o alegado quer no pedido de investidura da posse quer na revogação da procuração, não podem ser atendidos no sentido da ratificação do contrato promessa de compra e venda de 11/11/2016 celebrado entre o Réu e o Dr. DD falsamente em representação dos Autores; d) o documento denominado “procuração”, com data de 25/08/2016, descrito nesta petição não tem existência jurídica e que, em consequência, também o contrato promessa celebrado em 11/11/2016 entre o Dr. DD, alegadamente em representação dos Autores e o Réu como promitente comprador, não produz quaisquer efeitos na esfera jurídica daqueles (aqui Autores).».

No âmbito da mencionada acção, cujo acórdão final consta dos autos como documento n.º ... junto com o presente recurso de revista, a 1.ª instância julgou verificada a excepção de caso julgado, tendo o ali réu (e aqui autor) sido absolvido da instância. Tal decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães por se entender, em suma, o seguinte:

«[A]pesar de entre a decisão de mérito, transitada em julgado, proferida no âmbito da ação n.º 2590/17...., e a presente ação, não existir identidade de pedidos, ocorrendo nelas identidade de sujeitos e de causas de pedir (quanto à causa de pedir invocada pelos Autores nos presentes autos e à matéria de exceção que invocaram naquela outra, em sede de contestação), e verificando-se, tal como bem salienta a 1ª Instância, que pedindo os Autores, nos presentes autos, que se declare a invalidade e/ou a ineficácia do referido contrato-promessa e procuração, com fundamento, aliás, em causas de pedir que os próprios Autores invocaram na ação n.º 2590/17...., a título de exceção, e aí apreciadas e decididas, por decisão de mérito, transitada em julgado, que as julgou improcedentes, é indiscutível que ocorre entre a presente ação e aquela outra um nexo de prejudicialidade, em que a procedência da presente ação entra em confronto direto com a decisão de mérito proferida nessa ação, havendo incompatibilidade entre ambas as ações, em que a procedência do pedido desta ação entra em colisão direta e frontal com a decisão de mérito, transitada em julgado, proferida no âmbito da ação n.º 2590/17...., ocorrendo, portanto, na presente ação a exceção dilatória inominada da autoridade do caso julgado, que impõe na presente ação, o decidido no âmbito da referida ação n.º 2590/17...., que julgou válidos e eficazes em relação aos aqui Autores os mencionados contrato promessa e procuração, como facto indiscutível.».

C) No âmbito dos presentes autos, o A. formulou os mesmos pedidos [...] por si formulados no âmbito do Processo n.º 2590/17...., tendo invocado, para além da celebração do contrato-promessa e do direito ao pagamento do sinal em dobro, que procedeu à notificação dos RR. mediante notificação judicial avulsa, em 21.08.2020, comunicando que «o A perdeu o interesse na realização do contrato definitivo ou celebração da escritura pública, e para, num prazo máximo de 5 dias, devolverem ao A. a quantia entregue a título de sinal, acrescida do seu dobro, ou seja, 100.000,00€» e alegando ainda que do comportamento dos RR. se retira uma vontade inequívoca de não cumprir.

Como resulta do relatório do presente acórdão, a 1.ª instância entendeu que, por referência à decisão proferida no âmbito do Processo n.º 2590/17...., se verificava a autoridade de caso julgado, dando como incontestados os fundamentos de facto e de direito de tal decisão e considerando ser de discutir apenas a matéria de facto superveniente.

Prosseguindo, fixou a matéria de facto superveniente e, a final, proferiu decisão de procedência do pedido.

Tendo os RR. apelado, decidiu o Tribunal da Relação revogar a decisão da 1.ª instância, tendo considerado que não se verificava, in casu, autoridade de caso julgado.

8. Analisados os processos em confronto, há que deixar expresso que existe identidade das partes e do pedido, sendo a causa de pedir diferente; de facto, os AA., no âmbito dos presentes autos, adicionam, como fundamento do seu pedido, os factos respeitantes ao envio superveniente de notificação judicial avulsa e à comunicação remetida pelos RR. dando nota de que não pretendiam cumprir, factos esses que não haviam sido invocados no Processo n.º 2590/17... .

invocação de factos supervenientes, com a invocação de factos essenciais novos, leva a concluir que a causa de pedir, é, nesta acção, diferente da causa de pedir formulada na primeira acção. Neste sentido, Mariana França Gouveia (A causa de pedir na acção declarativa, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 496 e seg.) defende a posição, que se acompanha, de acordo com a qual:

«A causa de pedir definida nestes termos tem ainda como consequência a não inserção no seu âmbito de factos supervenientes. Estes, sejam ou não essenciais, podem sempre voltar a ser alegados em posterior acção com o mesmo pedido, portanto, em casos de concurso aparente de normas».

Assim, a alegação de factos supervenientes, ainda que subsumíveis às mesmas normas que os factos invocados na acção anterior, deve considerar-se suficiente para, no caso que nos ocupa, afastar a identidade da causa de pedir.

Não existindo identidade da causa de pedir, conclui-se pela não verificação do caso julgado na sua vertente negativa de excepção de caso julgado.

9. Importa ainda analisar se ocorre caso julgado na sua vertente positiva de autoridade de caso julgado.

Nas palavras do sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 11.11.2020 (proc. n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1) [...], disponível em www.dgsi.pt, sumário que corresponde fielmente ao conteúdo da decisão:

«Quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda acção anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do STJ vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira».

Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos de 19.06.2018 (proc. n.º 3527/12.8TBSTS.P1.S2), 13.09.2018 (proc. 687/17.5T8PNF.S1), de 06.11.2018 (proc. n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1), de 28.03.2019 (proc. n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1), 24.10.2019 (proc. n.º 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2), de 30.04.2020 (proc. n.º 257/17.8T8MNC.G1.S1), de 11.11.2020 (proc. n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1) e de 26.11.2020 (proc. n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Exige-se, assim, que o caso decidido/julgado seja prejudicial em relação ao caso a decidir/julgar e que se inscreva, ainda que parcialmente, no objecto do processo a decidir.

Chegados aqui, poder-se-ia afirmar que os litígios supra descritos se encontram ligados por uma relação de concurso, que se verifica «quando vários objectos processuais se referem a um mesmo efeito jurídico» (Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pág. 576), o mesmo é dizer, quando ambas as ações «têm um pedido idêntico, com diferentes fundamentos» (Rui Pinto, «Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias», Revista Julgar Online, Novembro de 2018, pág. 40).

Sucede que, no caso dos autos, o que se verifica é que os AA. adicionaram à causa de pedir delineada na primeira acção factos supervenientes, fazendo, ainda assim, apelo às mesmas normas jurídicas (referentes ao incumprimento definitivo do contrato-promessa). O mesmo é dizer, grande parte dos factos trazidos à discussão nos autos, foram já apreciados no âmbito do Processo n.º 2590/17.....

Deste modo, o objecto do processo não pode deixar de se considerar prejudicial face ao dos presentes autos já que o que aqui se discute foi já, em grande medida, discutido no âmbito da primeira acção.

Ora, as questões que foram resolvidas no âmbito do Processo n.º 2590/17.... reconduzem-se, tudo visto, à validade e eficácia do contrato-promessa e ao direito ao pagamento do sinal em dobro com fundamento em incumprimento contratual, matéria a elucidar, igualmente, no âmbito dos presentes autos. Verifica-se, pois, a relação de prejudicialidade de que depende a invocação da autoridade de caso julgado.

10. Aqui chegados, importa apreciar que matérias de encontram abrangidas pela mencionada autoridade e que matérias podem voltar a ser discutidas. Mais concretamente, importa apreciar se os RR. podem voltar a discutir a matéria de excepção invocada na primeira acção (ineficácia e invalidade do contrato promessa).

A questão não é isenta de dúvidas.

De acordo com a doutrina clássica, o conhecimento de excepções peremptórias, como é a invocada ineficácia/invalidade do contrato-promessa, não faz, em princípio, caso julgado fora do processo respectivo, nos termos do disposto no actual art. 91.º, n.º 2, do Código de Processo Civil («A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia»). Neste sentido, pronunciaram-se, designadamente, Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, págs. 327 e segs.), Antunes Varela/J.M. Bezerra/Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 717) e Teixeira de Sousa («Preclusão e Caso Julgado», in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2017, I, pág. 160).

Posição diferente foi assumida por Vaz Serra (Anotação ao acórdão do STJ, de 29-06-1976, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 110, n.º 3599, págs. 228 e segs.), autor que defendeu a extensão do caso julgado às questões preliminares que constituam o antecedente lógico da parte dispositiva da sentença. Em sentido próximo, pronunciaram-se autores como Lebre de Freitas («Um polvo chamado autoridade de caso julgado», in Revista da Ordem dos Advogados, 2019, n.ºs III-IV, pág. 697), Mariana França Gouveia (ob. cit., pág. 505, nota 1536) e Ferreira de Almeida, (Direito Processual Civil, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, págs. 747 e segs.).

Num primeiro nível de ponderação do caso sub judice, afigurar-se-ia que a opção por uma ou outra das orientações em causa teria consequências decisivas. Se, designadamente, se aderisse à segunda orientação, parece que a circunstância de, na acção anterior (Processo n.º 2590/17....), a questão da ineficácia/invalidade do contrato-promessa assumir a natureza de questão fundamental, levaria a defender a inclusão de tal matéria nos limites objectivos do caso julgado ou, se se preferir, a defender o efeito preclusivo do caso julgado, com a conclusão de que tal matéria não poderia voltar a ser discutida nos presentes autos.

Sucede, porém, que tal efeito preclusivo do caso julgado sempre dependeria de os (ali e aqui) RR. terem ficado vencidos no âmbito do Processo n.º 2590/17...., pois que apenas nesse cenário se verificaria um efectivo reconhecimento do direito invocado pelo (ali e aqui) A..

Nas palavras de Lebre de Freitas:

«[C]om o caso julgado precludem, em caso de condenação no pedido, as exceções, invocadas ou invocáveis, contra o pedido deduzido, bem como, quando proceda uma exceção perentória, as contraexceções contra ele invocadas ou invocáveis.» (cit., pág. 696).

De resto, as referências que a doutrina (cfr. os exemplos dados por Antunes Varela, ob. cit., pág. 716, e por Ferreira de Almeida, ob. cit., págs. 723-724 e pág. 742) faz à extensão do caso julgado às questões prejudiciais fundamentais pressupõem necessariamente a procedência da excepção e consequente absolvição do pedido ou a improcedência da excepção com a consequente procedência do pedido formulado pelo autor.

Nas palavras de Ferreira de Almeida (ob. cit., págs. 721 e seg.):

«O alcance e autoridade do caso julgado, não podendo confinar-se aos estreitos contornos definidos pelos art.ºs 580.º e ss., com vista à deteção da aludida exceção dilatória nominada, deve estender-se às situações em que a sentença reconheça, no todo ou em parte o direito do A., assim fazendo precludir todos os meios de defesa do R., os concretamente deduzidos e até os abstratamente dedutíveis com base em direito próprio (procedência da acção)».

Recordemos o que sucedeu no Processo n.º 2590/17....:

- A sentença decidiu pela validade e eficácia do contrato-promessa; porém, a final, considerando não ter sido provado existir incumprimento definitivo do contrato, foi proferida decisão de improcedência do pedido formulado pelo autor;

- Dessa decisão foi interposto recurso de apelação pelo autor, tendo os réus requerido a ampliação do objecto do recurso – impugnando o juízo de improcedência das excepções – a ser apreciada em caso de procedência do recurso interposto pelo autor;

- A questão objecto da requerida ampliação não chegou a conhecida, por ter ficado prejudicada pela confirmação da sentença de 1.ª instância, isto é, por ter ficado prejudicada pelo entendimento de não existir de incumprimento definitivo;

- A final, manteve-se a decisão de improcedência da acção.

Temos, pois, que, no caso que ora nos ocupa, se verifica que as excepções peremptórias foram julgadas improcedentes, tendo, não obstante, a acção improcedido por outros motivos, razão pela qual há que afastar a autoridade de caso julgado.

O referido entendimento justifica-se igualmente pela circunstância, igualmente invocada, de que os réus apenas podiam reagir judicialmente contra uma decisão desfavorável, o que apenas sucederia em caso de procedência do pedido formulado pelo autor.

Por outras palavras, uma vez que a decisão da 1.ª instância proferida no Processo n.º 2590/17.... lhes foi favorável, os réus não podiam apelar; apenas podiam – como fizeram – requerer a ampliação do objecto da apelação para, em caso de procedência da apelação do autor, ver reapreciada a questão da ineficácia/invalidade do contrato-promessa.

Como a decisão da Relação também lhes foi favorável, ao manter a decisão de improcedência da acção com fundamento em inexistência de incumprimento definitivo – ficando assim prejudicada a apreciação da ampliação do objecto do recurso –, não podiam os réus recorrer, razão pela qual não lograram obter uma apreciação definitiva acerca da matéria da invocada excepção de ineficácia/invalidade do contrato-promessa."

*3. [Comentário] a) O que o STJ tinha de decidir era o seguinte: num anterior processo, transitou em julgado uma decisão de improcedência com um fundamento que nada tem a ver com as excepões peremptórias invocadas pelos réus; é verdade que estas excepções foram julgadas improcedentes pelo tribunal de 1.ª instância, mas a decisão de improcedência foi proferida com base, não nessas excepções, mas antes com fundamento na improcedência do pedido do autor; posto isto, questionava-se se aquelas mesmas excepções podem ser invocadas num posterior processo entre as mesmas partes.

O STJ respondeu que não havia decisão com valor de caso julgado sobre as referidas excepções. É a solução que se impõe. Se o fundamento da improcedência que transitou em julgado nada tem a ver com essas excepções, é claro que não há caso julgado quanto a estas. Por isso, nunca pode haver nenhuma preclusão quanto à sua invocação numa acção posterior.

Note-se que, mesmo que o fundamento da improcedência tivesse sido uma das referidas excepções peremptórias, haveria que ter presente o disposto no art. 91.º, n.º 2, CPC. Por este motivo, bastaria o STJ ter invocado que, não tendo nenhuma das partes solicitado a apreciação dessas excepções com valor de caso julgado material, nunca o decidido no primeiro processo seria vinculativo neste outro processo com um objecto distinto (MTS, CPC Online (2022.12), art. 91.º, 9 e 10). 
Não era preciso mais para fundamentar a conclusão a que o STJ chegou.

b) Em algumas passagens transcritas no acórdão faz-se referência a uma enigmática excepção dilatória inominada de autoridade caso julgado. Trata-se de uma confusão a evitar, como se pode ver no comentário a Jurisprudência 2022 (133).

MTS


19/05/2023

Juros compulsórios: o problema da precipuidade


1. Os juros a que alude o artigo 13.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do Regime Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01/09 (designado RPOP), bem como o artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, têm vindo a ser qualificados, pelo menos na parte que compete ao Estado, quer atribuindo-lhes a natureza de crédito de juros (e consequente aplicação dos arts. 561.º e 785.º, ambos do CC), quer considerando-os parte integrante das custas processuais (e consequente aplicação dos arts. 541.º e 815.º, ambos do CPC).

Esta dupla qualificação jurídica dos juros compulsórios é compatível entre si, dado que, quer se retire o proporcional de 2,5% pertencente ao Estado de forma precípua como se fosse custas da execução (art. 541.º, CPC), quer se retire aquele proporcional do montante devido ao credor exequente com precedência ao capital, à semelhança dos juros moratórios (art. 785.º, CC), aqueles juros seriam sempre pagos antes do crédito de capital.

Só que, com o devido e merecido respeito, não é esta a melhor qualificação jurídica dos juros compulsórios.

2. Os juros compulsórios a que aludem o artigo 13.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do RPOP e o artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não são nem juros moratórios, nem integram o conceito de custas processuais, nomeadamente, como encargos ou custas de parte (cf. art. 3.º do RCP); eles fazem parte da dívida exequenda, embora sejam um acréscimo legal autónomo.

Com efeito, é a própria lei que os distingue e autonomiza dos juros de mora. A parte final do n.º 4 do artigo 829.º-A do CC prevê a cumulação do pagamento dos juros compulsórios com os juros de mora.

A obrigação de pagamento dos juros compulsórios não é da responsabilidade do credor exequente ou reclamante, dado que o sujeito passivo da obrigação de pagamento daqueles juros é a parte vencida na ação na qual foi proferida a sentença em execução ou, por outras palavras, a parte que tiver sido condenada quanto ao objeto do litígio (cf. art. 829.º-A, n.º 4, do CC), salvo acordo em contrário das partes.

Assim, o responsável pelo pagamento dos juros compulsórios é sempre o executado.

Por conseguinte, os juros correspondentes à sanção legal prevista no artigo 13.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do RPOP e no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não gozam da regra de precipuidade (cf. art. 541.º do CPC); à vista disso, aqueles juros só podem ser pagos pelo executado, não pelo credor (exequente ou reclamante). No caso de adjudicação, o que o Agente de Execução deve fazer, depois de pago o credor que requereu a adjudicação, é elaborar nova previsão do valor em dívida na execução (735.º, n.º 3, do CPC), incluindo aqueles juros nessa previsão (o melhor será até fazer uma liquidação separada).

Deste modo, há que concluir que aquela sanção legal, embora possa integrar as despesas da execução nos termos do n.º 3 do art. 735.º do CPC, não tem a natureza nem de juros de mora, nem de custas de parte; por modo que o valor relativo àquela sanção não deverá ser retirado, de forma precípua, na data do cálculo efetuado pelo Agente de Execução, antes da transmissão dos bens, se houver valores que devam ser entregues ao credor (exequente ou reclamante), ou dispensando este credor do depósito desses juros, no caso de adjudicação.

Não se coloca a questão de se ter de aplicar o art. 541.º do CPC, dado que o valor daqueles juros não integra o conceito de custas de parte, como se disse, pelo que são sempre fixados, processados e pagos de forma autónoma.

A parte do montante da sanção pecuniária destinada ao credor fica sujeita a idêntica solução, por imposição do princípio da igualdade.

3. A Lei n.º 27/2019, de 28/03, procedeu à transferência das cobranças de créditos de custas processuais, multas não penais e outras sanções pecuniárias dos tribunais comuns para a Administração Tributária e Aduaneira.

Passa a ser utilizado o processo de execução fiscal para a cobrança dos valores contados ou liquidados que tenham sido impostos ou fixados em processo judicial, independentemente da forma da decisão (despacho, sentença ou acórdão), e que tenham a natureza de custas processuais (lato sensu), multas não penais e outras sanções pecuniárias (cf. art. 35.º, n.º 1, do RCP, na redação da Lei n.º 27/2019).

Os juros compulsórios são uma sanção pecuniária devida em processo judicial.

Compete ao Agente de Execução liquidar os juros compulsórios e notificar o executado dessa liquidação, para que este proceda ao pagamento no prazo que lhe for fixado (cf. art. 716.º, n.º 3, do CPC).

Na falta desse pagamento, compete à secretaria judicial promover a entrega à administração tributária da certidão daquela liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas (art. 35.º, n.º 2, do RCP, na redação da Lei n.º 27/2019). Até à entrada em vigor daquela portaria, a entrega da certidão de liquidação é efetuada através da plataforma eletrónica da Autoridade Tributária e Aduaneira ou, em alternativa, em suporte físico (art. 9.º da Lei n.º 27/2019).


J. H. Delgado de Carvalho

Jurisprudência 2022 (186)


Processo de inventário; relação de bens;
oposição; falta de resposta


1. O sumário de RE 13/10/2022 (2814/21.9T8STR-A.E1) é o seguinte:

I – Estando em causa a falta de resposta pelo cabeça de casal à reclamação quanto à relação de bens, o efeito cominatório semipleno estabelecido nos artigos 574.º e 587.º, n.º 1, aplicáveis por força do artigo 549.º, n.º 1, todos do CPC, circunscreve-se à factualidade nova alegada na reclamação deduzida, desde que não se mostre antecipadamente impugnada em função da posição assumida pelo cabeça de casal no requerimento inicial ou na relação de bens apresentada;

II - O efeito cominatório semipleno previsto no artigo 574.º não dispensa, num primeiro momento, a especificação da matéria de facto tida por assente e, de seguida, a operação de subsunção jurídica de tal factualidade, à luz da pretensão deduzida;

III - A falta de resposta à reclamação quanto à relação de bens não conduz à procedência automática da pretensão deduzida pela reclamante, o que configura um efeito cominatório pleno não previsto na lei.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos presentes autos de inventário para partilha de bens subsequente a divórcio, o cabeça de casal interpôs recurso do despacho que julgou procedente a reclamação deduzida pela interessada (…) contra a relação de bens.

Invocando a falta de resposta pelo cabeça de casal relativamente à reclamação quanto à relação de bens e o efeito cominatório estabelecido no artigo 574.º, considerado aplicável por força do disposto no artigo 587.º, n.º 1, ambos do CPC, a 1.ª instância julgou procedente a reclamação apresentada.

Discordando da decisão proferida, o apelante sustenta que a falta de resposta à reclamação quanto à relação de bens não produz o efeito cominatório tido em conta pela 1.ª instância, por entender que a reclamante não alegou factos novos, defendendo que as questões suscitadas devem ser decididas após realizadas as diligências probatórias tidas por necessárias.

Previamente à apreciação do objeto do recurso, cumpre determinar o regime aplicável.

Verificando que o processo foi intentado a 06-07-2021, após a entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13-09, que alterou o Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06) designadamente em matéria de processo de inventário e vigora desde 01-01-2020 (artigo 15.º), aplicando-se, entre outros, aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor (artigo 11.º, n.º 1), daqui decorre que é aplicável ao presente inventário o regime emergente do Código de Processo Civil, na redação introduzida pela citada lei.

Explicando a tramitação do processo de inventário emergente desta lei, afirmam Miguel Teixeira de Sousa / Carlos Lopes do Rego / António Abrantes Geraldes / Pedro Pinheiro Torres (O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Coimbra, Almedina, 2020, reimpressão, pág. 59) que o regime construído “visa estabelecer um novo paradigma processual, instituindo uma tramitação assente na existência de fases processuais relativamente estanques e claramente diferenciadas na sua funcionalidade específica: a fase dos articulados, a fase do saneamento e a fase da partilha (…). O regime assenta num princípio de concentração e estabelece os consequentes ónus, cominações e preclusões, de modo a vincular as partes a suscitarem as questões que considerem pertinentes para a tutela dos seus interesses no momento legalmente fixado”.

Acrescentam os autores (ob. cit., págs. 59-60) que o ónus de concentração que modela a fase dos articulados do processo de inventário merece as observações seguintes:

“a) O encadeamento de articulados – requerimento inicial (artigo 1097.º), contestação (artigo 1104.º) e resposta à contestação (artigo 1105.º) – permite extrair, com base nas regras gerais que constam do artigo 547.º, as seguintes conclusões:

- O que for alegado, exposto ou relacionado no requerimento inicial (artigo 1097.º) considera-se admitido por acordo se não for objeto de oposição, impugnação ou reclamação no articulado de contestação (artigo 1104.º), excepto se essa admissão for contrariada pela contestação no seu conjunto ou se o facto não admitir confissão ou exigir prova documental (cfr. artigo 574.º, n.º 2; cfr., especificamente quanto à verificação do passivo, artigo 1106.º, n.º 1);

- O que for alegado ou exposto no articulado de contestação (artigo 1104.º) considera-se admitido por acordo se não for contraditado do articulado de resposta (artigo 1105.º), salvo se essa admissão estiver em oposição com a contestação no seu conjunto ou com o que for referido no requerimento inicial ou ainda se o facto não admitir confissão ou exigir prova documental (artigos 574.º, n.º 2 e 587.º, n.º 1)”.

Estando em causa, no caso presente, reclamação deduzida contra a relação de bens, julgada procedente no despacho recorrido com fundamento em efeito cominatório decorrente da falta de resposta pelo cabeça de casal à reclamação deduzida, cumpre apreciar os efeitos decorrentes da omissão de tal resposta e respetivas consequências.

Tendo em vista o indicado propósito, há que analisar o regime emergente dos artigos 1104.º, 1105.º, 1109.º e 1110.º, bem como dos artigos 549.º, n.º 1, 574.º e 587.º, n.º 1, todos do CPC (na indicada redação), na parte aplicável à tramitação e decisão da reclamação que tenha sido deduzida à relação de bens.

O artigo 1104.º dispõe, além do mais, o seguinte: 1 - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação: (…) d) Apresentar reclamação à relação de bens; (…).

O artigo 1105.º dispõe, além do mais, o seguinte: 1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada. 2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas. 3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º. (…).

O artigo 1109.º, por seu turno, dispõe o seguinte: 1 - O juiz pode convocar uma audiência prévia se o considerar conveniente, nomeadamente por se lhe afigurar possível a obtenção de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão. 2 - Na convocatória, o juiz indica o objetivo da diligência e as matérias a tratar. 3 - Na falta de acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, o juiz procede à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias que tenham sido objeto de oposição ou de impugnação.

O artigo 1110.º dispõe, além do mais, o seguinte: 1 - Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar; (…).

Analisando este regime, verifica-se que faculta o n.º 1 do artigo 1104.º, designadamente aos interessados diretos na partilha, a possibilidade de, no prazo de 30 dias a contar da citação, além do mais, apresentarem reclamação à relação de bens. Se for deduzida reclamação, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada, conforme tramitação regulada no n.º 1 do artigo 1105.º, esclarecendo o n.º 2 do preceito que as provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

Permite o n.º 1 do artigo 1109.º, ao juiz, convocar uma audiência prévia, se o considerar conveniente, nomeadamente por se lhe afigurar possível a obtenção de acordo, não apenas sobre a partilha, mas também acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os intervenientes sobre alguma questão. Esclarece o n.º 3 do preceito que, na falta de acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, o juiz procede à realização das diligências instrutórias necessárias à prolação de decisão sobre tais matérias.

Realizadas as diligências instrutórias necessárias, segue-se a prolação do despacho de saneamento do processo a que alude o n.º 1 do artigo 1110.º, no qual, além do mais, são resolvidas todas as questões suscetíveis de influir na determinação dos bens a partilhar, designadamente as questões controvertidas na sequência de reclamação quanto à relação de bens.

No que respeita às consequências decorrentes da falta de resposta à reclamação quanto à relação de bens, tratando-se de matéria não regulada pelas disposições próprias do processo de inventário, mostram-se aplicáveis as regras gerais, por força do estatuído no n.º 1 do artigo 549.º, que dispõe o seguinte: Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.

Nesta conformidade, são aplicáveis à matéria em apreciação, a título supletivo, os artigos 574.º e 587.º, n.º 1.

Sob a epígrafe Ónus de impugnação, o artigo 574.º, dispõe o seguinte: 1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor. 2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior. 3 - Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário. 4 - Não é aplicável aos incapazes, ausentes e incertos, quando representados pelo Ministério Público ou por advogado oficioso, o ónus de impugnação, nem o preceituado no número anterior.

O artigo 587.º dispõe, no n.º 1, o seguinte: A falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu tem o efeito previsto no artigo 574.º.

Ao estatuir que se consideram admitidos por acordo os factos que não foram impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito, o citado artigo 574.º estabelece o denominado efeito cominatório semipleno, o qual se reporta unicamente à matéria de facto, o que não conduz, necessariamente, à procedência da pretensão formulada.

Se, por um lado, face à ressalva estabelecida pelo artigo 574.º (factos que não admitam confissão ou que só possam ser provados por documento escrito) e à menção a novos factos constante do artigo 587.º, n.º 1, nem todos os factos não impugnados se consideram admitidos por acordo, por outro lado, os factos que venham a considerar-se provados por incumprimento do referido ónus de impugnação podem não ser suficientes para a procedência da pretensão deduzida, não permitindo extrair o efeito jurídico pretendido.

Decorre do exposto que o efeito cominatório semipleno previsto no artigo 574.º não dispensa, num primeiro momento, a especificação da matéria de facto tida por assente e, de seguida, a operação de subsunção jurídica de tal factualidade, à luz da pretensão deduzida.

Estando em causa a falta de resposta pelo cabeça de casal à reclamação quanto à relação de bens, o efeito cominatório a que aludem os artigos 574.º e 587.º, n.º 1, apenas se circunscreve à factualidade nova alegada pela interessada na reclamação deduzida, desde que não se mostre antecipadamente impugnada em função da posição assumida pelo cabeça de casal no requerimento inicial ou na relação de bens apresentada.

Analisando a decisão recorrida, verifica-se que dela não consta a discriminação dos concretos factos tidos por provados, designadamente a indicação da factualidade considerada admitida por acordo, nem a identificação das questões em litígio ou a apreciação da pretensão formulada, a qual foi julgada procedente de forma automática, com fundamento na omissão da resposta à reclamação quanto à relação de bens.

Ora, a falta de resposta à reclamação quanto à relação de bens não conduz à procedência automática da pretensão deduzida pela reclamante, nos termos decididos pela 1.ª instância, o que configura um efeito cominatório pleno não previsto na lei.

Pelo contrário, perante a omissão de tal resposta, compete ao tribunal verificar que factos se encontram provados, designadamente por acordo das partes decorrente da falta de impugnação e por documento, e aferir se o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação da reclamação deduzida, caso em que poderá decidir a questão suscitada ou, se o considerar conveniente, convocar uma audiência prévia antes da prolação da decisão; se se considerar que o estado do processo não permite o conhecimento da reclamação, em virtude de se encontrarem controvertidos factos com relevo para a apreciação das questões de direito a decidir, impõe-se determinar a realização das diligências probatórias tidas por necessárias e/ou, se for considerado conveniente, convocar uma audiência prévia, ao que se seguirá a prolação da decisão."

[MTS]


18/05/2023

Jurisprudência 2022 (185)


AECOPs;
compensação; meio processual*

1. O sumário de RE 13/10/2022 (83572/21.9YIPRT.E1é o seguinte:

O artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Pretende a Ré ser compensada do seu crédito perante a Autora, no montante por si devido.

Dispõe o artigo 847.º do C.C. que:

«1- Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material;

b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.

2- Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.

3- A iliquidez da dívida não impede a compensação.»

Entendeu o tribunal a quo que a Ré não tem direito a ver compensado esse valor de 995 euros por não ter deduzido reconvenção, limitando-se a invocar a compensação a título de exceção do direito de crédito da A..

Lê-se na sentença:

“[a]pós a alteração do Código de Processo Civil introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26-6, deixou de ser possível ao R. invocar a compensação de créditos por via da mera exceção ao direito de crédito invocado pelo A. Após essa alteração do Código, para obter essa compensação de créditos o R. terá de deduzir pedido reconvencional em que solicite o reconhecimento do seu crédito.

Na verdade, passou a estar previsto no artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, que: A reconvenção é admissível nos seguintes casos: Quando o R. pretender o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.»

Posição que não subscrevemos.

Seguindo de perto a fundamentação do AC. TRC de 26-02-2019, Proc. n.º 2128/18.1YIPRT.C1, in www.dgsi.pt:

“A questão de saber se a compensação tem, ou não, de ser invocada sempre via reconvencional, ao abrigo do anterior artigo 274.º, n.º 2, alínea b) e atual artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC tem sido abundantemente abordada na doutrina e na jurisprudência, constituindo uma vexata quaestio com dilucidações, essencial ou circunstancialmente, díspares.

Descortinam-se três orientações.

A primeira que entende que a compensação, quer exceda ou não o contra crédito, apenas pode ser invocada via reconvenção.

A segunda que pugna que o artigo 266.º, n.º 2, alínea c), apenas rege para os casos em que o réu se proponha ver reconhecida a compensação nos autos e não já para os casos em que ela foi anteriormente reconhecida, quer judicialmente, quer extrajudicialmente por declaração do compensante ao compensário.

Finalmente a terceira que defende que o citado segmento normativo atribui ao compensante uma mera faculdade de usar a reconvenção para fazer operar a compensação, podendo, assim, invocá-la por via excetiva – cfr. para maiores desenvolvimentos, os arestos citados pelas partes, a saber: o Ac. da RG de 22.06.2017, proc. n.º 69039/16.0YIPRT.G1 e o Ac. da RC de 18.1.2018, proc. n.º 12373/17.1YIPRT-A.C1 e a basta doutrina e jurisprudência neles citadas.»

Aderimos à terceira tese.

A compensação assume-se, substantiva e adjetivamente, como figura jurídica diferenciada e autónoma sem estar condicionada por outras figuras ou institutos.

Por isso, assume-se como exceção perentória que pode obstar ao direito da contraparte, constituindo um meio de extinção das obrigações – cfr. artigo 847.º e seguintes do CC. E, desse modo, pode ser invocada em sede de contestação – artigo 571.º, n.º 1, do CPC.

Não havendo qualquer razão para, nos casos em que o valor da compensação não excede o contra crédito, obrigar o compensante a invocar a compensação apenas por via reconvencional.

Dispõe o artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC, que:

«2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos: (…)

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor»

A lei processual – artigo 266.º, nº 2, alínea c), do CPC – não impõe que a compensação só possa ser feita valer em reconvenção, mas sim que esta reconvenção é admissível quando se pretenda invocar a compensação – cfr. Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4ª ed., págs. 145 e seguintes.

A não se entender assim, inexistindo reconvenção em certo tipo de ações, como no presente caso, ao réu estaria vedada a invocação da compensação.

Com todos os inconvenientes decorrentes da necessidade de instaurar uma nova ação, autónoma, para proteção do seu direito, com a consequência de uma decisão tardia, em total contradição com o propósito legal subjacente ao D-L n.º 269/98, de 01.09 e respetivo Anexo, no qual dimana a existência de apenas dois articulados, requerimento e oposição; deduzida esta, o processo é remetido à distribuição, sendo que, na ação, saneado o processo, a causa segue logo para julgamento – artigos 1.º do D-L e 16.º e 17.º do Anexo.

Neste sentido os Acórdãos, todos in www.dgsi.pt:

- Ac. do STJ de 18-10-2016, Proc. 6271/08.7TBBRG.P1.S1:

«A compensação baseia-se na conveniência de evitar pagamentos recíprocos quando o devedor tem, por sua vez, um crédito contra o seu credor, e, ainda, em se julgar equitativo que se não obrigue a cumprir aquele que é, ao mesmo tempo, credor do seu credor, uma vez que o seu crédito ficaria sujeito ao risco de não ser integralmente satisfeito, se entretanto se desse a insolvência da outra parte».

- Ac. do TRG de 01-07-2021, Proc. 37601/20.2YIPRT.G1:

«1. No artigo 10.º, nºs 2 e 4, do D-L n.º 62/2013 teve-se em conta o valor do pedido inicial para definir o tipo de processo adequado para a discussão da causa.

2. Tal como as ações sumaríssimas não comportavam reconvenção, as ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias de valor inferior à metade da alçada da Relação também a não comportam, porque a sua estrutura o não permite.

3. Violaria o normal o direito de defesa negar a uma parte, numa ação declarativa, a possibilidade de invocar a extinção do direito que lhe é exigido (nomeadamente por já ter exercido a compensação).

4. O artigo 299.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil apenas se debruça sobre o modo como pode ser deduzida a compensação em sede de processo comum, visto que não pode ter querido impedir que os Réus de ações especiais com apenas dois articulados se defendessem com a invocação dessa exceção perentória.

5. Nestas ações apenas com dois articulados, em que se incluem as ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias, é admissível ao demandado defender-se com a invocação da compensação, enquanto exceção perentória ao direito que lhe é exigido, mas não pode deduzir reconvenção para que se conheça da parte do crédito que eventualmente exceda tal montante.»

- Ac. do STJ de 14-12-2021, Proc. 107694/20.2YIPRT.S1

«1. A compensação de créditos depende da verificação dos requisitos previstos no artigo 847.º do Código Civil e, eficazmente invocada pelo devedor-credor, produz os mesmos efeitos do cumprimento, dando lugar, quando provada, à absolvição do pedido, assim constituindo uma exceção perentória, nos termos do artigo 576.º, n.º 3, do CPC.

2. O artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.»

Assim, importa julgar procedente tal questão do recurso, devendo a dívida da Ré à A. ser compensada e diminuída no montante comprovado do crédito desta, de € 995,00.

Deve a compensação dar-se por efetuada à data em que a Autora foi notificada da oposição, o que releva para efeitos de liquidação do montante em dívida à Autora (capital e juros de mora)."


*3. [Comentário] a) Salva a devida consideração, discorda-se totalmente da orientação da RE. As razões são as seguintes (clicar também aqui):

-- Os meios processuais definidos no CPC para o exercício de um direito não são meras indicações que as partes podem deixar de cumprir;

-- Não é verdade que a reconvenção não seja admissível nas AECOPs; o disposto no art. 266.º CPC consta da parte geral e é aplicável, por isso, a qualquer processo;

-- A admissibilidade da dedução da compensação por via de excepção (e não por via de reconvenção) retira ao autor reconvindo a possibilidade do exercício do contraditório em articulado próprio (art. 584.º, n.º 1, CPC), criando uma situação de desigualdade entre as partes; trata-se, por isso, de uma solução ilegal e até inconstitucional;

-- A situação referida no item anterior é tanto mais grave quanto é a demandada que, escolhendo a via da excepção peremptória, obsta a que a autora possa apresentar uma defesa em articulado próprio, originando, quanto ao exercício do contraditório, uma situação de desigualdade entre o crédito da autora e o seu próprio contracrédito.

b) Se a RE entendia não dever prejudicar a demandada, bastar-lhe-ia ter utilizado o disposto no art. 193.º, n.º 3, CPC e convolado a dedução de excepção peremptória em reconvenção. Aliás, com esta atitude não só não tinha prejudicado a demandada, como tinha dado a oportunidade à autora de se defender por escrito, evitando, assim, violar o princípio da igualdade das partes (art. 4.º CPC).

MTS


17/05/2023

Jurisprudência 2022 (184)


Divórcio sem consentimento do outro cônjuge;
providência cautelar especial; modificação


1. O sumário de RG 6/10/2022 (1183/21.1.T8VRL-B.G1) é o seguinte:

As decisões proferidas no âmbito do nº 7 do art. 931º do CPCivil têm natureza análoga às dos processos de jurisdição voluntária, por isso, podem após o respectivo trânsito em julgado ser modificadas caso se alterarem as circunstâncias em que se fundaram.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Antes de apreciarmos propriamente a questão do caso julgado, importa fazer um enquadramento do incidente de atribuição de alimentos provisórios aqui em apreço.

Como vimos, a R. peticionou alimentos provisórios, no âmbito do processo de divórcio, ao abrigo do nº 7 do art. 931º do C.P.Civil, que preceitua «Em qualquer altura do processo, o juiz por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias». [...]

O nº 7 do art. 931º do C.P.Civil, consagra assim um providência cautelar, de carácter especialíssimo, como preliminar ou incidente enxertado na própria ação de divórcio, que, além do mais, permite ao cônjuge carenciado requerer a fixação de um regime provisório de alimentos que se mantém até ser definitivamente julgada a ação de divórcio, sendo certo que transitada em julgado essa decisão e seja qual for o seu desfecho - procedência ou improcedência – “morre” a dita providência cautelar, esgotando-se, consequentemente, os alimentos provisoriamente fixados ao cônjuge carecido. Diferentemente, a providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no art. 384º do CPCivil, sendo um procedimento cautelar típico tem sempre carácter instrumental em relação a um pedido de alimentos definitivos que pode ser formulado como pedido acessório na acção de divórcio ou numa acção declarativa autónoma - cfr. neste particular Ac. TRG de 13-07-2021, Proc.594/21.7T8VRL.G1 (Relatora Maria João Matos) e Ac. TRE de 12-10-2017; Proc.2521/16.4T8PTM.E1 (Relator Manuel Bargado), ambos disponíveis in www. dgsi.pt. E ainda Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf onde se lê: «Caso os alimentos provisórios tenham sido pedidos ao abrigo do nº7 do art. 931º do CPC, estes apenas são devidos na pendência do processo de divórcio e caducam se no prazo de 30 dias após a sentença não for instaurada a acção de alimentos definitivos.»

Assim delineada a natureza do procedimento em apreço, passemos à análise da questão do recurso.

Nas suas alegações, a recorrente começa por sustentar que não há caso julgado porquanto a primeira decisão proferida na tentativa de conciliação foi uma decisão formal, não de mérito, baseando-se apenas na falta de prova documental, não tendo o Tribunal a quo efectuado as diligências que a lei lhe permitia com vista a proferir uma decisão de mérito, violando o dever de gestão processual previsto no art. 6º do CPCivil, bem como o princípio da prevalência da verdade material que enforma o nosso sistema processual civil desde a revisão de 1996 operada pelo Dec-Lei nº 329- A/95 de 12.2

Desde já antecipamos que entendemos não assistir razão à recorrente em tal argumentação, pois, se é certo que o juiz deve conduzir o processo em ordem à justa composição do litígio através de uma decisão de mérito em prazo razoável, o nosso sistema processual continua a assentar no princípio do dispositivo, genericamente consagrado no art. 5º do CPCivil, competindo às partes, em princípio, alegar e provar os factos essenciais em que assentam a sua pretensão ou as exceções invocadas. E, no caso em apreço, aplicando-se, como vimos, os arts 292ºe 293º do CP relativos aos incidentes da instância, é indiscutível que sobre a R. impendia o ónus de alegar os factos em que assentava a sua pretensão e indicar as provas respectivas. [...]

No mesmo sentido, A. Abrantes Geraldes e Outros, in Código de Processo Civil Anotado, Reimpressão 2020, Vol. II p. 377 escrevem: «Os poderes instrutórios atribuídos na parte final do nº 7 do art. 931º não se destinam a dispensar o ónus da prova das partes, que se mantém, mas a possibilitar uma decisão mais equitativa quanto às pretensões formuladas, dada a natureza dos interesses em causa. Tais poderes instrutórios atribuídos ao juiz permitem completar a prova oferecida pelas partes, mas não substituí-la».

Destarte, nenhuma censura merece, nomeadamente por violação do art. 6º do CPC, a decisão de indeferimento do incidente proferida na tentativa de conciliação, na qual, além de se referir que o requerimento de apoio judiciário não era elemento bastante para se concluir que a R. carecia de alimentos, se acrescentou que inexistiam nos autos quaisquer outros elementos documentais que apontassem nesse sentido.

Ora, não tendo tal decisão sido objecto de recurso transitou em julgado.

Como é consabido, a decisão judicial transitada em julgado passa a ter «força obrigatória» dentro do próprio processo, como estabelece o art. 620º, nº1 do C.P.Civil, e também fora do próprio processo quando julgue de mérito, como estatui o art. 619º, nº1 do mesmo diploma legal. A referida força obrigatória desdobra-se assim numa dupla eficácia, que corresponde aos efeitos negativo e positivo do caso julgado.

Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol II, 2018, Almedina, p.185 e 186 escreve “O efeito negativo do caso julgado consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos arts. 577º al. I) segunda parte, 580º e 581º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior…. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veriate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão do poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, correspondendo-lhe a excepção de caso julgado; o efeito positivo do caso julgado admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.”

Porém, há excepções à regra da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado, designadamente as previstas nº 2 do art. 619º e no nº1 do art.988º do CPCivil.

O art. 988º/1 do CPC preceitua: “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso».

Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, um caso julgado com efeitos temporalmente limitados. Mas desta especificidade da alterabilidade das resoluções nos processos de jurisdição voluntária, não decorre, porém, um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão. Na verdade, enquanto não for alterada nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 613º n.º 1 do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei. Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material.

Como vimos, o procedimento previsto no nº 7 do art.931º do CPC aqui em apreço, tem uma natureza semelhante aos processos de jurisdição voluntária, pelo que, em nosso entender, verificando-se uma alteração superveniente das circunstâncias é de admitir a alteração da decisão anterior.

Neste sentido, reportando-se a uma ação de alimentos vide Ac. STJ de 27-05-2010, Proc.970/03.7TMLSB-D.S1 (Relator Moreira Alves), cujo sumário está disponível in.www.dgsi.pt. E também Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf.

A recorrente, nas suas alegações sustenta que no requerimento de 17-11-2021, alegou circunstâncias supervenientes, designadamente, o ter-se esgotado o depósito bancário, no valor de € 3.300,97, que o casal possuía na Caixa ... e que lhe permitiu prover ao seu sustento desde que o A. abandonou o lar conjugal em fevereiro de 2021.

Atentando no extenso requerimento apresentado pela recorrente em 17-11-2021, quase toda a factualidade se apresenta como nova, pois o requerimento feito na tentativa de conciliação foi formulado de forma conclusiva, sendo praticamente omisso quanto a factos.

Porém, face ao que ficou dito, o que importa verificar é se foram alegadas circunstâncias supervenientes (posteriores à decisão de 13.7.2021) que legitimem a formulação de novo pedido.

Lendo o referido articulado, nos artigos 55º a 61º é alegado o seguinte:

55º Como se disse já supra, a D. E. E., com o abandono do seu marido do lar conjugal, este deixou-a numa situação muito difícil desde Fevereiro deste ano de 2021.

56º A sua salvação, para que não passasse fome, senão as suas dificuldades teriam sido muito maiores, foi um dinheiro que tinham na conta do casal da Caixa ..., no valor de € 3.200,97, único a que a aqui requerente teve acesso,

57º Este dinheiro, desde o abandono da aqui requerente pelo autor, foi por ela gasto para que a requerente se pudesse sustentar, alimentar, vestir e calçar, sobreviver, sem ter ainda que mendigar,

58º Mas, manifestamente insuficiente, para colmatar as suas necessidades mais básicas, que incluem ainda o pagamento da água e da luz.

59º Com este dinheiro, a aqui requerente, teve ainda de pagar contas do marido R. J. que este deixou, desde que ele abandonou o lar em Fevereiro até Julho, de gastos com o seu telemóvel na ordem e em média dos € 70,00 a € 90,00 mensais, que estavam incluídos no pacote da internet e canais de televisão que tinham em casa, e teve de pagar ainda a água e a luz.

60º Foi como se disse já pela requerente totalmente consumido nas suas necessidades diárias mais básicas, gasto pela requerente para a sua própria sobrevivência, sem os quais a sua alimentação diária não seria possível, pelo que, e dado que ainda não foi decretado o divórcio, deve ser reconhecido e declarado pelo tribunal, como dinheiro que integrou a obrigação de alimentos na vigência da sociedade conjugal, nos termos dos arts. 2015º e 1675º do CC, que melhor se denominaria dever de manutenção, e que foi absorvido pelos encargos da vida familiar, nomeadamente a alimentação do conjugue que não aufere rendimentos, e que reveste natureza meramente provisória.

61º Sendo que nesta altura, a aqui requerente já precisou e precisa da ajuda de familiares e amigos, para poder sobreviver, e já teve necessidade de pedir dinheiro emprestado e por isso encontra-se atualmente numa situação muito difícil e já endividada, pois o valor acima referido foi manifestamente insuficiente para todas as necessidades elementares da aqui requerente.»

Ora, este quadro factual apesar de se não se reportar inteiramente ao período posteriormente a 13.7.2021 porque os factos tiveram início anteriormente, evidencia precisamente a situação de falta de recursos da Ré à data do pedido, mercê do esgotamento da quantia de € 3.200,97 da conta bancária do casal que a mesma foi usando para o seu sustento.

Assim, salvo o devido respeito, não podemos concordar com a afirmação da decisão recorrida de que no requerimento de 17.11.2021 a Ré não invoca quaisquer circunstâncias supervenientes à data da prolação da decisão de 13 de Julho de 2021.

Destarte, não obstante o trânsito em julgado da decisão proferida em 13 de Julho de 2021, podendo a mesma ser alterada ocorrendo uma modificação superveniente das circunstâncias, dado ter uma natureza análoga aos processos de jurisdição voluntária, entendemos que os factos alegados permitem configurar essa alteração de circunstâncias e assim sendo o pedido alimentos provisórios apresentado em 17.11.2021 devia ter sido recebido e tramitado com vista à fixação de uma pensão de alimentos única e exclusivamente para o período de pendência da acção de divórcio.

E apesar de os cônjuges terem vindo a prescindir de alimentos definitivos, tratando-se de pedidos distintos, face à posição manifestada pela Ré, impõe-se a procedência do recurso e, consequentemente, a revogação da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que dando seguimento ao pedido apresentado, proceda à respectiva instrução, decidindo a final se o requerido deve ou não ser condenado no pagamento de alimentos provisórios à requerente desde 17.11.2021 até à data do trânsito em julgado da decisão do processo de divórcio."

[MTS]