"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/05/2023

Jurisprudência 2022 (184)


Divórcio sem consentimento do outro cônjuge;
providência cautelar especial; modificação


1. O sumário de RG 6/10/2022 (1183/21.1.T8VRL-B.G1) é o seguinte:

As decisões proferidas no âmbito do nº 7 do art. 931º do CPCivil têm natureza análoga às dos processos de jurisdição voluntária, por isso, podem após o respectivo trânsito em julgado ser modificadas caso se alterarem as circunstâncias em que se fundaram.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Antes de apreciarmos propriamente a questão do caso julgado, importa fazer um enquadramento do incidente de atribuição de alimentos provisórios aqui em apreço.

Como vimos, a R. peticionou alimentos provisórios, no âmbito do processo de divórcio, ao abrigo do nº 7 do art. 931º do C.P.Civil, que preceitua «Em qualquer altura do processo, o juiz por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias». [...]

O nº 7 do art. 931º do C.P.Civil, consagra assim um providência cautelar, de carácter especialíssimo, como preliminar ou incidente enxertado na própria ação de divórcio, que, além do mais, permite ao cônjuge carenciado requerer a fixação de um regime provisório de alimentos que se mantém até ser definitivamente julgada a ação de divórcio, sendo certo que transitada em julgado essa decisão e seja qual for o seu desfecho - procedência ou improcedência – “morre” a dita providência cautelar, esgotando-se, consequentemente, os alimentos provisoriamente fixados ao cônjuge carecido. Diferentemente, a providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no art. 384º do CPCivil, sendo um procedimento cautelar típico tem sempre carácter instrumental em relação a um pedido de alimentos definitivos que pode ser formulado como pedido acessório na acção de divórcio ou numa acção declarativa autónoma - cfr. neste particular Ac. TRG de 13-07-2021, Proc.594/21.7T8VRL.G1 (Relatora Maria João Matos) e Ac. TRE de 12-10-2017; Proc.2521/16.4T8PTM.E1 (Relator Manuel Bargado), ambos disponíveis in www. dgsi.pt. E ainda Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf onde se lê: «Caso os alimentos provisórios tenham sido pedidos ao abrigo do nº7 do art. 931º do CPC, estes apenas são devidos na pendência do processo de divórcio e caducam se no prazo de 30 dias após a sentença não for instaurada a acção de alimentos definitivos.»

Assim delineada a natureza do procedimento em apreço, passemos à análise da questão do recurso.

Nas suas alegações, a recorrente começa por sustentar que não há caso julgado porquanto a primeira decisão proferida na tentativa de conciliação foi uma decisão formal, não de mérito, baseando-se apenas na falta de prova documental, não tendo o Tribunal a quo efectuado as diligências que a lei lhe permitia com vista a proferir uma decisão de mérito, violando o dever de gestão processual previsto no art. 6º do CPCivil, bem como o princípio da prevalência da verdade material que enforma o nosso sistema processual civil desde a revisão de 1996 operada pelo Dec-Lei nº 329- A/95 de 12.2

Desde já antecipamos que entendemos não assistir razão à recorrente em tal argumentação, pois, se é certo que o juiz deve conduzir o processo em ordem à justa composição do litígio através de uma decisão de mérito em prazo razoável, o nosso sistema processual continua a assentar no princípio do dispositivo, genericamente consagrado no art. 5º do CPCivil, competindo às partes, em princípio, alegar e provar os factos essenciais em que assentam a sua pretensão ou as exceções invocadas. E, no caso em apreço, aplicando-se, como vimos, os arts 292ºe 293º do CP relativos aos incidentes da instância, é indiscutível que sobre a R. impendia o ónus de alegar os factos em que assentava a sua pretensão e indicar as provas respectivas. [...]

No mesmo sentido, A. Abrantes Geraldes e Outros, in Código de Processo Civil Anotado, Reimpressão 2020, Vol. II p. 377 escrevem: «Os poderes instrutórios atribuídos na parte final do nº 7 do art. 931º não se destinam a dispensar o ónus da prova das partes, que se mantém, mas a possibilitar uma decisão mais equitativa quanto às pretensões formuladas, dada a natureza dos interesses em causa. Tais poderes instrutórios atribuídos ao juiz permitem completar a prova oferecida pelas partes, mas não substituí-la».

Destarte, nenhuma censura merece, nomeadamente por violação do art. 6º do CPC, a decisão de indeferimento do incidente proferida na tentativa de conciliação, na qual, além de se referir que o requerimento de apoio judiciário não era elemento bastante para se concluir que a R. carecia de alimentos, se acrescentou que inexistiam nos autos quaisquer outros elementos documentais que apontassem nesse sentido.

Ora, não tendo tal decisão sido objecto de recurso transitou em julgado.

Como é consabido, a decisão judicial transitada em julgado passa a ter «força obrigatória» dentro do próprio processo, como estabelece o art. 620º, nº1 do C.P.Civil, e também fora do próprio processo quando julgue de mérito, como estatui o art. 619º, nº1 do mesmo diploma legal. A referida força obrigatória desdobra-se assim numa dupla eficácia, que corresponde aos efeitos negativo e positivo do caso julgado.

Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol II, 2018, Almedina, p.185 e 186 escreve “O efeito negativo do caso julgado consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos arts. 577º al. I) segunda parte, 580º e 581º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior…. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veriate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão do poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, correspondendo-lhe a excepção de caso julgado; o efeito positivo do caso julgado admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.”

Porém, há excepções à regra da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado, designadamente as previstas nº 2 do art. 619º e no nº1 do art.988º do CPCivil.

O art. 988º/1 do CPC preceitua: “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso».

Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, um caso julgado com efeitos temporalmente limitados. Mas desta especificidade da alterabilidade das resoluções nos processos de jurisdição voluntária, não decorre, porém, um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão. Na verdade, enquanto não for alterada nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 613º n.º 1 do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei. Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material.

Como vimos, o procedimento previsto no nº 7 do art.931º do CPC aqui em apreço, tem uma natureza semelhante aos processos de jurisdição voluntária, pelo que, em nosso entender, verificando-se uma alteração superveniente das circunstâncias é de admitir a alteração da decisão anterior.

Neste sentido, reportando-se a uma ação de alimentos vide Ac. STJ de 27-05-2010, Proc.970/03.7TMLSB-D.S1 (Relator Moreira Alves), cujo sumário está disponível in.www.dgsi.pt. E também Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf.

A recorrente, nas suas alegações sustenta que no requerimento de 17-11-2021, alegou circunstâncias supervenientes, designadamente, o ter-se esgotado o depósito bancário, no valor de € 3.300,97, que o casal possuía na Caixa ... e que lhe permitiu prover ao seu sustento desde que o A. abandonou o lar conjugal em fevereiro de 2021.

Atentando no extenso requerimento apresentado pela recorrente em 17-11-2021, quase toda a factualidade se apresenta como nova, pois o requerimento feito na tentativa de conciliação foi formulado de forma conclusiva, sendo praticamente omisso quanto a factos.

Porém, face ao que ficou dito, o que importa verificar é se foram alegadas circunstâncias supervenientes (posteriores à decisão de 13.7.2021) que legitimem a formulação de novo pedido.

Lendo o referido articulado, nos artigos 55º a 61º é alegado o seguinte:

55º Como se disse já supra, a D. E. E., com o abandono do seu marido do lar conjugal, este deixou-a numa situação muito difícil desde Fevereiro deste ano de 2021.

56º A sua salvação, para que não passasse fome, senão as suas dificuldades teriam sido muito maiores, foi um dinheiro que tinham na conta do casal da Caixa ..., no valor de € 3.200,97, único a que a aqui requerente teve acesso,

57º Este dinheiro, desde o abandono da aqui requerente pelo autor, foi por ela gasto para que a requerente se pudesse sustentar, alimentar, vestir e calçar, sobreviver, sem ter ainda que mendigar,

58º Mas, manifestamente insuficiente, para colmatar as suas necessidades mais básicas, que incluem ainda o pagamento da água e da luz.

59º Com este dinheiro, a aqui requerente, teve ainda de pagar contas do marido R. J. que este deixou, desde que ele abandonou o lar em Fevereiro até Julho, de gastos com o seu telemóvel na ordem e em média dos € 70,00 a € 90,00 mensais, que estavam incluídos no pacote da internet e canais de televisão que tinham em casa, e teve de pagar ainda a água e a luz.

60º Foi como se disse já pela requerente totalmente consumido nas suas necessidades diárias mais básicas, gasto pela requerente para a sua própria sobrevivência, sem os quais a sua alimentação diária não seria possível, pelo que, e dado que ainda não foi decretado o divórcio, deve ser reconhecido e declarado pelo tribunal, como dinheiro que integrou a obrigação de alimentos na vigência da sociedade conjugal, nos termos dos arts. 2015º e 1675º do CC, que melhor se denominaria dever de manutenção, e que foi absorvido pelos encargos da vida familiar, nomeadamente a alimentação do conjugue que não aufere rendimentos, e que reveste natureza meramente provisória.

61º Sendo que nesta altura, a aqui requerente já precisou e precisa da ajuda de familiares e amigos, para poder sobreviver, e já teve necessidade de pedir dinheiro emprestado e por isso encontra-se atualmente numa situação muito difícil e já endividada, pois o valor acima referido foi manifestamente insuficiente para todas as necessidades elementares da aqui requerente.»

Ora, este quadro factual apesar de se não se reportar inteiramente ao período posteriormente a 13.7.2021 porque os factos tiveram início anteriormente, evidencia precisamente a situação de falta de recursos da Ré à data do pedido, mercê do esgotamento da quantia de € 3.200,97 da conta bancária do casal que a mesma foi usando para o seu sustento.

Assim, salvo o devido respeito, não podemos concordar com a afirmação da decisão recorrida de que no requerimento de 17.11.2021 a Ré não invoca quaisquer circunstâncias supervenientes à data da prolação da decisão de 13 de Julho de 2021.

Destarte, não obstante o trânsito em julgado da decisão proferida em 13 de Julho de 2021, podendo a mesma ser alterada ocorrendo uma modificação superveniente das circunstâncias, dado ter uma natureza análoga aos processos de jurisdição voluntária, entendemos que os factos alegados permitem configurar essa alteração de circunstâncias e assim sendo o pedido alimentos provisórios apresentado em 17.11.2021 devia ter sido recebido e tramitado com vista à fixação de uma pensão de alimentos única e exclusivamente para o período de pendência da acção de divórcio.

E apesar de os cônjuges terem vindo a prescindir de alimentos definitivos, tratando-se de pedidos distintos, face à posição manifestada pela Ré, impõe-se a procedência do recurso e, consequentemente, a revogação da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que dando seguimento ao pedido apresentado, proceda à respectiva instrução, decidindo a final se o requerido deve ou não ser condenado no pagamento de alimentos provisórios à requerente desde 17.11.2021 até à data do trânsito em julgado da decisão do processo de divórcio."

[MTS]