1. Do sumário de RE 10/11/2022 (2375/21.9T8STR.E1) consta, no que agora é relevante, o seguinte:
I. Apesar de não fazer prova plena quanto à veracidade da declaração, se na escritura pública de compra e venda, com base nas declarações dos contraentes perante o notário se fez constar o preço do imóvel, essa declaração vale como confissão nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do Cód. Civil [...].
2. A (interessante) questão que o acórdão levanta é a seguinte: o preço declarado pelas partes numa escritura de compra e venda vale como confissão, ou seja, tem um efeito confessório?
Lembre-se a noção de confissão: "Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária" (art. 352.º CC). Suponha-se agora que na escritura de compra e venda se fixa, por exemplo, o preço de € 25.000; isto quer dizer o seguinte:
-- Para o comprador, o preço não é mais de € 25.000 (mas pode ser menos, se assim o provar);
-- Para o vendedor, o preço não é menos de € 25.000 (mas pode ser mais, se assim o demonstrar).
Perante isto, não se consegue descobrir, para nenhuma das partes, um efeito desfavorável decorrente da declaração do preço na escritura de compra e venda. Pelo contrário: o comprador reconhece que tem de pagar € 25.000, e não mais (o que, à partida, lhe é favorável) e o vendedor reconhece que tem a receber € 25.000, e não menos (o que, à partida, também lhe é favorável).
Assim, em vez de alguma das partes ficar prejudicada com o preço declarado na escritura, qualquer delas ganha alguma coisa com essa declaração. É por isso que, caso qualquer das partes venha a impugnar o preço declarado como sendo o preço verdadeiro, a sua situação só pode vir a melhorar com a procedência dessa impugnação: a situação do comprador melhora com a diminuição do preço e a do vendedor com o aumento do preço.
Aliás, a ideia de que qualquer das partes perde algo com o preço declarado na escritura é totalmente contra-intuitiva. Simplificando: se alguém comprar um automóvel num stand, quais são os efeitos desfavoráveis que, para cada uma das partes, produz o preço acordado entre elas?
3. Segundo se pode intuir, a especialidade do caso em análise reside em que o preço declarado na escritura produz sempre, como se demonstrou, um efeito favorável para cada uma das partes. No fundo, esse preço representa, pela perspectiva de cada uma das partes, um limite máximo do que tem a pagar (mas, se impugnar, pode vir a pagar menos) e um limite mínimo do que tem a receber (mas, se impugnar, pode vir a receber mais).
Repare-se que, segundo a noção de confissão, é necessário, para que esta ocorra, que seja reconhecido um facto desfavorável e que este reconhecimento represente algo de favorável para a outra parte. É precisamente este binómio "efeito desfavorável/efeito favorável" que não se verifica no caso do preço declarado pelas partes na escritura pública. Neste, o que realmente ocorre é o binómio "efeito favorável/efeito favorável", ou seja, um efeito favorável para ambas as partes.
É também esta visão das coisas que justifica o acordo entre o comprador e o vendedor. Quando estas partes chegam a acordo -- nomeadamente, sobre o preço --, nenhuma delas considera que está a produzir para si própria um efeito desfavorável. Um comprador que considera o preço proposto pelo vendedor um "mau negócio" não chega a acordo com esta parte; mutatis mutandis, o mesmo sucede com o vendedor. O acordo entre o comprador e o vendedor -- nomeadamente, quanto ao preço -- pressupõe que ambas as partes sentem que ganham alguma coisa com o negócio. É contra-intuitivo pensar que as partes chegaram a acordo (nomeadamente, quanto ao preço), precisamente porque ambas sentem que estão a produzir algo de lhes é prejudicial. O acordo entre as partes surge exactamente porque ambas sentem que ganham alguma coisa com o negócio. Portanto, um preço declarado pelas partes numa escritura pública nunca pode ser visto como a confissão de um facto desfavorável.
Estará, pois, claro o que distingue a declaração pelas partes do preço numa escritura de compra e venda de uma verdadeira confissão. Nesta, verifica-se um efeito desfavorável para o confitente e um correspondente efeito favorável para a outra parte. Por exemplo: se A confessar que recebeu um empréstimo de € 1.000 de B, esta confissão é desfavorável para A (que tem um dever de restituição) e favorável para B (que tem um direito à restituição).
4. Prevenindo qualquer mal-entendido, cabe acrescentar que não se pode dizer que o comprador "confessa" que deve o preço e que o vendedor "confessa" que deve entregar a coisa. Isto é incorrecto por duas razões: (i) a confissão incide sobre factos, não sobre efeitos (jurídicos) de factos; portanto, não há nenhuma confissão de um dever de pagamento e de entrega; os deveres reconhecem-se, não se confessam; (ii) é irrealista configurar o contrato de compra como uma confissão recíproca de um dever de pagamento e de um dever de entrega.
Cabe ainda referir que também não se pode dizer que o comprador é prejudicado, porque, em relação ao preço declarado, o preço poderia ser sempre mais baixo, e que o vendedor é prejudicado, porque, também em relação ao preço declarado, o preço poderia ser sempre mais alto. Como é claro, não é por estes aspectos ligados à justiça comutativa do contrato e ao que não foi declarado pelas partes que se pode justificar que cada uma das "confessa" um facto desfavorável. O que interessa é preço declarado pelas partes e o que a declaração desse preço (seja ele considerado alto ou baixo) garante a cada uma delas. Neste plano, não há, como acima se demonstrou, nada de desfavorável para as partes; pelo contrário, o preço declarado garante um máximo a pagar pelo comprador e um mínimo a receber pelo vendedor.
Por fim, cabe ainda elucidar que, pelas mesmas razões, também não tem nenhuma relevância a circunstância de o negócio poder ser considerado ruinoso para o comprador ou para o vendedor. Se o preço da compra for, em termos de mercado, muito barato ou for muito caro, isso não pode ser entendido como significando que o comprador "confessa" um preço alto ou que o vendedor "confessa" um preço baixo. A única coisa que pode interessar é o preço declarado pelas partes, não qualquer outra alternativa.
5. Em conclusão:
-- O preço referido da escritura não produz um efeito desfavorável para nenhuma das partes; o que realmente se verifica é precisamente o contrário: o comprador "ganha" um preço máximo e o vendedor um preço mínimo;
-- Não é possível, por isso, atribuir nenhum efeito confessório ao preço declarado pelas partes de uma escritura de compra e venda.
MTS