No agora impugnado saneador-sentença, onde os RR. foram absolvidos «dos pedidos deduzidos» (cfr. dispositivo), por se julgar procedente a exceção da autoridade do caso julgado, partiu-se do pressuposto de que, in casu, tem «a reconvenção natureza necessária ou compulsiva» (cfr. fundamentação de direito).
E isto por ter anteriormente corrido termos uma outra ação declarativa entre a aqui 1.ª R. (ali autora/reconvinda) e o ora A. (ali réu/reconvinte), âmbito em que este último, na sua reconvenção, invocou já o seu direito de retenção, cujo reconhecimento pediu, para garantia de um crédito sobre a sociedade construtora, no valor de € 90.000,00, tendo a reconvenção improcedido, formando-se caso julgado nesse sentido, bem como no do reconhecimento do direito de propriedade da ali autora e na obrigação de entrega a esta do bem retido ([---]).
Vista a sentença proferida no âmbito daquela anterior ação ([---]), constata-se que foi julgado assim (na parcial procedência da ação e total improcedência da reconvenção):
«(…) ENTENDE-SE QUE O DIREITO DE RETENÇÃO INVOCADO PELO RÉU, A TER EXISTIDO, CADUCOU COM A TRANSMISSÃO DO BEM EM PROCESSO DE EXECUÇÃO E,
CONSEQUENTEMENTE, CONDENA-SE O RÉU A ENTREGAR À AUTORA A PARTE DO IMÓVEL (…) QUE OCUPA, LIVRE DE PESSOAS E BENS.
II. NO MAIS, JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO DA AUTORA, DELE ABSOLVENDO O RÉU.
III. JULGA-SE IMPROCEDENTE O PEDIDO RECONVENCIONAL, DELE ABSOLVENDO A AUTORA» ([---]).
Trata-se, pois, no essencial, de ação de reivindicação, que foi julgada procedente (nesse âmbito), enquanto a reconvenção se restringia àquele peticionado reconhecimento do direito de retenção – para obstar à entrega –, no que ocorreu decaimento do ali reconvinte (ora A.), por se ter considerado que o direito de retenção, a ter existido, se extinguiu, por caducidade, com a transmissão executiva do bem.
Este, pois, o âmbito do anterior julgamento, com a inerente situação de causa já julgada (ação e reconvenção).
Na presente ação – posterior àquela e perante o desfecho da mesma – vem o A. pedir, como visto ([---]), a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 90.000,00 e juros de mora, por via de: (i) responsabilidade civil por facto ilícito (e enriquecimento sem causa) quanto à 1.ª R.; e (ii) responsabilidade civil (solidária) quanto ao 2.º R..
Trata-se, pois, agora, de ação de responsabilidade (indemnizatória) – e de invocado enriquecimento – pelos danos/perdas alegadamente causados, ao não ter sido respeitado o seu direito de retenção no âmbito executivo (vícios ocorridos na execução onde teve lugar a aludida transmissão executiva do bem que originou a caducidade do invocado direito de retenção, sem aproveitamento da garantia).
É líquido, pois, que sobre esse direito de garantia se pronunciou a anterior ação (de reivindicação), para se julgar, somente (em saneador-sentença), que o direito de retenção, «a ter existido, caducou com a transmissão do bem em processo de execução».
Quer dizer, nem sequer se afirmou ali – e nem tal era necessário na economia da ação de reivindicação – que o direito nunca existiu. Apenas se estabeleceu que, ainda que tenha existido, já se havia, entretanto, extinguido, por caducidade, esta decorrente da operada transmissão/alienação executiva do bem.
Isto é, ao tempo da anterior ação declarativa, ocorrida já a transmissão do bem na execução, o direito de retenção sempre teria de considerar-se extinto, o que levou à improcedência da reconvenção e à condenação na entrega à ali autora.
Mas o aqui A. vem agora situar-se, em termos temporais, precisamente em fase anterior àquela ação declarativa, a fase executiva e, dentro desta, o tempo anterior à transmissão do bem, considerando que foi aí que ocorreu o invocado facto ilícito – por ter sido desrespeitado aquele direito de retenção, cujo facto extintivo então ainda não se tinha verificado – gerador da responsabilidade civil que imputa a ambos os aqui RR.
Esta é, pois, uma ação de responsabilidade/indemnizatória (para além de enriquecimento), visando estabelecer a responsabilidade civil de ambos os aqui RR., com reporte a um tempo anterior à transmissão executiva do bem, logo, um tempo em que o direito de retenção, a existir, ainda não estava extinto por caducidade.
Deveria o aqui A., na sua reconvenção na anterior ação de reivindicação, para além de peticionar – no que não teve êxito (por o direito ter já caducado) – o seu direito de retenção, também formular o pedido da ação de responsabilidade civil, por factos ocorridos no âmbito executivo anterior à transmissão do bem, contra a A./Reconvinda e contra terceiro (o AE), fazendo intervir este nos autos, através de incidente da instância para o efeito, sob pena de preclusão relativamente ao seu direito indemnizatório?
Com efeito, tem de convir-se, salvo o devido respeito, que a anterior ação (de reivindicação) em nada se reporta à questão indemnizatória, nada julgando sobre esta. Reporta-se, isso sim, claramente, à questão da (in)existência do direito de retenção, direito este fundamento agora da ação indemnizatória.
Mas apenas julga, quanto a tal direito de retenção, no sentido, como visto, de estar o mesmo já extinto, caso tenha existido, por caducidade, decorrente da transmissão executiva do bem. Não se nega, pois, ali que o direito de retenção existisse ao tempo do agora imputado facto ilícito, questão que não foi conhecida ([--]).
E nem era necessário ir mais além, na economia da ação declarativa anterior, posto que a extinção do direito de retenção afastava o obstáculo invocado à entrega do imóvel, escopo da reivindicação empreendida.
Mas, nesta perspetiva, estamos necessariamente a jusante do facto ilícito invocado pelo aqui A., o que não afasta que o direito de retenção pudesse ter existido no tempo anterior à transmissão/alienação executiva.
Assim, é inequívoco que estamos perante matéria não julgada naquela anterior ação declarativa ([---]).
Diversa seria a situação, obviamente, se tivesse ali sido estabelecido que o ora A. nunca foi titular do direito de retenção.
Mas, ainda assim, haverá preclusão quanto à pretensão indemnizatória? E quanto a ambos os ora RR.?
O ali reconvinte, para além de peticionar o reconhecimento do direito de retenção (a que se reportava o pedido da ali autora), teria também de peticionar, subsidiariamente (para a hipótese de esse direito não lhe ser reconhecido e ter de abrir mão do bem, entregando-o), logo ali, a indemnização que agora pretende, inclusive contra terceiro em relação à ação, sob pena de já não o poder fazer mais tarde? Ou, retomando a argumentação da decisão em crise: o caso será, quanto a tal vertente indemnizatória (e de enriquecimento), de reconvenção necessária ou compulsiva?
Ora, desde logo, parece, salvo o devido respeito, que aqui não haverá conflitualidade/incompatibilidade com o anteriormente decidido na ação de reivindicação, visto o juízo sobre o direito de retenção (base para a formulada indemnização) se reportar a momentos temporais diversos.
E, nessa perspetiva, o momento a que se reportou a decisão anterior não coincide com aquele a que se reporta a causa de pedir do A. na presente ação: aquela decisão reportava-se ao tempo pós-transmissão executiva do bem, já que essa transmissão/alienação implicava a inexorável caducidade do direito de retenção invocado; esta causa de pedir reporta-se à fase executiva prévia a tal transmissão, numa altura em que, assim, ainda não operava a causa de caducidade/extinção.
Não parece, pois, proporcional – antes sendo excessivo, salvo o devido respeito, até no plano do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais (cfr. art.º 20.º da CRPort. e, do mesmo modo, na legislação ordinária, o art.º 2.º do NCPCiv.) – fazer operar, nestas circunstâncias, uma dimensão de preclusão que deixasse o aqui A. na impossibilidade, na veste de lesado, de pedir indemnização contra o outro litigante na anterior ação e contra terceiro (que não era parte nessa ação).
Agora, estamos perante matéria indemnizatória, reportada a um tempo não coberto/focado pela anterior ação e respetiva decisão transitada.
Donde que, se não pode operar a exceção do caso julgado, como bem definido na decisão recorrida, também não se mostre consubstanciada a exceção, igualmente dilatória, da autoridade do caso julgado ([---]), a qual, por dilatória, haveria de levar, se bem se vê, à absolvição da instância ([---]). [...]
Note-se que a anterior ação foi decidida em saneador-sentença, sem, pois, que se tivesse produzido provas sobre a matéria controvertida quanto às vicissitudes do invocado contrato-promessa (e seu alegado incumprimento), em que o ali réu/reconvinte fundava o invocado direito de retenção. Toda esta matéria foi considerada irrelevante ou prejudicada ante a conclusão de que o direito de retenção sempre teria de ter-se por extinto, por via de caducidade, decorrente da operada transmissão/alienação executiva do bem, não podendo, assim, ser obstáculo à entrega do imóvel reivindicado.
Na atual ação, o aqui A. (ali reconvinte) não questiona o direito de propriedade, não reivindica o bem, nem insiste no reconhecimento do invocado direito de retenção. A sua pretensão é agora indemnizatória, por invocado facto ilícito anterior à transmissão do bem na ação executiva.
Sobre esta matéria nada foi pedido ou decidido na ação declarativa anterior, posto a questão indemnizatória em nada fazer parte do objeto do processo dos autos de reivindicação.
Ao ali réu/reconvinte não era exigível, em matéria jurídica complexa, que previsse/configurasse que o seu decaimento levava à preclusão quanto ao direito a uma indemnização por facto ilícito anterior à transmissão executiva do bem.
Nem tal preclusão se afigura proporcional numa situação como a dos autos, por o caso não corresponder ao que se vem entendendo por «reconvenção necessária ou compulsiva». [...]
Em suma, no caso dos presentes autos há autonomia: a pretensão indemnizatória é autónoma perante a pretensão dominial, tal como é autónoma em relação ao não reconhecimento do direito de retenção, fundando-se em anterior facto ilícito (anterior à extinção, por caducidade, do direito de retenção).
Nesta ação, o A., visando ser ressarcido (por considerado dano/perda ocorrido), não pretende abalar o caso julgado constituído na ação anterior, não questionando o direito de propriedade já ali reconhecido à contraparte, nem a imposição de entrega do bem, nem a decisão de extinção, por caducidade, do direito de retenção.
O que pretende agora é outra coisa: exercer um direito indemnizatório por facto ilícito anterior àquela extinção do direito de retenção.
Desde a obra Ueber Litis Contestation und Urtheil nach classischem Römischem Recht, publicada em 1827 pelo jurista suíço F. L. Keller, entende-se que o caso julgado produz um efeito positivo e um efeito negativo:
-- O efeito positivo é a autoridade de caso julgado: o tribunal posterior fica vinculado ao decidido pelo tribunal anterior (quase sempre sobre uma questão prejudicial para o julgamento da segunda acção);
-- O efeito negativo é a excepção de caso julgado: o tribunal posterior não pode voltar a julgar, entre as mesmas partes, o que já foi julgado pelo tribunal anterior; esta excepção é uma excepção dilatória nominada (art. 577.º, al. i), CPC).
Já daqui resulta que não pode existir nenhuma "exceção de autoridade de caso julgado", desde logo porque esta expressão conjuga dois efeitos incompatíveis: o referido efeito positivo do caso julgado e o seu referido efeito negativo.
Muito menos se compreende que aquela "exceção de autoridade de caso julgado" seja uma excepção dilatória inominada [Nota 12 do acórdão: "O caso julgado – e a autoridade do caso julgado, por identidade de razão – é uma exceção dilatória [cfr. art.º 577.º, al.ª i), do NCPCiv., com enunciação não taxativa [...]"]. Cabe perguntar:
-- Uma vez que os acima enunciados efeitos negativo e positivo do caso julgado esgotam as situações possíveis, quais as situações que restam para a aplicação daquela estranha "exceção de autoridade de caso julgado"?
-- Se a autoridade de caso julgado é uma excepção dilatória inominada, como se obtém a vinculação do tribunal da causa dependente ao decidido pelo tribunal da causa prejudicial?; segundo a lógica da referida excepção, o tribunal da causa dependente deveria abster-se de conhecer do mérito dessa causa, porque há uma decisão de um outro tribunal sobre uma questão prejudicial; não é preciso mais nada para se dever concluir que, em termos teóricos, não pode ser assim e que, em termos práticos, não faz sentido que seja assim.