1. O art.
343.º, n.º 1, CC estabelece que, nas acções de apreciação ou declaração
negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se
arroga. Supõe-se que se pode dizer que, na jurisprudência, é maioritária a
orientação segundo a qual este preceito implica uma inversão do ónus da prova: nas
acções de simples apreciação negativa, não cabe ao autor alegar e provar, pela negativa,
que o direito ou facto não existe, mas compete ao réu, que vinha arrogando
extrajudicialmente a existência desse direito ou facto, alegar e provar pela
positiva, tal existência (RC 12/6/2007; RC 19/1/2010; RC 22/3/2011; RL 14/4/2001; RC 24/5/2011; RC 8/11/2011; RC 11/9/2012; RC 16/10/2012 ; RG 4/12/2012; RL 4/7/2013). Supõe-se também que é a
atribuição do ónus da prova ao réu que justifica a "fuga para a acção de
apreciação negativa" que se detecta em alguma jurisprudência.
2. Neste
contexto, é especialmente significativo STJ
25/2/2014 (já referido num anterior post numa outra perspectiva). Este acórdão qualificou uma
acção de impugnação da resolução de um contrato-promessa em benefício da massa
insolvente como sendo uma acção de apreciação negativa. Especialmente
interessantes são as consequências que o acórdão retira desta qualificação.
Transcreve-se do acórdão (a passagem cita igualmente outra jurisprudência no
mesmo sentido):
“[…] Se na reconvenção o Réu pretende
ver declarada a eficácia da resolução por si efectivada através da carta
enviada ao promitente comprador, tal pedido mostra-se inócuo, já que a
improcedência da acção de simples apreciação negativa tem essa necessária
consequência em termos prático-jurídicos, estando a coberto do caso julgado no
que tange a essa constatação, tornando desnecessária qualquer outra providência
por parte do Réu, maxime, a
instauração pelo seu lado de uma acção de simples apreciação positiva […]”
A orientação do STJ é ainda mais
explícita nesta passagem do mesmo acórdão:
“Nesta sede da simples apreciação, o
âmbito da acção está confinado à mera declaração da existência ou inexistência
do direito, pelo que se entende ser redundante a dedução de pedido
reconvencional por parte do Réu, pois a mesma não constitui nenhuma mais-valia
perante a eventual procedência da defesa que vier a ser deduzida, constituindo
esta o contraponto da posição do Autor ao pedir a declaração de inexistência do
direito que o Réu se arroga.”
3. Do exposto pode concluir-se que o
STJ considera que a atribuição ao réu, nos temos do art. 343.º, n.º 1, CC, do
ónus da prova dos factos constitutivos torna inútil a dedução de um pedido
reconvencional por esse demandado, dado que o que essa parte vai obter através
da prova daqueles factos é o mesmo que poderia conseguir através da procedência
desse pedido reconvencional. Quer isto dizer que o STJ entende que a aplicação
do art. 343.º, n.º 1, CC conduz a uma consequência que é equivalente à da
procedência de um pedido reconvencional. Repare-se que este argumento reversível:
se a aplicação do art. 343.º, n.º 1, CC provoca um efeito equivalente ao da
procedência de um pedido reconvencional, então cabe perguntar por que razão aquele
preceito não é aplicável apenas quando tenha sido deduzido um pedido
reconvencional pelo demandado numa acção de apreciação negativa.
Os parâmetros processuais habituais orientam-se
pela necessidade de utilizar um meio processual (contestação, alegação, apresentação
de prova, interposição de recurso, etc.) para obter a produção um efeito em
juízo: sem meio admissível e adequado não há a produção do efeito pretendido. Sendo
assim, o STJ só pode impedir o réu de uma acção de apreciação negativa de formular
um pedido reconvencional se pressupuser que a atribuição do ónus da prova do
facto constitutivo ao réu vale, ela mesma, como uma reconvenção “oculta”. É
porque a atribuição desse ónus coloca o réu na posição de reconvinte que esta
parte não pode deduzir explicitamente um pedido reconvencional: sem esta
coincidência, não se perceberia por que razão aquela atribuição impederia este pedido.
Dito de outra forma: o STJ entende que, mesmo sem a dedução explícita deste
pedido, o réu torna-se necessariamente reconvinte quando lhe é imposta, não a contraprova
ou a prova do contrário dos factos alegados pelo autor, mas a prova de factos constitutivos
que também lhe incumbe alegar.
Acresce ainda que esta construção leva
a concluir que a improcedência da acção de apreciação negativa só pode ser
conseguida através da procedência de uma “contra-acção” baseada num facto
constitutivo. Quer dizer: ao impor-se ao réu a prova do facto constitutivo como
forma de obstar à procedência da acção de apreciação negativa, não se permite
que esta parte se limite a impugnar os factos impeditivos, modificativos ou
extintivos alegados pelo autor e procure obter apenas a improcedência da acção com
base na não veracidade desses factos.
Esta verificação tem consequências –
talvez inesperadas – que devem ser salientadas. Se a única forma de o réu de
uma acção de apreciação negativa obter a improcedência da acção é através da
prova do facto constitutivo do direito de que se arroga, então a causa de pedir
alegada pelo autor não tem nenhuma relevância, porque, mesmo que o réu impugne os
factos alegados pelo autor, ainda assim aquela parte só consegue obter a
improcedência da causa se alegar e provar o facto constitutivo do direito de que
alega ser titular. Numa palavra, a ser assim, o regime decalca na actualidade as
acções de jactância medievais, apoiadas nas fontes romanas (provocatio ex lege diffamari; provocatio ex
lege si contendat) (cf. o trecho de Chiovenda
no n.º 4).
Pelo exposto, não parece que possa ser
este o regime legal e, por isso, não parece que o art. 343.º, n.º 1, CC deva
ser o único preceito a regular a distribuição do ónus da prova numa acção de
apreciação negativa. A solução reside antes em entender que:
i) O autor tem o ónus de alegar – e, em
caso de impugnação pelo réu, provar – os factos impeditivos, modificativos ou
extintivos que constituem a causa de pedir do seu pedido de declaração da
inexistência de um direito ou facto;
ii) O réu pode limitar-se a impugnar os
factos alegados pelo autor e a procurar obter (apenas) a improcedência da
causa com base na contraprova ou na prova do contrário daqueles factos;
iii) O réu pode ainda, além de procurar
obter a improcedência da causa, pretender obter o reconhecimento do seu
direito; nesta hipótese, deve deduzir o respectivo pedido reconvencional,
aplicando-se então (mas apenas então) o disposto no art. 343.º, n.º 1, CC.
4. Porque o conhecimento dos “clássicos”
é sempre importante (até porque, não raramente, se encontra neles o que as
gerações seguintes esqueceram), tem interesse conhecer o que, a propósito do
ónus da prova nas acções de simples apreciação, escreveu Chiovenda: “Também
no que respeita ao ónus da prova, a acção de simples apreciação não difere
[...] de qualquer outra acção; o autor é aquele que pede a actuação da lei; e o
ónus da prova pertence-lhe, de acordo com as regras gerais. Isto é mais claro
na acção de apreciação positiva. Mas é igualmente verdade na negativa: nesta
última, ele deverá provar a inexistência de uma vontade da lei, sem que se
possa distinguir, como alguém faz, entre o caso em que se negue que um direito
jamais tenha nascido, no qual a prova dos factos constitutivos incumbirá ao
réu, e o caso no qual se negue que exista actualmente, no qual o autor da
declaração deverá provar os factos extintivos. Neste ponto deve acentuar-se a
diferença fundamental entre a acção de apreciação e os juízos de jactância. E
reincide-se em todos os inconvenientes da coacção a agir (nemo invitus agere cogatur), quando se dá ao autor da acção de apreciação
negativa o tratamento de que gozaria se fosse réu. É suficiente benefício, para
o autor, poder obter do processo, por sua própria iniciativa, a certeza
jurídica, sem que seja preciso agravar a posição do réu, constrangendo-o a uma
prova para a qual forçosamente não está preparado” (N. Dig. It. II (1937), 131 s.).
MTS