1. Segundo o seu sumário, o acórdão do STJ de 24/2/2014 decidiu o seguinte:
"I –
Do acórdão da Relação que, sem voto de vencido, e com fundamentação
diferente, confirmou a decisão da 1.ª instância, não era admissível
recurso no regime do processo civil constante do DL n.º 303/2007, de
24/08, mas já o é no regime instituído pela Lei n.º 41/2013 de 26/06,
que entrou em vigor em 01-09-2013.
II – A lei nova respeitante aos
pressupostos da admissibilidade dos recursos não se aplica às decisões
que tenham sido proferidas antes de a lei nova entrar em vigor.
III – Assim, tendo a acção
sido intentada após 01-01-2008 e o acórdão da Relação que confirmou a
sentença de 1.ª instância sido proferido em 02-08-2013, dele não cabe
recurso de revista com base na diversidade de fundamentação empregue
pela 1.ª e pela 2.ª instância."
Dado que a acção foi proposta depois de 1/1/2008, mas o acórdão da Relação é anterior a 1/9/2013, não é aplicável ao caso o disposto no art. 7.º, n.º 1, L 41/2013, de 26/6: este preceito só regula a aplicação da lei no tempo quanto aos recursos a interpor de decisões proferidas depois de 1/9/2013 em acções propostas antes de 1/1/2008. A justificação do preceito é a seguinte: tendo a acção sido proposta antes de 1/1/2008, nenhuma das partes deve ficar abrangida pelas restrições à recorribilidade decorrentes do regime da dupla conforme (em vigor desde 1/1/2008), nem mesmo na versão menos restritiva que consta agora do art. 671.º, n.º 3, nCPC. Visualmente, o disposto no art. 7.º, n.º 1, L 41/2013 é aplicável quando a acção tenha sido proposta no momento x e o acórdão da Relação tenha sido proferido no momento y:
.......x......[1/1/2008 ........................................ 1/9/2013] .....y.....
No caso sub iudice, a acção foi proposta depois de 1/1/2008 e o acórdão da Relação foi proferido antes de 1/9/2013, pelo que não lhe é aplicável o disposto no art. 7.º, n.º 1, L 41/2013. Atendendo a que que tudo (propositura da acção e decisão da Relação) ocorreu no domínio da lei antiga, entendeu o STJ que esta é a lei aplicável à recorribilidade do acórdão da Relação e que, por isso, essa recorribilidade devia ser analisada em função do disposto no art. 721.º, n.º 3, aCPC. Utilizando o esquema acima apresentado, os elementos relevantes do caso ocorreram, todos eles, no tempo "entre parêntesis" a que o art. 7.º, n.º 1, L 41/2013 não é aplicável.
Tomando como base estes dados, a orientação do STJ parece inatacável. Se nada transita para o domínio da lei nova (LN), não se suscita nenhum conflito de leis no tempo e tudo se resolve segundo a lei vigente no momento do proferimento do acórdão da Relação. Os dados do caso sub iudice permitem concluir, no entanto, que o trânsito em julgado do acórdão da Relação (proferido em 2/8/2013) só terá ocorrido depois de 1/9/2013, ou seja, só terá acontecido na vigência do nCPC. Acresce que, dado que a apelante requer, nas suas alegações, a aplicação do art. 671.º, n.º 3, nCPC pelo STJ, pode presumir-se que o recurso foi interposto já na vigência do nCPC. A pergunta que se coloca é então a de saber qual a lei aplicável à interposição de um recurso depois de 1/9/2013 de uma decisão proferida antes desta data.
Para responder a esta pergunta, pode utilizar-se um dos seguintes critérios: o momento relevante para aferir a recorribilidade é o do proferimento da decisão; esse momento é o da interposição do recurso. Pode entender-se -- com boas razões -- que o direito ao recurso se constitui no momento do proferimento da decisão que se pretende impugnar, pelo que a recorribilidade tem de ser aferida pela lei vigente nesse mesmo momento; assim o entendeu também o acórdão do STJ. No entanto, as situações problemáticas são, precisamente, aquelas nas quais, como no caso concreto, a interposição do recurso ocorre num momento em que já está em vigor um novo regime legal que torna admissível uma impugnação que era inadmissível aquando do proferimento da decisão.
Para responder a esta pergunta, pode utilizar-se um dos seguintes critérios: o momento relevante para aferir a recorribilidade é o do proferimento da decisão; esse momento é o da interposição do recurso. Pode entender-se -- com boas razões -- que o direito ao recurso se constitui no momento do proferimento da decisão que se pretende impugnar, pelo que a recorribilidade tem de ser aferida pela lei vigente nesse mesmo momento; assim o entendeu também o acórdão do STJ. No entanto, as situações problemáticas são, precisamente, aquelas nas quais, como no caso concreto, a interposição do recurso ocorre num momento em que já está em vigor um novo regime legal que torna admissível uma impugnação que era inadmissível aquando do proferimento da decisão.
Quanto a esta situação, há ainda que considerar duas hipóteses, dado que, tomando como referência a lei vigente no momento do proferimento da decisão, a LN pode restringir ou alargar a recorribilidade da decisão. A resposta é intuitiva se a LN restringir o recurso que era admissível no momento do proferimento da decisão: a resposta não pode deixar de ser a irrelevância da LN mais restritiva, dado que esta não pode destruir a expectativa do (potencial) recorrente. A resposta é muito menos assertiva na hipótese inversa: a LN torna admissível um recurso que era inadmissível no momento do proferimento da decisão. Nesta hipótese, tudo está em saber se um direito ao recurso que só se constitui depois do proferimento da decisão se sobrepõe à expectativa da contraparte no trânsito em julgado da decisão. A contraposição entre um direito de uma parte e uma mera expectativa da outra pode levar a concluir pela prevalência daquele direito sobre esta expectativa. A questão merece, no entanto, uma análise muito mais aprofundada, embora pareça certo que, ao contrário do realizado pelo STJ no acórdão em análise, não são transponíveis para a hipótese em apreciação os motivos que justificam que uma decisão, que era irrecorrível no momento do seu proferimento e que, por isso, já transitou em julgado, possa ser abrangida por uma LN mais ampla quanto à admissibilidade do recurso.
2. Aproveitando para fazer, em termos esquemáticos, uma recapitulação da aplicação no tempo do regime dos recursos, pode afirmar-se o seguinte:
-- 1.ª hipótese
.......x......[1/1/2008 ........................................ 1/9/2013] .....y.....
Solução: aplicação do art. 7.º, n.º 1, L 41/2013, pelo que não se aplica ao recurso interposto do acórdão da Relação proferido em y o art. 671.º, n.º 3, nCPC (nem, aliás, nenhum regime relativo à dupla conforme);
-- 2.ª hipótese
.............[1/1/2008 ..........x.............................. 1/9/2013] .....y.....
Solução: aplicação do nCPC à recorribilidade do acórdão da Relação proferido em y, o que implica que, no caso de se verificar uma situação de dupla conforme, a admissibilidade do recurso de revista é analisada de acordo com o disposto no art. 671.º, n.º 3, nCPC (aliás, mais favorável ao potencial recorrente que o art. 721.º, n.º 3, aCPC).
3. O caso sub judice mostra o acerto da alteração legislativa introduzida no regime da dupla conforme tal como consta do agora art. 671.º, n.º 3, nCPC (dentro da óptica de subsistência do regime, dado ter-se entendido que ainda não havia uma experiência suficientemente consolidada para se poder fazer uma avaliação ponderada desse regime). É certo que, no caso sub iudice, as decisões da 1.ª instância e da Relação foram ambas decisões de absolvição do demandado, mas os seus fundamentos são completamente distintos: a 1.ª instância considerou a acção improcedente por ter entendido que o réu não praticou o facto ilícito que lhe era imputado pela demandante; a Relação manteve a absolvição do pedido com o fundamento de que a apelante
(autora) se limitou, na alegação e nas conclusões do seu recurso, a impugnar a decisão sobre a
matéria de facto, sem questionar a decisão de direito, e, portanto, sem possibilitar ao tribunal ad quem uma decisão sobre o aspecto jurídico da causa. Nestas circunstâncias, facilmente se compreende que, perante fundamentações tão díspares, não deva funcionar o regime da dupla conforme.
4. A latere do caso em análise, o fundamento do acórdão da Relação merece uma breve referência. Afirma-se no acórdão do STJ que a Relação, porque entendeu que a "apelante
se limitou, na alegação e nas conclusões, a impugnar a decisão sobre a
matéria de facto sem questionar a decisão de direito, confirmou a
sentença absolutória da 1.ª instância, não obstante [ter] altera[do] a decisão
sobre a matéria de facto, imputando ao Réu a autoria do facto ilícito na
pessoa da Autora".
A fundamentação parece demasiado formal. Se a Relação tinha dúvidas sobre o sentido do pedido formulado pela apelante nas conclusões das respectivas alegações, parece que ter-se-ia imposto o uso do dever de esclarecimento (agora) estabelecido no art. 7.º, n.º 2, nCPC. Tendo decidido como decidiu, a Relação ficou no mesmo plano de justiça formal da respectiva fundamentação.
MTS