1. O
importante RE
27/2/2014 tem o seguinte sumário:
“I - A
eficácia retroativa da lei processual é admitida, por via, por exemplo, da
consagração de disposições transitórias, desde que não viole a Constituição da
República Portuguesa.
II - A
norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações,
assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703.º do novo
CPC), quando conjugada com o artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, e
interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados
anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do
n.º 1 do artigo 46.º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente
inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança
integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
III - A
eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados
pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no
ordenamento jurídico que não era previsível. Se, à data em que tais documentos
foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar
alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica
constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de
todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos
particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo
Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c)
do n.º1 do artigo 46.º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da
manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.
IV - Por
conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703.º do novo Código de Processo
Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da
exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e
inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança
jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e
juridicamente criadas.
V - De
acordo com a Exposição de Motivos apresentada na Proposta de Lei n.º
113/XII, a retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos
executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações
executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o
mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g., oposições à
execução).
VI - As
razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos
particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, sobre as
legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.
VII - Uma
alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de
particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando
valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão
de ser perante a inevitabilidade de razões da maior importância para a
sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do coletivo.
VIII - Os fins
que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco
dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem
comum coletivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de,
muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir
de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua atuação estaria
protegida pelo Estado de Direito Democrático.”
2. O interessante
acórdão da RE considera inconstitucional, por violação dos princípios da segurança
jurídica e da protecção da confiança, a aplicação do elenco dos títulos
executivos enunciados no art. 703.º nCPC aos títulos constituídos antes de
1/9/2013. O acórdão merece algumas observações.
O acórdão
não qualifica correctamente a situação decorrente do disposto no art. 6.º, n.º
3, L 41/2013, de 26/6, que determina a aplicação do art. 703.º nCPC aos títulos
executivos formados antes da entrada em vigor do nCPC. Em várias
passagens do acórdão a situação é referida como sendo de retroactividade do
nCPC; importa precisar que não se trata de retroactividade, mas tão-só da aplicação imediata do
nCPC aos títulos executivos que se formaram na vigência do aCPC.
Para que
se pudesse falar de retroactividade seria necessário que o art. 6.º, n.º 3, L
41/2013 tivesse retirado carácter executivo a títulos que já tinham produzido a
sua eficácia executiva no passado, isto é, teria sido necessário que o preceito
tivesse atingido execuções baseadas em títulos que deixaram de o ser de acordo
com o nCPC. Não é evidentemente isto que resulta do art. 6.º, n.º 3, L 41/2013:
o que decorre deste preceito é uma aplicação imediata e para o futuro do novo
elenco dos títulos executivos, deixando intocados todos os efeitos que os agora
ex-títulos produziram no passado. A seguir-se a concepção de retroactividade
utilizada no acórdão, haveria que qualificar como retroactiva toda a lei que afectasse
qualquer situação duradoura que transitasse do domínio da lei antiga para o da
lei nova (como, por exemplo, uma nova lei sobre o regime do arrendamento urbano
que fosse aplicável aos contratos subsistentes no momento da sua entrada em
vigor).
Sendo
assim, o que importa averiguar é se é inconstitucional a aplicação imediata e
para o futuro do elenco dos títulos executivos que constam do art. 703.º nCPC e
a consequente exclusão daqueles que o eram em função do art. 46.º aCPC e que
deixaram de o ser depois de 1/9/2013.
3. Parece
ser algo exagerado o entendimento de que os titulares de documentos que eram qualificados
como títulos executivos pelo art. 46.º aCPC possuíam “uma legítima expectativa
de manutenção da anterior tutela conferida pelo direito”, ou seja, tinham uma
legítima expectativa ao uso da acção executiva com base no título extrajudicial.
A CRP garante, no seu art. 20.º, n.º 1, o direito de acesso aos tribunais, mas
não garante o direito de acesso a um tipo de processo. Em particular, é muito duvidoso
que a atribuição de carácter executivo a um documento particular por uma lei
revogada tenha de ser respeitada até se extinguir a última execução instaurada
com fundamento no último desses títulos ainda por executar.
O que
talvez mais impressione no acórdão da RE é a unilateralidade da análise. Nunca
se pondera a posição do executado. Será que, na opção do legislador (que, por
sinal, não coincidiu com a da Comissão de Revisão do Processo Civil), não relevou
que alguns títulos executivos não constituíam garantia suficiente da
constituição da dívida e não protegiam suficientemente o executado? Se o credor
tem um direito constitucionalmente protegido a instaurar uma execução, o
devedor também tem um direito, necessariamente merecedor da mesma protecção, a
não ser executado com base num título que não oferece garantias suficientes de
constituição da dívida (e que até, por vezes, nem assegura ao devedor a consciência
de que está a participar da formação de um título executivo que pode vir a ser
utilizado contra ele). O cruzamento desta problemática com a da protecção do
consumidor impõe, de imediato, uma perspectiva de análise bastante diferente
daquela que foi a assumida no acórdão da RE.
Acresce
que o acórdão resume a situação a uma dicotomia baseada no tudo ou nada: ou é
reconhecido que o credor continua a ter um título executivo (e lhe é permitido
instaurar uma acção executiva) ou isso não lhe é reconhecido (e o credor fica
desprotegido). Não é bem assim. O tudo (execução) e o nada (desprotecção) não
esgotam as alternativas atribuídas ao credor. Designadamente, teria sido
importante ponderar se o procedimento de injunção não pode ser considerado um
meio adequado de protecção dos interesses dos credores que deixaram de poder
instaurar uma execução por força do elenco mais restritivo dos títulos
executivos que consta do art. 703.º nCPC.
4. Pode vir
a acontecer que a tese da inconstitucionalidade da aplicação imediata do art.
703.º nCPC aos títulos anteriores venha a tornar-se prevalecente (na
jurisprudência, na doutrina ou até em ambas). Mas, para que isso suceda, parece
ser preciso algo mais do que é aduzido no acórdão da RE.
MTS