"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/03/2014

Aplicação no tempo do nCPC: títulos executivos forever?


1. O importante RE 27/2/2014 tem o seguinte sumário:

“I - A eficácia retroativa da lei processual é admitida, por via, por exemplo, da consagração de disposições transitórias, desde que não viole a Constituição da República Portuguesa.

II - A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703.º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

III - A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível. Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do n.º1 do artigo 46.º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.

IV - Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703.º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas. 

V - De acordo com a Exposição de Motivos apresentada na Proposta de Lei n.º 113/XII, a retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g., oposições à execução).

VI - As razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.

VII - Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões da maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do coletivo.

VIII - Os fins que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem comum coletivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de, muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua atuação estaria protegida pelo Estado de Direito Democrático.”
 
2. O interessante acórdão da RE considera inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, a aplicação do elenco dos títulos executivos enunciados no art. 703.º nCPC aos títulos constituídos antes de 1/9/2013. O acórdão merece algumas observações.

O acórdão não qualifica correctamente a situação decorrente do disposto no art. 6.º, n.º 3, L 41/2013, de 26/6, que determina a aplicação do art. 703.º nCPC aos títulos executivos formados antes da entrada em vigor do nCPC. Em várias passagens do acórdão a situação é referida como sendo de retroactividade do nCPC; importa precisar que não se trata de retroactividade, mas tão-só da aplicação imediata do nCPC aos títulos executivos que se formaram na vigência do aCPC.

Para que se pudesse falar de retroactividade seria necessário que o art. 6.º, n.º 3, L 41/2013 tivesse retirado carácter executivo a títulos que já tinham produzido a sua eficácia executiva no passado, isto é, teria sido necessário que o preceito tivesse atingido execuções baseadas em títulos que deixaram de o ser de acordo com o nCPC. Não é evidentemente isto que resulta do art. 6.º, n.º 3, L 41/2013: o que decorre deste preceito é uma aplicação imediata e para o futuro do novo elenco dos títulos executivos, deixando intocados todos os efeitos que os agora ex-títulos produziram no passado. A seguir-se a concepção de retroactividade utilizada no acórdão, haveria que qualificar como retroactiva toda a lei que afectasse qualquer situação duradoura que transitasse do domínio da lei antiga para o da lei nova (como, por exemplo, uma nova lei sobre o regime do arrendamento urbano que fosse aplicável aos contratos subsistentes no momento da sua entrada em vigor).

Sendo assim, o que importa averiguar é se é inconstitucional a aplicação imediata e para o futuro do elenco dos títulos executivos que constam do art. 703.º nCPC e a consequente exclusão daqueles que o eram em função do art. 46.º aCPC e que deixaram de o ser depois de 1/9/2013.

3. Parece ser algo exagerado o entendimento de que os titulares de documentos que eram qualificados como títulos executivos pelo art. 46.º aCPC possuíam “uma legítima expectativa de manutenção da anterior tutela conferida pelo direito”, ou seja, tinham uma legítima expectativa ao uso da acção executiva com base no título extrajudicial. A CRP garante, no seu art. 20.º, n.º 1, o direito de acesso aos tribunais, mas não garante o direito de acesso a um tipo de processo. Em particular, é muito duvidoso que a atribuição de carácter executivo a um documento particular por uma lei revogada tenha de ser respeitada até se extinguir a última execução instaurada com fundamento no último desses títulos ainda por executar.

O que talvez mais impressione no acórdão da RE é a unilateralidade da análise. Nunca se pondera a posição do executado. Será que, na opção do legislador (que, por sinal, não coincidiu com a da Comissão de Revisão do Processo Civil), não relevou que alguns títulos executivos não constituíam garantia suficiente da constituição da dívida e não protegiam suficientemente o executado? Se o credor tem um direito constitucionalmente protegido a instaurar uma execução, o devedor também tem um direito, necessariamente merecedor da mesma protecção, a não ser executado com base num título que não oferece garantias suficientes de constituição da dívida (e que até, por vezes, nem assegura ao devedor a consciência de que está a participar da formação de um título executivo que pode vir a ser utilizado contra ele). O cruzamento desta problemática com a da protecção do consumidor impõe, de imediato, uma perspectiva de análise bastante diferente daquela que foi a assumida no acórdão da RE.

Acresce que o acórdão resume a situação a uma dicotomia baseada no tudo ou nada: ou é reconhecido que o credor continua a ter um título executivo (e lhe é permitido instaurar uma acção executiva) ou isso não lhe é reconhecido (e o credor fica desprotegido). Não é bem assim. O tudo (execução) e o nada (desprotecção) não esgotam as alternativas atribuídas ao credor. Designadamente, teria sido importante ponderar se o procedimento de injunção não pode ser considerado um meio adequado de protecção dos interesses dos credores que deixaram de poder instaurar uma execução por força do elenco mais restritivo dos títulos executivos que consta do art. 703.º nCPC.
 
4. Pode vir a acontecer que a tese da inconstitucionalidade da aplicação imediata do art. 703.º nCPC aos títulos anteriores venha a tornar-se prevalecente (na jurisprudência, na doutrina ou até em ambas). Mas, para que isso suceda, parece ser preciso algo mais do que é aduzido no acórdão da RE.
 
MTS