"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/03/2014

Acções de apreciação negativa e ónus da prova (2)


1. O STJ 20/3/2014, na sequência de outros arestos do STJ, qualifica uma acção de impugnação da resolução de um contrato-promessa em benefício da massa realizada pelo administrador de insolvência como uma acção de apreciação negativa. Desta qualificação retira o acórdão, segundo uma interpretação do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC, uma inversão do ónus da prova naquela acção, que se traduz em dispensar o autor de fazer prova de qualquer facto constitutivo da impugnação da resolução e em impor ao réu a prova dos factos que justificam a resolução do contrato-promessa. Consequentemente, como também já foi decidido noutros arestos do STJ, o acórdão acaba por concluir que o demandado na acção de impugnação da resolução não pode deduzir nenhum pedido reconvencional com a seguinte justificação:
 
“Se, na reconvenção, a ré pretende ver declarada a eficácia da resolução extrajudicial por si efectivada, através da carta enviada ao promitente-comprador, tal pedido mostra-se sem qualquer justificação, pois a improcedência da acção de impugnação tem essa necessária consequência, em termos jurídicos, tornando-se desnecessária qualquer outra providência por banda da ré, designadamente a instauração de uma acção de apreciação positiva”.
 
Já houve a oportunidade de criticar esta orientação (aqui). Continuando a reflectir sobre o problema, há que acrescentar uma outra observação.
 
2. Como me foi referido por um Colega do IPPC, a atribuição ao réu de uma acção de apreciação negativa do ónus de provar o facto constitutivo é incompatível com o regime da revelia. Admita-se que o réu de uma acção de apreciação negativa não contesta numa hipótese em que a revelia é operante; a consequência é a confissão dos factos alegados pelo autor (art. 567.º, n.º 1, nCPC); perante isto, há que afirmar o seguinte:
– Se o autor de uma acção de apreciação negativa nada tem de provar e se a impugnação dos factos eventualmente alegados por esse demandante não aproveita ao réu, pode concluir-se, com alguma segurança, que não é necessária a invocação de uma causa de pedir, isto é, a alegação de factos que fundamentem a inexistência do direito (do demandado); se assim se entender, cabe perguntar o que sucede se o réu entrar em revelia, dado que, não tendo sido invocada nenhuma causa de pedir, não podem ficar confessados nenhuns factos; nesta hipótese, o tribunal não dispõe de nenhuns factos para proferir a sua decisão;
– Se, pelo contrário, se admitir que o autor de uma acção de apreciação negativa, apesar de nada ter de provar, ainda assim tem de alegar uma causa petendi, não parece coerente que esse autor obtenha a confissão dos factos alegados se o réu não contestar, mas esta parte não possa limitar-se a impugnar esses mesmos factos, tornando-os controvertidos e impondo ao autor, nos termos gerais do art. 342.º, n.º 1, CC, a sua prova; é estranho que o autor possa beneficiar de uma ficta confessio desses factos em caso de revelia do demandado e que esses mesmos factos não possam ser utilizados por este réu para, através da sua impugnação, procurar obter a improcedência da causa; talvez esteja mesmo em questão a igualdade das partes, dado que os factos invocados pelo autor relevam em benefício desta parte se o réu não contestar, sem que o réu possa retirar qualquer vantagem da sua impugnação; no fundo, constrói-se um sistema em que há uma categoria de factos que só servem para obter a procedência da causa, sem que possam ser utilizados pelo réu para procurar conseguir a improcedência da acção.
 
MTS