"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/03/2014

Acordos colectivos de procedimento: porque não?


1. Por motivos que têm a ver com as especialidades dos regimes processuais tal como constam dos respectivos códigos, surgiram em França os contrats de procédure e na Itália os protocoli di procedura. Aqueles contrats e estes protocolli têm em comum regularem aspectos relacionados com a gestão processual (ou com o case management), mas as suas características mais relevantes são as seguintes:
-- Os contrats de procédure e os protocolli di procedura destinam-se a gerir o processo, não ao nível individual, mas no plano genérico; isto é, a medida de gestão processual é instituída para todos os processos ou, pelo menos, para uma certa categoria de processos;
-- Disto resulta que os contrats de procédure e os protocolli di procedura possuem um âmbito de aplicação territorial correspondente à circunscrição de um tribunal (que, em França, pode ser a de um tribunal de 2.ª instância); atendendo à finalidade de macrogestão processual e ao seu âmbito territorial, os contrats de procedure e os protocolli di procedura são normalmente celebrados, ao nível regional ou local, entre presidentes de tribunais, procuradores do Ministério Público, representantes de ordens profissionais e representantes de funcionários judiciais (cf. este exemplo);
-- Do exposto decorre ainda que os contrats de procédure e os protocolli di procedura se destinam a estatabelecer medidas dotadas de uma eficácia externa; não instituem medidas de gestão a serem observadas ou seguidas dentro do tribunal, mas antes medidas que juízes, procuradores do Ministério Público, representantes de ordens profissionais, representantes de funcionários judiciais e outros interessados aceitam observar e seguir entre si.
 
2. Em Portugal, não há, até agora, nenhuma tradição na celebração de semelhantes acordos colectivos de procedimento (ACPs). Mas -- principalmente num momento em que está em implementação prática o nCPC --, a sua utilidade poderia ser significativa. Lembre-se, a título de exemplo, a vantagem que poderia resultar da regulamentação de alguns pontos controvertidos (ou pelo menos inseguros) sobre a instrução da causa no nCPC. Recorde-se também que a unificação da forma do processo declarativo comum propicia o estabelecimento de modelos de procedimento construídos em função do valor da causa ou do seu objecto. A prática judiciária facilmente encontraria muitos outros possíveis campos de aplicação dos ACPs.
Um dado legislativo possibilita a celebração dos ACPs. O art. 94.º, n.º 2, al. d), LOSJ estabelece que compete ao presidente do tribunal de 1.ª instância adoptar as medidas de simplificação de procedimentos e de transparência do sistema de justiça. Nada parece impedir que essas medidas, em vez de se limitarem àquelas que podem ser definidas unilateralmente pelo presidente do tribunal, possam ser pactuadas por esse presidente com procuradores da Républica e com representantes da Ordem dos Advogados, da Câmara dos Solicitadores e de funcionários judiciais.
Dado tratar-se de uma experiência ainda sem tradição em Portugal, poder-se-ia começar por atribuir a esses ACPs apenas uma vinculatividade in favorem legalitatis (algo mais do que soft law, mas menos que uma vinculatividade impositiva). Assim, o mandatário judicial que observasse a medida constante do ACP teria sempre a garantia de actuar dentro da legalidade instituída por este, mas não se excluiria que o mandatário que não tivesse observado a medida pactuada pudesse procurar demonstrar a legalidade da sua actuação em juízo e não se afastaria que o juiz do processo pudesse aceitar a realização do acto.
 
3. Os ACPs constituiriam, sem dúvida, um factor de confiança e de previsibilidade na administração da justiça, pelo que a sua utilidade seria manifesta. Enfim, cabe perguntar, ACPs: porque não? 
 
MTS