"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/11/2014

Recurso de revista: cassação ou substituição?




1. O art. 726.º aCPC estabelecia o seguinte: “São aplicáveis ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação interposta para a Relação, com excepção do que se estabelece no artigo 712.º e no n.º 1 do artigo 715.º e salvo ainda o que vai disposto nos artigos seguintes”. O correspondente art. 679.º nCPC estabelece que “são aplicáveis ao recurso da revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, com exceção do que se estabelece nos artigos 662.º e 665.º e do disposto nos artigos seguintes”.

A diferença traduz-se no seguinte: o art. 726.º aCPC ressalvava a aplicação apenas do art. 715.º, n.º 1, aCPC, o que implicava que se era aplicável ao recurso de revista o disposto no art. 715.º, n.º 2, aCPC quanto à possibilidade de o STJ conhecer das questões que o tribunal recorrido tinha deixado de conhecer por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio; o art. 679.º nCPC ressalva a aplicação de todo o art. 665.º.

Desta diferença textual já se extraiu a seguinte conclusão: “No sistema anterior, quando a Relação deixasse de conhecer de certas questões, por considerá-las prejudicadas pela solução dada ao litígio, se o STJ dispusesse de todos os elementos, deveria substituir-se à Relação e proferir a decisão sobre o mérito do recurso em toda a sua extensão […]. [/] Agora, porém, tendo sido expressamente excluída a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665.º, incluindo o n.º 2 que trata das aludidas situações, tal impede que o Supremo Tribunal de Justiça aja como tribunal de substituição, devendo, em tais circunstâncias, determinar a remessa dos autos” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed. (2014), 374).

Seguindo-se esta orientação, há que concluir que se, por exemplo, a Relação tiver deixado de apreciar os danos, por entender que não se verifica o nexo de causalidade entre o facto ilícito e esses danos, o STJ, se considerar que se verifica esse nexo causal, não pode pronunciar-se sobre aqueles danos, devendo mandar baixar o processo à Relação, para que esta se pronuncie sobre os referidos prejuízos. Algo de semelhante há que concluir quanto ao conhecimento de um pedido subsidiário que não chegou a ser apreciado pela circunstância de o pedido principal ter sido julgado procedente pelas instâncias: se o STJ entender que o pedido principal não pode ser julgado procedente, ainda assim o STJ não pode conhecer do pedido subsidiário.

2. A alteração legislativa tem de ser vista no seu enquadramento sistemático. Se a não aplicação do disposto no art. 665.º pelo STJ se traduzisse na impossibilidade de o STJ julgar uma questão que não foi apreciada pelo tribunal recorrido por a mesma ter ficado prejudicada pela solução dada por este tribunal a uma outra questão, criar-se-ia uma dualidade de regimes para o STJ e para a Relação: o STJ não poderia substituir-se ao tribunal recorrido na apreciação dessa questão; em contrapartida, a Relação poderia substituir-se, com base no disposto no art. 665.º, n.º 2, nCPC, à 1.ª instância.

Poder-se-ia argumentar que esta dualidade de regimes seria justificada pela circunstância de, através da devolução para a Relação, se pretender assegurar o segundo grau de jurisdição quanto à apreciação da questão prejudicada, ou seja, se procurar garantir que haja dois tribunais – a Relação e o STJ – a apreciar essa questão. No entanto, contra isto pode invocar-se o seguinte:

– É muito discutível que a garantia do duplo de jurisdição sirva de justificação para que o tribunal que julga em última instância fique impedido de apreciar uma qualquer questão; a garantia do duplo grau de jurisdição destina-se a assegurar que é possível recorrer para um tribunal superior, não a impedir um tribunal supremo de se pronunciar sobre uma questão; considere-se o seguinte exemplo: numa acção de cumprimento de uma obrigação contratual, apenas o STJ suscita, ex officio, o problema da validade do contrato; parece ser evidente que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode servir de argumento para impedir que o STJ (naturalmente após se precaver contra uma “decisão-supresa”: art. 3.º, n.º 3, nCPC) possa conhecer dessa nulidade (ou para que o STJ deva solicitar à Relação que "confirme" essa nulidade);

– Além disso, se o STJ não pode conhecer da questão prejudicada porque há que garantir o duplo grau de jurisdição, então também a Relação nunca deveria poder substituir-se à 1.ª instância na apreciação da questão prejudicada, pelo menos quando não houvesse a possibilidade de recurso para o STJ.

Note-se que não haveria nenhum inconveniente (excepto em matéria de celeridade) em que, sempre que num tribunal de recurso (Relação ou STJ) se colocasse o problema de conhecer de uma questão prejudicada pela solução dada a outras questões, esse tribunal tivesse de devolver o recurso à instância inferior. O que não parece coerente é impor que o STJ devolva o processo à Relação com o argumento de que há que assegurar um duplo grau de jurisdição e, ao mesmo tempo, aceitar que a Relação, nos termos do art. 665.º, n.º 2, nCPC, possa conhecer, também eventualmente sem possibilidade de recurso, de uma questão prejudicada. É por isso que uma interpretação sistemática da ressalva realizada no art. 679.º nCPC quanto ao art. 665.º nCPC não permite concluir que o STJ não possa conhecer de uma questão prejudicada.

A solução para o problema de saber em que condições o STJ pode substituir-se à Relação na apreciação de uma questão prejudicada deve retirar-se do disposto no art. 682.º, n.º 3, nCPC (cuja aplicação é expressamente determinada pela parte final do art. 679.º nCPC): a remessa para a Relação só se justifica quando o STJ entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão da questão prejudicada, isto é, quando o STJ não disponha de matéria de facto suficiente para conhecer dessa questão. Sendo assim, havendo no processo todos os elementos suficientes, nada impede que o STJ se possa pronunciar sobre a questão prejudicada: é isso que resulta do estabelecido no n.º 1 do art. 682.º nCPC.

Se é certo que, nos termos do art. 679.º nCPC, às questões prejudicadas não se pode aplicar o disposto no art. 665.º, n.º 2, nCPC, é igualmente certo que a essas questões se aplica, precisamente por imposição do mesmo art. 679.º nCPC, o estabelecido no art. 682.º, n.º 3, nCPC. Pode assim concluir-se que o STJ não julga sempre uma questão prejudicada nem no sistema de cassação, nem no sistema de substituição: tudo depende da suficiência da matéria de facto adquirida no processo para o julgamento dessa questão.

3. Agradeço ao Senhor Cons. Urbano Dias a chamada de atenção para o problema e a disponibilidade para discutir a solução do mesmo. Ao Senhor Cons. Abrantes Geraldes agradeço as informações sobre os trabalhos preparatórios do actual art. 679.º nCPC e a troca de impressões sobre o problema. Como seria de esperar, a discussão decorreu com o espírito de respeito e amizade que é próprio do IPPC.

MTS