"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/11/2014

Revelia da parte assistida e poderes do assistente




1. Uma Colega do IPPC colocou-me uma questão sobre a interpretação do disposto no art. 329.º CPC, assim redigido: “Se o assistido for revel, o assistente é considerado como seu substituto processual, mas sem lhe ser permitida a realização de atos que aquele tenha perdido o direito de praticar”. A questão colocada foi a seguinte: dado que a revelia do assistido só se verifica quando tenha decorrido todo o prazo de contestação e dado que é apenas nesse momento que o assistente adquire a qualidade de substituto processual daquele assistido, ainda assim é permitido a esse assistente, actuando como substituto processual daquela parte, apresentar uma contestação?

Um argumento para uma resposta negativa a esta questão poder-se-ia extrair do próprio art. 329.º CPC, dado que neste preceito se estabelece expressamente que ao assistente não é permitida a realização de actos processuais que o assistido tenha perdido o direito de praticar. Nesta interpretação, o momento da verificação da revelia do assistido coincide com aquele em que esta parte perde o direito de contestar e em que, portanto, o assistente deixa de se poder substituir ao assistido revel na apresentação de qualquer contestação. Quer dizer: no exacto momento em que se verifica a revelia, o assistente torna-se substituto processual do réu revel e, simultaneamente, fica impossibilitado de se substituir a este réu na apresentação da contestação.

2. Antes de avançar na tentativa de interpretação do estabelecido no art. 329.º CPC, convém recordar a história do preceito. O art. 342.º, § único, CPC/1939 estabelecia o seguinte: “Se o assistido for revel, o assistente será considerado como seu gestor de negócios”. No CPC/1961, o preceito passou a ser o art. 338.º, mas manteve quase integralmente a redacção (em vez de “será considerado” passou a estar “é considerado”). O art. 1.º DL 329-A/95, de 12/12, forneceu ao então art. 338.º a sua actual redacção, devendo salientar-se o novo enquadramento da posição do assistente de uma parte revel: antes era considerado um gestor de negócios, agora é qualificado como um substituto processual da parte assistida. 

Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado I, 3.ª ed. (1948), 474) retirava da qualidade de gestor de negócios do réu revel não apenas a qualificação do assistente como parte principal, mas também a faculdade de esta parte “recorrer de todas as decisões desfavoráveis ao assistido”. A conclusão era evidentemente correcta, mas nada acrescentava à atribuição de legitimidade para recorrer à parte acessória que constava do art. 680.º 2.ª parte CPC/1939.

3. Para a interpretação do disposto no art. 329.º CPC importa considerar dois aspectos preliminares.

O primeiro é o seguinte: a revelia do assistido não o impede de praticar nenhum acto em juízo (com excepção, como é evidente, da contestação), pelo que não se justifica nenhuma substituição desse assistido com o argumento de que ela é necessária para possibilitar a prática de certos actos em processo. Por exemplo: o assistido, apesar de ser revel, pode impugnar qualquer decisão que lhe seja desfavorável, nos termos gerais do art. 631.º, n.º 1, CPC. Isto significa que a transformação do assistente em parte principal não é necessária para suprir nenhuma falta de poderes do assistido revel. 

O segundo aspecto é relativo às consequências da transformação, na sequência da revelia do assistido, do assistente em parte principal e em substituto processual daquele assistido. Tendo presente que, numa situação de substituição processual, o normal é que o substituto processual esteja sozinho em juízo (ou seja, não esteja acompanhado da parte substituída), aquela transformação só pode encontrar justificação nas hipóteses em que o assistido se mantém afastado do processo ou neste não pratica actos que tem a faculdade de realizar. O sentido daquela transformação não pode ser o de, após a revelia do assistido, duplicar quer as partes principais demandadas (constituindo uma situação de litisconsórcio passivo?), quer as possibilidades do uso das faculdades processuais, mas antes (e apenas) o de permitir que o assistente (agora parte principal e substituto processual) possa substituir-se ao assistido nos actos que este não venha a realizar.

Procurando esclarecer de outro modo: a transformação do assistente em substituto processual do assistido revel atribui a este assistente todos os poderes de uma parte principal, mas não pode ser considerada nem global, nem excludente. Não é global, porque o assistente não se torna substituto processual para todo o processo e para todos os respectivos actos, mas apenas para os actos que o assistido não venha a praticar. Também não é excludente, porque a qualidade de substituto processual do assistente não impede que o assistido continue a praticar em juízo todos os actos que lhe são permitidos.

4. Adquirido que o assistente pode praticar, enquanto substituto processual, todos os actos que cabem ao assistido e, ao mesmo tempo, que este não perde a possibilidade de praticar esses mesmos actos, o problema que a seguir se coloca é o de saber em que momento é que o assistente pode praticar os seus actos. A solução seria fácil se a lei dispusesse que o assistente poderia praticar os actos depois de o assistido ter perdido a possibilidade de os realizar: a contagem sucessiva de prazos para o assistido e para o substituto processual evitaria qualquer eventual duplicação da realização do mesmo acto por duas partes distintas.

A lei dispõe, contudo, em sentido diametralmente oposto a este: o assistente, ainda que substituto processual, não pode praticar actos que o assistido tenha perdido a oportunidade de praticar (art. 328.º, n.º 2, CPC). Sendo assim, só é possível uma solução: o assistente (e substituto processual) pode praticar o acto no mesmo prazo que é concedido ao assistido. Depois da prática do acto pelo assistente, acontece uma das seguintes situações: se o assistido também praticar o acto, este acto prevalece sobre o do assistente (art. 328.º, n.º 2 in fine, CPC); se o assistido não praticar o acto, mantém-se o acto praticado pelo assistente (que, neste caso, actua como verdadeiro substituto processual do assistido).

Em termos dogmáticos, há que entender que o acto praticado pelo assistente é sempre subsidiário ou eventual: só produz efeitos no caso de o assistido não praticar o mesmo acto (ou, pelo menos, na parte que não for contrariada pelo acto do assistido).

5. Um dos problemas suscitados pelo disposto no art. 329.º CPC é o de saber se a qualidade de substituto processual – que só é adquirida pelo assistente após a revelia do assistido – vale apenas para os actos posteriores a essa revelia. Uma resposta positiva a esta questão implica que o assistente tem de aceitar os efeitos da revelia do assistido e só pode praticar os actos que integrem a tramitação posterior a essa revelia. Voltando a utilizar a terminologia antiga, esta orientação implica transformar o assistente em “gestor de negócios” da revelia do assistido.

A conclusão a que acima se chegou – a de que o assistido e o assistente podem “concorrer” na prática do mesmo acto no mesmo prazo – permite a construção de uma outra orientação. Aquela conclusão torna muito discutível que o art. 329.º CPC deva ser interpretado como implicando que ao assistente só seja concedida a hipótese de se conformar com a revelia do assistido e de “gerir” esta revelia na tramitação subsequente do processo. Afinal, não há nenhuma justificação para se entender que o que preceito permite para qualquer acto subsequente à revelia do assistido não deva valer também para a apresentação da contestação. Assim, há que entender que o assistente pode contestar e que, se o assistido vier a permanecer revel, vale a contestação que o assistente tenha apresentado (então na qualidade de substituto processual daquele assistido).

Esta mesma conclusão foi recentemente reafirmada na doutrina portuguesa (embora apenas para o caso de revelia absoluta do assistido): “como substituto processual, pode […] o novo réu contestar, em vez do réu primitivo” (Lebre de Freitas/I. Alexandre, Código de Processo Civil Anotado I, 3.ª ed. (2014), 643). Apenas importa esclarecer que a contestação do assistente é necessariamente subsidiária (ou eventual): só vale para a hipótese de o assistido não apresentar nenhuma contestação e de, portanto, se verificar a revelia daquela parte.

O argumento para só admitir a contestação do assistente na hipótese de revelia absoluta é o de que, no caso de revelia relativa, o assistido mostrou, através da junção de procuração a mandatário judicial, a sua vontade de não contestar (Lebre de Freitas/I. Alexandre, Código de Processo Civil Anotado I, 3.ª ed., 643). Não se nega que este comportamento do assistido mostra, de forma tácita, a vontade de não contestar, mas é discutível que isso possa ter alguma importância para a solução da situação em análise.

Para além do que se pudesse afirmar quanto à relevância (ou, talvez melhor, irrelevância) da vontade das partes na prática ou na omissão de actos processuais, há um argumento que torna duvidosa aquela orientação. O argumento é o seguinte: se se entende que o assistente não pode apresentar uma contestação numa hipótese de revelia relativa do assistido, então também haveria que concluir que, exactamente com a mesma justificação (junção pelo assistido de procuração a mandatário), o assistente deveria ficar impedido de praticar qualquer outro acto em substituição do assistido revel. No fundo, também quanto a todo e qualquer outro acto, aquela junção, conjugada com a omissão do acto, revela a vontade do assistido de não praticar o acto. 

6. Convém sublinhar que a apresentação da contestação nos ternos acima referidos constitui para o assistente uma faculdade, nunca um ónus. Isto é importante, porque a não apresentação da contestação pelo assistente numa situação de revelia do réu assistido não pode ser utilizada como argumento para retirar ao assistente a possibilidade de, para afastar a vinculação ao caso julgado da decisão proferida na sequência da revelia do assistido, alegar e provar que a atitude de (não contestação) deste assistido o impediu de fazer uso de alegações ou de meios de prova (cf. art. 332.º, al. a), CPC). 

MTS