"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/01/2020

Jurisprudência 2019 (151)


Penhora de bens comuns; 
citação do cônjuge do executado; habilitação*


1. O sumário de RP 10/7/2019 (1366/08.0YYPRT-A.P1) é o seguinte:

I - No incidente de habilitação de sucessores, mesmo que não tenham sido alegados pelo requerente, o juiz pode fundamentar a decisão em factos que constem dos autos principais a que respeita o incidente por se tratar de factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

II - Tendo sido penhorado, em execução instaurada apenas contra um dos cônjuges, bem imóvel comum, tendo o cônjuge não executado falecido, deve proceder-se à habilitação dos respectivos sucessores para realizar nestes a citação prevista nos artigos 740.º e 786.º do Código de Processo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A decisão recorrida – depois de julgar verificada a qualidade de herdeiros do falecido e consequentemente sucessores nos direitos patrimoniais respectivos – julgou procedente a habilitação por ter entendido que tendo sido penhorados na execução bens comuns do casal, haverá que proceder à citação do cônjuge da executada para os termos do artigo 740.º e 786.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e como o cônjuge faleceu a citação terá de ser feita nos respectivos sucessores, em substituição do falecido.

Os recorrentes discordam deste entendimento, sustentando que com o falecimento do marido da executada o respectivo casamento se dissolveu e cessaram todos os efeitos do casamento, nomeadamente os patrimoniais, razão pela qual a citação para os efeitos daqueles normativos já não tem de ser feita uma vez que tais normas pressupõem a existência de um casamento, razão pela qual os recorrentes não podem ser habilitados.

Quid iuris?

O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual de operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do Código de Processo Civil).

Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva.

A habilitação de sucessores tem assim como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.

Parece, portanto, que só pode haver lugar ao incidente habilitação de sucessores, enquanto incidente de uma determinada acção, se quem faleceu tinha na acção a qualidade de parte. Isso mesmo resulta expresso do teor do n.º 1 do artigo 351.º do Código de Processo Civil que se refere à «habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda». À contrário, seríamos levados a considerar que não se pode promover a habilitação de terceiros que não sejam partes na acção, ainda que os mesmos possam ter interesse económico ou mesmo jurídico na acção.

Sucede que para além das situações em que ab initio a acção se estabelece entre determinadas pessoas que assumem assim originariamente a qualidade de parte, outras existem em que a qualidade de parte na acção não é originária e em que às partes inicialmente presentes na acção se podem juntar outras pessoas que a partir desse momento assumirão também a posição de partes.

Não havendo dúvida de que depois de assumirem a posição de parte estes terceiros passam a usufruir desse estatuto, razão pela qual se depois falecerem será necessária a habilitação dos respectivos sucessores, o que se deve questionar é se isso é possível quando ainda existe apenas a possibilidade ou potencialidade da intervenção desses terceiros.

Cremos dever distinguir as situações em que a intervenção é voluntária e corresponde ao exercício de um direito potestativo, das situações em que por razões processuais a intervenção é obrigatória e o terceiro é citado para os termos da causa ainda que depois possa optar por não intervir, suportando no entanto as respectivas consequências jurídico-processuais se o não fizer.

São exemplo da primeira situação a intervenção principal espontânea, a assistência, a oposição espontânea ou a oposição mediante embargos de terceiro. Em qualquer dessas situações cabe ao interessado tomar a iniciativa de se apresentar na acção a assumir a posição de parte, não cabendo na acção a prática de qualquer acto intimando-o a fazê-lo. Já por exemplo na intervenção provocada ou oposição provocada, uma vez verificada a admissibilidade da intervenção, o terceiro é citado e se não intervier na acção a sentença não deixa de produzir efeitos quanto a ele uma vez que com a citação adquiriu o estatuto de parte, acessória ou principal.

Também no âmbito do processo executivo existem situações em que terceiros estranhos à acção podem passar a intervir neste e a nela exercer direitos processuais próprios de uma parte. É precisamente o caso do cônjuge do executado e dos credores com garantia real, os quais, após a penhora são citados para a execução, podendo nela intervir e praticar actos próprios de uma parte na execução.

Se a citação não fosse obrigatória, podia entender-se que tendo a pessoa a citar falecido entretanto a sua citação era dispensada e bastaria aos seus sucessores que quisessem intervir na execução em substituição dele deduzir no requerimento da sua intervenção a chamada habilitação-legitimidade.

Todavia, nos termos do n.º 6 do artigo 786.º do Código de Processo Civil, a citação dessas pessoas é, no caso da execução, um acto processual obrigatório, cuja falta acarreta inclusivamente a mesma consequência processual da falta de citação do réu, isto é, a anulação da totalidade do processado, com as excepções previstas no preceito.

Ora se a citação tem de ser feita sob pena de importar a nulidade de actos processuais e se a citação não pode ser feita na pessoa do citando porque este faleceu parece evidente que tem de se admitir o incidente da habilitação dos respectivos sucessores por essa ser a única forma de desbloquear tal impasse.

Pode questionar-se se isso deve ser assim mesmo que no caso da citação do cônjuge esta deva ter lugar nos termos do artigo 740.º do Código de Processo Civil 
[Cumpre referir que no caso a penhora dos bens comuns ocorreu no dia 15/06/2009 e o óbito do cônjuge da executada ocorreu no dia 18/06/2013. A solução para a questão colocada seria diferente, cremos, se o óbito tivesse ocorrido antes da penhora].

Estabelece o n.º 1 deste preceito que quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, o cônjuge do executado é citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns. O n.º 2 acrescenta que apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha.

A separação de bens pressupõe obviamente a existência de uma sociedade conjugal. Se esta já se dissolveu, designadamente por morte de um dos cônjuges, a separação de bens já não pode ser requerida, pode é ser requerida a partilha subsequente à abertura da sucessão por morte de um dos titulares do património. A ser assim, como nos parece, podíamos ser levados a concluir que a citação nos termos do artigo 740.º do Código de Processo Civil já não teria de ser feita e, consequentemente, também não era necessária a habilitação dos sucessores do cônjuge falecido.

Cremos porém que não se deve entender assim.

Em primeiro lugar porque embora o artigo 740.º do Código de Processo Civil se refira apenas à acção de separação de bens, ele não dispensa a necessidade de posteriormente se proceder à partilha dos bens (é o que resulta do n.º 2). Por conseguinte, se por efeito do óbito do cônjuge é já possível passar directamente à partilha sem necessidade da instauração prévia de uma acção se separação de bens, tal não obsta à aplicação do disposto no artigo 740.º, significa apenas que os passos decorrentes dessa citação serão afinal menos ou mais abreviados.

Em segundo lugar porque no caso concreto a citação não será exclusivamente nos termos do artigo 740.º do Código de Processo Civil. Com efeito, uma vez que o bem comum penhorado que demanda a citação para esse efeito é um bem imóvel e que os cônjuges eram casados no regime de comunhão geral de bens, a situação preenche em simultâneo a previsão do artigo 740.º (penhora de bens comuns do casal em execução movida só contra um dos cônjuges) e da primeira parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 786.º do Código de Processo Civil (penhora de bens imóveis que a executada não podia alienar livremente: artigo 1682.º-A do Código Civil).

Nesta situação a citação não é afinal apenas para requerer a separação de bens ou demonstrar tê-la já requerido porquanto nos termos do artigo 787.º do Código de Processo Civil os sucessores do cônjuge falecido podem inclusivamente, na sequência da citação, deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado, podendo cumular eventuais fundamentos de oposição à execução. Ora nenhuma destas intervenções processuais está prejudicada pela dissolução do casamento por óbito de um dos cônjuges.

Sendo assim, como nos parece, estando penhorado um bem imóvel (que no caso é comum mas para o efeito até podia ser um bem próprio) que a executada não podia alienar livremente impõe-se a citação do respectivo cônjuge para a execução, a qual não está prejudicada pelo óbito deste atenta a amplitude da intervenção como parte que pode ser desencadeada a partir da citação. Por isso, tendo o citando falecido, é possível e é mesmo necessária a habilitação dos respectivos sucessores, os quais são afinal os herdeiros porque foram eles que sucederam na titularidade das relações jurídicas patrimoniais inerentes à propriedade do imóvel penhorado."

*3. [Comentário] O acórdão decidiu bem uma questão muito interessante. No fundo, o que se pode dizer é que, se é certo que, com o falecimento de um dos cônjuges, se dissolve o casamento, também é verdade que, até à partilha dos bens comuns, se mantém a comunhão de bens. Daí a necessidade de habilitação dos sucessores do cônjuge do executado entretanto falecido para requererem a separação de bens.

A única situação que poderia levantar problemas seria aquela em que o único sucessor do cônjuge do executado é o cônjuge executado sobrevivo. Neste caso, atendendo à reunião do património do casal neste cônjuge, parece que a separação de bens seria um acto inútil.

MTS